sábado, 11 de junho de 2016

Conto - Pai contra mãe - Um outro olhar

Resumo: Este trabalho analisa a estética machadiana no conto Pai contra mãe, uma pequena parcela da produção deste grande autor, mas que é rica em dados que mostram como ele constrói a sua ironia. Essa construção pode ser percebida através dos subsídios que estruturam essa narrativa. Machado ao construir este conto utilizou elementos que acentuam o tom irônico de suas palavras, isso se torna necessário, uma vez que o conto, enquanto gênero, é caracterizado por ser uma narrativa breve e cuja ação é inerentemente curta. Através da análise dos elementos semânticos, da ambivalência no texto machadiano, responsável pela comparação com o Cândido de Voltaire, do pessimismo e dos aspectos da estrutura narrativa como a perspectiva do narrador, a construção do nome das personagens e a função que a protagonista desempenha dentro do enredo, mostramos como o autor consegue a apresentação de uma ironia rica, trabalhada minuciosamente, a fim de que nenhum aspecto do texto se desvie do propósito dele, que é criticar as várias facetas do ser humano e do sistema social vigente na época em que a narrativa foi escrita.


Conto - Pai contra mãe , uma análise

Por Ana Célia Coelho


Neste trabalho faz-se uma abordagem sobre alguns aspectos encontrados no conto 
Pai contra Mãe de Machado de Assis (1839-1908), publicado no volume “Relíquias de Casa Velha” em 1906. Sabe-se que tanto os romances quanto os contos machadianos faz-nos refletir sobre o espírito humano e suas fraquezas (a crueldade, a ingratidão, a deslealdade, o adultério, a soberba, a mesquinharia, a corrupção, a sensualidade e outros demônios da alma), com o intuito de mostrar que “a mais eficaz consolação em toda desgraça é descobrir que sempre há mais desgraçados do que nós”.

No conto Pai contra Mãe focaremos a ironia e a crueldade presentes nas atitudes do núcleo protagonista da trama: Cândido, Clara e Tia Mônica. Entende-se por ironia, segundo o dicionário Houaiss (2009), como figura caracterizada pelo emprego inteligente de contrastes, usado literariamente para criar ou ressaltar certos efeitos humorísticos; uso de palavra ou expressão sarcástica; qualquer comentário ou afirmação irônica ou sarcástica; crueldade, entende-se por característica ou condição do que é cruel; prazer em fazer o mal; impiedade, maldade, ato, procedimento cruel; crueza.

Sabe-se que uma obra literária que resiste ao tempo é um clássico e, é certamente o caso da prosa de Machado de Assis, sobretudo depois de 1880, quando ele publicou Memórias póstumas de Brás Cubas. Pois, poucos autores brasileiros foram e são tão estudados, analisados e lidos como Machado de Assis. A extraordinária produção analítica sobre os romances, contos, crônicas e teatro de Machado, além dos livros sobre a vida e a obra do autor, é uma prova de que a leitura crítica da obra machadiana está longe de ser esgotada. Segundo o escritor Hatoum (2008), como ocorre com todos os clássicos, a obra de Machado é um emplastro poderoso para desintoxicar o leitor viciado em palavras fáceis e fúteis, em receitas de bem viver, em fórmulas de sucesso, em relatos sobre um cachorro amado, ou essa ou aquela celebridade. Bem-aventurados os que ainda não conhecem o Machado contista, pois nas narrativas breves do Bruxo vão encontrar os temas dos grandes romances: a loucura, o adultério, o jogo de sedução e poder, os carreiristas e alpinistas sociais, e a combinação de falta de escrúpulos e crueldade nas atitudes de determinada elite brasileira do século XIX. Um século depois da morte de Machado, alguns desses temas perduram, porque fazem parte constitutiva da natureza humana. Quanto à crueldade de uma elite que cultiva privilégios [...]. Até nisso Machado acertou em cheio, e com um pessimismo e uma ironia que nos deixam sem fôlego1 .

