terça-feira, 30 de junho de 2020

Resenha - Febre da Selva - Felipe Machado

Em seu novo filme, “Destacamento Blood”, o diretor Spike Lee usa a guerra do Vietnã para reforçar seu contundente discurso contra o racismo

No início dos anos 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, o músico e ativista Woody Guthrie trazia em seu violão a seguinte inscrição: “essa máquina mata fascistas”. Nos dias de hoje, Spike Lee poderia trazer em sua câmera uma mensagem semelhante: “essa máquina mata racistas”.

Nenhum cineasta é tão relevante hoje quanto Spike Lee. Os protestos contra o racismo que se espalharam pelo mundo desde o assassinato de George Floyd aumentaram a expectativa em torno do novo filme do cineasta negro mais importante de todos os tempos. E Lee não decepciona: desde “Faça a Coisa Certa”, de 1989, ele constrói uma carreira artística sólida e coerente baseada em um discurso contundente contra o racismo. Nesse épico de guerra com duras horas e meia de duração não é diferente. O filme, que estreia na sexta-feira 12, na Netflix, conta a história de quatro veteranos americanos que voltam ao Vietnã atual em busca dos restos mortais de um antigo companheiro e um tesouro enterrado na época da guerra. A premissa é perfeita para Spike Lee criticar a desigualdade racial e o modo como o conflito americano no sudeste asiático foi mostrado pelo cinema. Nomes como Rambo e Chuck Norris, típicos estereótipos dos veteranos do Vietnã, são abertamente ridicularizados. Há uma ironia mais sutil em relação à própria identidade do esquadrão que dá nome ao filme, “Bloods”: é o mesmo nome da principal gangue de Los Angeles. Na metáfora com a guerra urbana, a população negra se enfrenta entre si e se torna o próprio inimigo.

No Vietnã atual, onde se passa o filme, o fantasma da “guerra dos americanos” está em toda a parte, mas escondido na hipocrisia que aos poucos é escancarada pela narrativa. Em um bar, o telão exibe “Apocalypse Now”, clássico de Francis Ford Coppola sobre a guerra do Vietnã. Não é uma piada gratuita: é uma alfinetada nos filmes sobre o conflito, que costumam realçar apenas o valor dos heróis brancos. Em outra cena, quando os veteranos passeiam de barco por um rio, há uma trilha incipiente da “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, outra citação irônica a Coppola. Aqui, porém, não há nenhum traço do glamour apresentado pelo personagem de Robert Duvall, que “ama o cheiro de Napalm pela manhã”. Os personagens de Lee não amam nada naquele pedaço esquecido do mundo, a não ser uns aos outros.

A trilha sonora é um personagem à parte. A combinação da orquestra de Terence Blanchard com as canções de Marvin Gaye imprimem à produção um caráter nostálgico e emotivo. Difícil dizer o que é mais impactante, se são as cenas de ação — ao melhor estilo Tarantino— ou o elenco. Clarke Peters (Otis), Norm Lewis (Eddie) e Isiah Whitlock, Jr. (Melvin) estão bem, mas Delroy Lindo (Paul) está excepcional. A transformação de seu personagem ao longo do filme remete ao Rei Lear, de Shakespeare — a loucura se infiltrando pouco a pouco no vácuo deixado pela razão. Nem o carinho entre os ex-companheiros salvam Paul de seu destino. Spike Lee aprimorou sua linguagem e se torna um cineasta ainda mais autoral a cada filme. Em meio à ficção, fica à vontade para inserir a foto de uma vítima real da guerra ou diálogos que sustentam sua visão de mundo. “Lutamos uma guerra imoral que não era nossa, e por direitos que não tínhamos”, afirma Paul. O conflito no Vietnã acabou em 1975, mas a batalha contra o racismo segue viva nos corações e mentes de todo o mundo.

Revista IstoÉ - 17 de junho de 2020 

quarta-feira, 24 de junho de 2020

Você sabia disso? - A Esfinge

Na mitologia havia vários seres que representavam uma mistura de animais com pessoas. Cada um deles possuía uma função e as pessoas acreditavam nesses mitos e temiam muitos desses seres. Você já ouviu falar na esfinge? Esta é uma criatura mitológica muito conhecida, e ainda hoje podemos encontrar algumas imagens e até esculturas desse ser. O que acha de conhecer um pouco mais sobre a esfinge?

