sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Crônicas do Dia - Por um museu sobre a verdade

‘Museus e histórias contestadas: dizendo o indizível em museus” é o tema de trabalho do Conselho Internacional de Museus para 2017, uma escolha nada aleatória. É preciso apurar e confrontar traumas históricos para não repetirmos horrores do passado e denunciarmos traços desses horrores que sobrevivam no presente. A forma de fazê-lo é nomear, reconhecer e debater legados difíceis, promover sua ressignificação e visionar um futuro coletivo sob a ótica da reconciliação.


Como ágoras modernas, museus devem articular questões essenciais e encorajar reflexões críticas sobre os legados que lhe dão forma ou dilaceram. É neste contexto que expressamos o sonho de construir um museu dedicado à história da escravidão no Rio de Janeiro, entendendo que a iniciativa demanda reflexões para não banalizarmos um tema de tamanha complexidade. Cientes de tal responsabilidade, desejamos abrir um intenso e transparente diálogo com a sociedade.

O “Atlas do Comércio Transatlântico de Escravos”, de D. Eltis e D. Richardson, aponta que quase metade dos africanos trazidos como escravos para as Américas veio para o Brasil — cerca de 4,68 milhões. Destes, mais de dois milhões desembarcaram no Rio de Janeiro. Ainda assim, há um acobertamento dessa memória no espaço e no cotidiano urbanos. Embora locais de relevância, como o Cais do Valongo, tenham sido demarcados na Região Portuária, isso não é suficiente para reconhecer os golpes deferidos por quatro séculos de escravidão contra os negros no Brasil, cujas consequências perduram até hoje. Se a escravidão foi abolida há mais de cem anos, seus grilhões permanecem presentes no racismo e na desigualdade social.

Um museu sobre a escravidão não pode esconder em seu nome a dimensão histórica desse tema, mas sim ressignificá-la. Se a história da escravidão toca a violência e a privação de direitos, dá também testemunho da resiliência e indestrutibilidade do espírito humano, dos atos de resistência e rebelião, dos esforços de recriação de identidades e de sentimento comunitário; enfim, da luta e conquista da liberdade. Para além do horror e da dor da escravidão, mas sem esquecê-los, esse espaço público deve celebrar a profunda influência africana na cultura brasileira: nossa musicalidade, artes, festas, religiosidade, culinária, falar, nosso jeito de viver e sentir, heranças de nossos ancestrais. Reverenciar Clementina de Jesus e Lima Barreto, Mestre Didi e Pixinguinha, Mercedes Baptista e Mãe Menininha do Gantois, e tantos, tantos, conhecidos e anônimos construtores do Brasil. Reconhecer que muitos ainda sofrem os legados da escravidão requer um museu como vetor de autoestima, desenvolvimento humano, oportunidades socioeducativas e impactos sociais duradouros.

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O futuro Museu da Escravidão buscará ouvir as vozes silenciadas de seus protagonistas através de processos participativos, de baixo para cima, rechaçando abordagens curatoriais autoritárias. Quer contar com o movimento negro e a sociedade como um todo na construção deste bem cultural comum.

Encerro com um provérbio bantu, cultura predominante na África Ocidental: Ubuntu ngumtu ngabanye abantu (Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas). Não há bem-estar individual sem bem-estar coletivo. O mal que recaiu sobre a comunidade escravizada hoje afeta a sociedade como um todo. Enfrentemos pois nossas “histórias contestadas” para, por fim, nos regenerarmos coletivamente celebrando uma sociedade múltipla, plural e diversa.

Nilcemar Nogueira é secretária municipal de Cultura do Rio



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