Todavia, como estamos conhecendo bem o Machado contista, através da

Disciplina Literatura Brasileira I, analisaremos, modestamente, um de seus contos que expressa bem, com muita ironia, a falta de escrúpulos e a crueldade nas atitudes humanas. De modo sintético, o conto “Pai contra mãe” de Machado de Assis, aborda o século XIX, trazendo a história de um capitão-do-mato (Cândido Neves) que captura uma escrava fugitiva (Arminda), que está grávida e, após entregá-la ao seu dono, a escrava aborta o filho que espera. Desse modo, o capiturador de escravos obtém dinheiro para sobreviver e salvar seu filho da Roda dos Enjeitados. O conto termina com a frase: “Nem todas as crianças vingam”, expressando, assim, o pessimismo machadiano.

Logo no começo do conto, temos a narração sobre os maus tratos que os escravos negros recebiam no século XIX, os quais eram métodos correcionais aplicados para se garantir a honestidade e sobriedade, pois perdiam o vício de beber e consequentemente o instinto para roubar, ou como método preventivo contra as fugas dando para os reincidentes uma estimulação a humildade e a subserviência. Era como se fosse natural torturar um seres humanos, como se houvesse uma justificativa aceitável para aquilo. Se tivéssemos a informação correta, moral e ética, diríamos que o escravismo foi um regime criminoso contra a humanidade, de leis e fatos, imorais, antiéticos, condenáveis em qualquer sociedade que fizesse bom juízo dos fatos.

Como os escravos não aceitavam sua condição desumana, fugiam com frequência, sedo caçados por um capitão-do-mato e devolvidos aos seus respectivos donos, que recebia por seu trabalho uma gratificação, “algum dinheiro” pela caça. É aí que entra a história de Cândido Neves ou Candinho que segundo a narrativa, “cedeu à pobreza, quando adquiriu o ofício de pegar escravos fugidos” e tinha um grave defeito “não agüentava emprego nem ofício, carecia de estabilidade”.

Candinho casa-se com Clara, uma órfã que morava com uma tia, Mônica, e ambas costuravam para sobreviver. Clara fica grávida, piorando, assim, a situação de pobreza em que viviam. Segundo a narrativa, tudo era motivo de graça para o casal, “não davam que comer, mas davam que rir, e o riso digeria-se sem esforço”. Tia Mônica, por sua

1 HATOUM, Milton. Machado de Assis: um século depois. São Paulo, 2008 (ONLINE). Disponível em:


vez, era pessimista e alertava-os “vocês verão a triste vida” que terão quando essa criança nascer. Tia Mônica, visando seu próprio benefício, pois ela era agregada do casal e não queria ceder seu espaço para a criança que estava para nascer, aconselha o casal a entregar o filho à Roda dos Enjeitados para não morrer de fome. Mas o casal rejeita piamente seu conselho.

Candinho vê-se desesperado com a situação e sai em busca de algum “preto fujão”. No entanto, os “escravos fugidos não vinham já, como dantes, meter-se nas mãos de Cândido Neves”. Mas, por ironia do destino, ele se depara com Arminda, a “mulata fujona” e logo a reconhece e a captura. Vale à pena transcrever este trecho:

Cândido Neves, com as mãos robustas, atava-lhe os pulsos e dizia que andasse. A escrava quis gritar, parece que chegou a soltar alguma voz mais alta que de costume, mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário. Pediu então que a soltasse pelo amor de Deus. — Estou grávida, meu senhor! exclamou. Se Vossa Senhoria tem algum filho, peço-lhe por amor dele que me solte; eu serei tua escrava, vou servi-lo pelo tempo que quiser. Me solte, meu senhor moço!2

Aí está a grande ironia do conto que culmina em crueldade: o fato da escrava fugitiva reforçar em Candinho a vontade de capturá-la. Arminda, ao implorá-lo por sua liberdade porque estava grávida e não queria ter um filho escravo, faz com que Candinho se lembre de seu filho recém nascido que se ele não ganhar dinheiro urgentemente terá que perdê-lo, deixá-lo à Roda dos Enjeitados para não morrer de fome. Portanto, Candinho obstinamente agarra a escrava e entrega ao seu dono, sem se importar com sua gravidez. A crueldade resulta da morte de uma criança (do filho da escrava), para sobrevivência de outra (do filho de Candinho).