O que é uma esfinge?

A esfinge é uma criatura mitológica que possui o corpo de um leão e a cabeça de um humano (geralmente um faraó), um falcão ou um gato. Segundo a tradição grega, a esfinge possui pernas de leão, asas de um pássaro grande e o rosto de uma mulher. A palavra esfinge deriva da palavra grega sphingo que significa estrangular.

Essas criaturas eram tidas como traiçoeiras e impiedosas, as pessoas que não conseguiam responder seu enigma sofriam um destino bem comum nos contos e histórias mitológicas, eram mortos e totalmente devorados por esses monstros.

Já na tradição egípcia, a esfinge era uma criatura com corpo de leão e cabeça humana. Esta criatura era vista como benevolente, em contraste com sua versão grega, que era má. Era uma espécie de guardiã que geralmente era representada em enormes estátuas colocadas nas entradas dos templos.

O significado da esfinge

Para os egípcios, a esfinge significava poder e sabedoria. Eles acreditavam que elas eram protetoras das pirâmides e dos templos. Por isso é muito comum encontra-las nas entradas de algumas pirâmides ou dentro delas.

Já para os gregos ela era um monstro que assombrava a cidade de Tebas, utilizava enigmas e quem errasse a resposta era morto. Porém Édipo, filho de Laio um dia tomou coragem e enfrentou a esfinge decifrando o seu enigma.

A esfinge egípcia

Na mitologia egípcia, a esfinge era retratada como uma criatura mística e ancestral e assim como as pirâmides, elas simbolizavam o poder com associações solares sagradas. Representadas na forma de um leão com a cabeça de uma pessoa ou de um falcão, entre as esfinges egípcias maiores e mais conhecidas, temos a esfinge do planalto de Gizé, a Sesheps, que fica na Marge oeste do Nilo. Entre as suas patas há um pequeno templo, afirma-se que o rosto dessa esfinge é o do faraó Djedefré, e é datada de algum momento na quarta dinastia.

A esfinge grega

Na mitologia grega, a esfinge era uma criatura que causava certo medo. Ela era guardiã da entrada da cidade grega de Tebas, e só permitia a passagem de viajantes que conseguiam responder seu enigma. Conta-se que os deuses Hera e Ares enviaram a esfinge da Etiópia para Tebas, e lá ela ficou até que Édipo conseguiu desvendar seu enigma. Após isso a criatura atirou-se de um precipício e morreu.

https://www.estudokids.com.br/esfinge-o-que-e-a-esfinge-egipcia-e-a-grega/

terça-feira, 23 de junho de 2020

A Covid - 19 ou O Covid - 19?



A intuição linguística não é um recurso valioso somente para aqueles que lidam cientificamente com os fatos da língua, os linguistas, como também para os usuários em geral. Exemplo disso é o tratamento que damos, especialistas ou não, ao gênero gramatical dos substantivos da língua que crescemos falando ou mesmo de uma língua estrangeira. Em línguas românicas como o português, o espanhol e o galego, impera a tendência geral de que palavras terminadas em -o são masculinas, o livro, el libro, o libro, e as terminadas em -a são femininas, a casa, la casa, a casa, respectivamente. Há, certamente, casos nas línguas que não seguem essa tendência, pois existem nomes com tais terminações que podem pertencer aos dois gêneros ou ser de gêneros opostos ao que se espera. Além disso, não vou entrar aqui no pormenor de -o ser vogal temática e -a ser desinência de gênero, porque não é o objetivo. Por outro lado, os substantivos terminados em outras vogais e em consoantes podem ser de um ou de outro gênero — a ponte, el puente, a ponte / o sol, el sol, o sol — ou, ainda, de ambos.

Voltando à questão da intuição, na região de onde sou, no norte do estado do Espírito Santo, e acredito que em muitas outras partes do Brasil também, é muito comum ouvir “o alface de hoje tá murcho”, ou “o couve ficou muito bom”, quando nos dicionários, nas gramáticas e na escola aprendemos que essas palavras terminadas em -e são femininas. Depois dessa informação, muitos de nós adotamos o gênero dado como oficial, ou passamos a variar entre uma forma e outra, ou, ainda, podemos manter o uso anterior ao da escolarização. Um caso interessante é o da palavra caçula (o/a filho/a mais novo/a), que, apesar de também dicionarizada como caçulo, conforme o Houaiss e o Aurélio (pressão do uso?), tem sido considerada a forma padronizada e pode ser empregada para os dois gêneros, sem a alteração da vogal final, com a mudança do artigo que a antecede: o caçula /a caçula, o filho caçula / a filha caçula. Sou o filho mais novo dos sete que meus pais tiveram, e minha mãe, com apenas quatro anos de escolarização, mas dotada de intuição e sentimentos linguísticos como qualquer um de nós, sempre diz que sou “o caçulo”, porque na cabeça dela o homem é o caçulo, e a mulher é a caçula.

Fiz essa breve introdução porque, dado o contexto de pandemia que estamos vivendo, tem me deixado curioso o gênero gramatical atribuído a Covid-19, principalmente nos usos feitos por órgãos oficiais e imprensa, falada e escrita. Covid-19 é uma sigla em inglês para a doença causada pelo vírus Sars-CoV-2 (também uma sigla vinda do inglês), que desdobrada significa Coronavirus disease 2019, isto é, uma doença causada pelo coronavírus descoberto no ano de 2019. No momento, estou na Espanha, mais precisamente na Galiza, em Santiago de Compostela. Naturalmente, tenho ouvido e lido as notícias sobre o novo vírus e suas “peripécias” em galego e em espanhol, as duas línguas oficiais da Comunidade galega. Por isso, se tornaram comuns aos meus ouvidos e olhos as formas o Covid-19 (galego) e el Covid-19 (espanhol), ambas tratadas como masculinas, portanto.

Por outro lado, comecei a perceber nos usos vindos do Brasil, principalmente da imprensa, a forma sendo posta no feminino: a Covid-19. Antes mesmo de investigar o significado de Covid-19, minha intuição, com um quê de conhecimento especializado, me direcionou para um possível uso metonímico no Brasil, pois até então eu estava entendendo Covid-19 como o nome do vírus, não da doença que ele causa (percebo que muita gente ainda entende dessa forma). Feitas as devidas verificações, a adoção do feminino pela mídia brasileira, como o Grupo Globo e a Folha de S.Paulo, entre outros, se justificava pelo entendimento do “d” de Covid, ou seja, disease em inglês, doença (palavra feminina) em português.

Fato é que aqui na Espanha, a Real Academia de la Lengua (RAE), por tradição e poder, costuma se manifestar quando surgem novidades na língua como a que estou comentando. Por meio do Twitter, um internauta dirigiu a seguinte pergunta à RAE: “Es ‘la Covid-19’ o el “Covid-19?”. Num primeiro momento, a manifestação da instituição foi a de indicar que o emprego no feminino seria o correto, tendo em vista o mesmo entendimento que provavelmente ocorreu no Brasil: se disease é enfermedad (palavra feminina), então “la Covid-19”. Entretanto, pelos canais de comunicação da RAE, chegaram muitos comentários em discordância desse posicionamento. Em função disso, outra resposta veio (e que pode ser encontrada ao lado de outros dados no seguinte endereço eletrônico: https://www.rae.es/noticias/crisis-del-covid-19-sobre-la-escritura-de-coronavirus): “O acrônimo Covid-19 que dá nome à doença causada pelo vírus Sars-CoV-2 é usado normalmente no masculino (el Covid-19) por influência do gênero de coronavírus e de outras doenças virais (o ebola), que pegam por metonímia o nome do vírus que as causa. Mesmo que o uso no feminino (la Covid-19) se justifique por ser doença (disease, em inglês) o núcleo do acrônimo (COronaVIrus Disease), o uso majoritário no masculino, pelas razões expostas, é considerado totalmente válido” (tradução e adaptação minhas). No final das contas, está legitimado o uso masculino por quem costuma legislar sobre a língua espanhola, embora já se pudesse ouvir e ler por aqui em espanhol o emprego feminino assim que a RAE promoveu a primeira manifestação.