Por isso, Candinho, afirma no final do conto: “Nem todas as crianças vingam”, tentando justificar sua ação tirana, sua crueldade. Com isso, o autor mostra a miséria humana, através dos dramas paralelos de um pai contra mãe, lutando por duas vidas, onde o indivíduo é capaz de aplacar sua consciência, mesmo tendo cometido o maior dos crimes, justificando a troca de uma vida pela outra.

Esta frase assemelha-se a de Brás Cubas em Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881): “Não passei para ninguém o julgo da minha miséria”. Ambas refletem o pensamento da época, o pensamento pessimista do século XIX, de que “nada de grandioso se pode esperar do homem”. É notório que o sistema sócio-econômico de cada época, obriga as pessoas a se “engafiarem” pela sobrevivência, pela comida, pelo

2ASSIS, Machado de. “Pai contra mãe”. In: _ Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro: Ed. Garnier, 1990, p. 17-27.

pão de cada dia. E, isto é retratado excelentemente neste conto. Pois, a narrativa analisa a capacidade que alguns homens têm de persuadir (como a Tia Mônica) o próximo, humilhar e matar (como o fez Candinho com Arminda) para se dar bem na vida, para sobreviver numa sociedade desigual e excludente. Afinal, “ao vendedor as batatas”.

Esta narrativa reforça também o lado grotesco ligado à escravidão que segundo o narrador, no momento da escrita, já passara. Além do mais, um dos principais ofícios que a escravidão levou foi o de capturar escravos. Segundo o autor, este ofício está ligado à reprodução da pobreza gerada pela escravidão, por não ser nobre, nem exigir estudos e muito menos oferecer glórias futuras, a submissão a essa atividade era própria do seu tempo e das necessidades de permanência da escravidão através do grotesco, do chocante, do violento e por meio da submissão de pessoas que precisavam preservar a própria existência. Segundo Moraes (2009):

Machado de Assis ao retratar a luta do pai, branco, com uma mãe, negra e escrava, traçou um paralelo nas condições de miséria e pobreza existentes durante a escravidão e que permaneceriam após o seu fim. Ao escrever 50 anos depois, o autor discutiu a situação do trabalho no Brasil após o fim da escravidão, assim como as situações precárias da vida de uma parte da sociedade que não se inseria nem no quadro dos proprietários e nem no de escravos. Cândido, Clara e Tia Mônica compõem esse quadro. Mais que isso, ao iniciar o seu texto mostrando os ofícios e os aparelhos que a escravidão levara, o autor também mostra o quê a abolição não deu cabo: da miséria e das diferenças sociais. Apenas encerrou o uso de alguns aparelhos tão fortemente retratados no início do conto3 .

Segundo a autora, a vida de Cândido e sua luta pela sobrevivência é também uma história do trabalho livre no Brasil durante a vigência da escravidão. Ao mostrar as dificuldades de Cândido em conseguir o sustento para a sua família através do trabalho dando a entender, muito por causa das interpretações de tia Mônica, que eram provocadas pelo próprio Cândido que escolhia seus trabalhos, Machado de certa forma indica as reais dificuldades desses homens em trabalhar nessa sociedade escravista.

Percebe-se que essa dificuldade dos homens livres e as relações de dependência que eles vão traçar para a sua sobrevivência foram temas dos romances de Machado de Assis. Porém, no conto “Pai contra mãe”, Machado liga os três universos dessa sociedade brasileira esquematizada por Schwarz4 . Cândido, homem livre e pobre, serve

3 MORAES, Renata Figueiredo. Pai contra mãe: a permanência da escravidão nos contos de

Machado de Assis. In: 4º. Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2009. (ONLINE) Disponível em: <http://w.labhstc.ufsc.br/ivencontro/pdfs/comunicacoes/RenataMoraes.pdf>. Acesso