Interessante observar que nem a Real Academia Galega (RAG) nem a Academia Brasileira de Letras (ABL) se manifestaram a esse respeito — o que não é bom nem ruim, penso, mas apenas uma constatação. Acredito, inclusive, que no caso da ABL não há nenhuma expectativa sobre isso, tendo em vista seu histórico de pouca ou nenhuma ingerência na normatização linguística do português brasileiro. Notável, no entanto, é que numa visita à página da ABL (http://www.academia.org.br/noticias/), podemos encontrar o emprego no masculino:  “ABL lança ações culturais de enfrentamento ao isolamento social provocado pelo COVID-19”.

Retorno, pois, à intuição linguística. Algo além do metonímico parece estar em jogo nesses usos. Parece haver uma tendência geral nas três línguas para o masculino que pode estar atrelada à forma em si: a finalização em consoante (d) e, em seguida, a presença de um numeral (19). A pronúncia do português brasileiro, de forma geral, acrescenta a vogal [i] após o “d”. Mesmo assim, sua presença não pode ser considerada decisiva, já que não faz parte do grupo da tendência geral de -o para masculino e -a para feminino. Seria então a força do numeral que indica tal tendência? A isso só um aprofundamento na questão poderia responder.

 Mas é interessante como os apresentadores de telejornal e os repórteres em chamadas ao vivo na televisão brasileira tendem a usar o masculino quando estão em situação de fala menos monitorada. Se leem o teleprompter, temos o feminino convencionado (a Covid-19); se se manifestam com algo de espontaneidade, tende a emergir o masculino (o Covid-19) ou a variação entre os gêneros. Nos telejornais espanhóis e galegos, tanto na leitura como na fala (mais) espontânea predomina o masculino (tendência natural), com um ou outro raro uso no feminino (força normatizadora).

Por ora, é essa a reflexão.

Carlos Eduardo Deoclécio 

 Doutorando em Estudos de Linguagem na Universidade Federal Fluminense (UFF), em cotutela na Universidade de Santiago de Compostela (USC), com bolsa pelo Programa Capes/PrInt. Tem mestrado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), onde também se graduou em Letras/Português. É professor do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes), Campus Vitória, há 10 anos, onde atua em disciplinas de Linguística, Língua Portuguesa e Língua Espanhola.

https://www.parabolablog.com.br/index.php/blogs/o-covid-19-ou-a-covid-19

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Você sabia disso? - Glórias Póstumas



Nova tradução para o inglês de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, clássico de Machado de Assis, coloca em evidência internacional o maior nome da literatura brasileira

Um escritor só se torna clássico quando seu nome vira adjetivo; um atributo tão específico que a essência do que ele descreve não pode ser explicado por outra palavra. Pressupõe uma marca tão reconhecidamente universal que passa a ser usada por nós, mortais, para designar um comportamento humano que a gente até sabia que existia, mas que não tinha, até então, criado uma palavra para explicar. É assim com “Kafkiano”, “Maquiavélico”, “Dantesco”. No Brasil, temos “Machadiano”. Reproduzir esse estilo em outro idioma sempre foi o grande desafio dos tradutores de Machado de Assis. Pela repercussão que a nova edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” está recebendo no exterior, podemos dizer que a tradutora Flora Thomson-DeVeaux está saindo vitoriosa.

A nova versão da obra mais icônica da literatura brasileira foi lançada no início de junho nos Estados Unidos pela Penguin Classics. Sua simples publicação por uma editora tão tradicional já imprimiria ao título um status de clássico. Não que “Memórias Póstumas” precisasse disso: nasceu clássico desde que foi publicado em capítulos na Revista Brazileira, em 1880. Quando saiu pela primeira vez em livro, no ano seguinte, já era eterno.

A tradutora e ensaísta Flora Thomson-DeVeaux é americana, mas seu sotaque carioca é mais forte e perceptível que o estrangeiro. É formada em espanhol e português pela Universidade de Princeton e tem doutorado em estudos portugueses e brasileiros pela Brown. A tradução fez parte da sua tese de doutorado, que inclui ainda um extenso estudo crítico sobre Machado. Flora começou a aprender português quase por acaso, em 2009, apenas para acrescentar um idioma à grade curricular em Princeton. Como já falava espanhol, achou que seria fácil se incluísse outra língua latina. “Foi mais difícil do que eu esperava”, lembra, mas seguiu em frente.

Flora credita sua vocação para as línguas à herança musical: a mãe é pianista, a avó era professora de música. O pai é musicólogo; o avô, professor de música medieval. Durante o curso de português foi convidada para traduzir uma biografia de Carmen Miranda. O livro não saiu, mas ela se apaixonou pelo Brasil. Em 2011, veio fazer um intercâmbio de seis meses e, assim que colocou os pés em solo carioca, se apaixonou pela terra que só conhecia pelas palavras. As paisagens que habitavam seus sonhos se materializaram diante de seus olhos, sensação que o clichê nos obriga a descrever como “amor à primeira vista”.


Voltou para os EUA, onde traduziu “Machado de Assis: Por uma Poética de Emulação”, premiado livro de João Cezar de Castro Rocha, professor de Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Ao se deparar com trechos citados pelo acadêmico e compará-los com as versões americanas, percebeu que as traduções eram corretas, mas não reproduziam o estilo “Machadiano” do original, ou seja, a ironia discreta e cortante, as diversas camadas de complexidade escondidas nos detalhes da narrativa. Passou a traduzir os trechos por conta própria.

O resultado, “Machado de Assis: Toward a Poetics of Emulation” (Por uma Poética da Emulação), foi publicado pela editora da Michigan University em 2015. Quando leu “Memórias Póstumas” pela primeira vez, ficou impressionada com o tom sarcástico e divertido do texto e decidiu que ele seria o objeto de sua tese de doutorado. Cinco anos depois, sua tradução foi publicada pela Penguin Classics e tem recebido uma atenção surpreendente: em menos de 15 dias, as duas primeiras tiragens se esgotaram e o livro já está indo para a terceira edição – a editora não divulga os números de cada edição. “Por mais que eu soubesse que o livro é excelente, não esperava esse sucesso”, afirma a tradutora. “Está indo tudo muito rápido.”

Essa é a quarta tradução do livro de Machado de Assis para o inglês. A primeira saiu em 1952, quando William Grossman lançou Epitaph of a Small Winner (Epitáfio de um Pequeno Vencedor). Pouco depois, em 1955, o inglês Percy Ellis lançou outra versão, Posthumous Reminiscenes of Braz Cubas. A terceira tradução foi feita em 1997 por Gregory Rabassa, renomado tradutor de literatura latino-americana. Ele é o responsável, por exemplo, pela primeira e única tradução de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, para o inglês, e costuma ser creditado como um dos responsáveis pelo sucesso da obra no mercado internacional.

Segundo João Cezar Castro Rocha, as traduções anteriores de “Memórias Póstumas” não haviam sido bem sucedidas na tarefa de manter a complexidade do texto original. “Há uma simplicidade enganosa no estilo de Machado. Seu texto é uma explosão de ambiguidades e exige um tradutor que entenda muito bem não apenas o idioma, mas as camadas de ideias presentes ali”, afirma o professor. “A tradução de Flora é uma façanha porque em vez de aplainar o texto, ela explicou suas opções idiomáticas em notas e no estudo crítico que acompanha a nova versão”, afirma Castro Rocha. “Quando se traduz Flaubert ou Goethe para o inglês, tanto o tradutor quanto o leitor estão preparados para dedicar um esforço suplementar, que é recompensado pela qualidade superior da obra. Se o leitor aceita penetrar na prosa labiríntica de Marcel Proust, ele também pode investir para compreender Machado de Assis.”