4 Roberto Schwarz é um crítico literário e professor aposentado de Teoria Literária. Um dos principais continuadores do trabalho crítico de Antonio Candido, redigiu estudos sobreMachado de Assis elencados entre os mais representativos na fortuna crítica sobre o autor das Memórias Póstumas de Brás Cubas. O a classe de proprietários à medida que captura os escravos. Esse trabalho só poderia ser mesmo feito por homens livres que cedessem à pobreza, segundo diz o próprio Machado, de capturar homens e mulheres em condições piores que as deles. No entanto, o autor, através da fala da tia Mônica, dá a entender que Cândido era o responsável pela sua condição ao querer ser livre para escolher a qualquer momento o seu trabalho quando na verdade ocorre o contrário. Cândido irá escolher aquele que oferecer maiores rendimentos. E capturar escravos fugidos se mostra o auge do trabalho livre naquela história principalmente na passagem que Machado cita os desempregados que recorreram a esse ofício.

Machado vive os momentos republicanos olhando para o passado escravista do país e expondo as diferentes liberdades. Ao tratar de um tempo da escravidão ocorrido há meio século, Machado expôs as permanências dessa sociedade nos tempos republicanos através do problema do trabalho e a sua transição do escravo para o livre, das condições de miséria existentes não apenas no período republicano mas que nasceram dessa sociedade escravista, representado no conto pela família de Cândido e dos sonhos de futuro representado pelas crianças. Tanto Arminda quando Cândido vê nos seus filhos a possibilidade de mudança, de retomada de alguns valores afetivos que antes não haviam gozado. Ter o filho em segurança era projetar um futuro distinto do que eles tinham até então. (MORAES, 2009)

Assim é Machado de Assis: irônico, pessimista, melancólico. Sua grandeza está em sua capacidade de ir ao ponto nevrálgico, reservando sempre desenlaces enigmáticos, jamais suspeitados por quem o lê. É por isso que para conhecê-lo não basta uma leitura, mas várias, pois são muitos os disfarces e armadilhas que espalha pelo caminho. Talvez venha daí à sedução que exerce ainda nos leitores de hoje. E, não é sem merecimento que Machado de Assis é hoje reconhecido como o maior romancista brasileiro de todos os tempos.

pensamento de Schwarz sobre literatura é inseparável da reflexão mais ampla sobre política e sociedade, e, nessa linha, podem-se mencionar os ensaios “Cultura e política, 1964-1969” (originalmente publicado em Les Temps Modernes, 1970, recolhido em O Pai de Família).

ASSIS, Machado de. “Pai contra mãe”. In: _ Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro: Ed. Garnier, 1990, p. 17-27.

ASSIS, Machado de. 100 anos de uma cartografia inacabada. Rio de Janeiro, RJ: Ministerio da Cultura, 2008.

MORAES, Renata Figueiredo. Pai contra mãe: a permanência da escravidão nos contos de Machado de Assis. In: 4. Encontro de Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2009. (ONLINE) Acesso em: 02/05/2010. Disponível em:

<http://w.labhstc.ufsc.br/ivencontro/pdfs/comunicacoes/RenataMoraes.pdf>

HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

HATOUM, Milton. Machado de Assis: um século depois. São Paulo, 2008 (ONLINE). Disponível em: <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI3198423- EI6619,0 Machado+de+Assis+um+seculo+depois.html>. Acesso em: 08/05/2010.

LISBOA, Marcia. O Negro no Brasil: a dura luta pela inserção social. In: revista Rumos: economia e desenvolvimento. Ano 25, nº 183, p. 24-32, abr. 2001.

Conto - Pai contra mãe , uma leitura

Já de início o autor/narrador se justifica no conto como sendo a escravidão e a vida uma forma grotesca e cruel.  “Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel”. E continua contando que “pegar escravos fugidios era um ofício do tempo”. Lembra também que “ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem”.

Quem conta um conto - Pai contra mãe

PAI CONTRA MÃE

A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres.  A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dous para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dous pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.