Mercado global

Apesar de já ter sido elogiado por nomes como Philip Roth, Susan Sontag, Allen Ginsberg, John Updike e Salman Rushdie, entre outros, Machado nunca foi um best-seller no mercado internacional, como aconteceu com outros escritores latino-americanos como García Márquez e Vargas Llosa. “Esse boom da literatura latino-americana que começou em 1967 com “Cem Anos de Solidão” não foi impulsionado por um único nome, mas por toda uma geração: principalmente García Márquez e Vargas Llosa, mas também Ernesto Sábato, Juan Rulfo, Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares. Além disso, havia um interesse global pela situação em Cuba, o mundo tentava compreender o que pensava a América Latina. Não há nada similar no momento, Machado chega ao mercado internacional sozinho.”

Mídia essencial

O escritor Silviano Santiago, autor de “Machado”, obra em que recria os últimos anos da vida de Machado de Assis, acredita que há duas fases da literatura brasileira nos Estados Unidos. A primeira, nos anos 1950, teve foco acadêmico e foi inspirada por ensaios do escritor John Barth e as primeiras traduções de “Memórias Póstumas”, por Grossman, e “Dom Casmurro”, pela crítica Helen Caldwell. A americana foi além, publicando um estudo que se tornou famoso entre os intelectuais pela analogia entre os personagens de Machado e a trama de “Otelo”, de Shakespeare. A segunda fase, segundo Santiago, é mais midiática e teve início com “Clarice”, biografia do americano Benjamin Moser sobre a escritora Clarice Lispector, lançada nos EUA em 2009. O livro ganhou destaque e entrou para a lista de melhores lançamentos do ano do jornal “The New York Times”. Em 2020, além de “Memórias Póstumas”, a literatura brasileira chama a atenção da mídia graças à nova tradução de “São Bernardo”, de Graciliano Ramos, feita pela professora Padma Viswanathan.



“Se a primeira fase foi a do conhecimento, agora temos a fase da divulgação”, afirma Santiago, que teve uma respeitável carreira acadêmica nos Estados Unidos como professor visitante em universidades como Stanford, Princeton e Yale. “A cobertura da imprensa é fundamental. A nova tradução de “Memórias Póstumas” recebeu grande destaque na New Yorker, o que é um fator importante para tornar o autor conhecido do grande público”, afirma Santiago. Ele se refere ao prefácio do livro escrito pelo autor americano Dave Eggers — autor de “O Círculo”, entre outros — e publicado na prestigiada revista americana. Santiago, que também é tradutor, aponta o que é necessário para uma versão de Machado ser bem sucedida. “É preciso encontrar uma voz, um estilo literário que consiga reproduzir a singularidade da narrativa em inglês. Como a apresentação de Dave Eggers ressalta o humor e a ironia do livro, é provável que a tradução tenha sido bem sucedida na representação do estilo “machadiano”. A nova edição em inglês vai garantir que, ao contrário de Brás Cubas, Machado de Assis poderá transmitir a milhares de criaturas o legado de sua riqueza. Dessa vez, no mundo inteiro.

“Na primeira vez que li Machado, fiquei chocada”

Insatisfeita com as versões existentes, a tradutora Flora Thomson-DeVeaux recorreu a dicionários do século 19 para recriar o estilo “Machadiano” em inglês

Como você conheceu a obra de Machado de Assis?
Eu estava estudando português em Princeton quando me disseram que eu só iria entender o Brasil depois de ler ‘Memórias Póstumas’. Comprei uma edição no dia seguinte. Já nas primeiras páginas, tive que abaixar o livro e tomar fôlego. Não esperava algo tão divertido e sarcástico. Mesmo tendo uma familiaridade com a literatura do século 19, fiquei chocada.

O que te chocou tanto?
As sacadas do texto são muito impactantes. Tive que voltar a ele várias vezes antes de traduzi-lo. Na primeira leitura, achei Brás Cubas muito espirituoso, engraçado. Depois fui mergulhando na aspereza, na crueldade que, para mim, é o lastro do livro. Aquele olhar da sociedade, a visão da elite carioca. Ao longo do processo de tradução, fui do riso às lágrimas. Uma risada dolorida.


O livro já tinha três traduções para o inglês. Por que fazer uma quarta?
Comecei a comparar os trechos em português e em inglês e vi que as traduções anteriores não estavam erradas, mas alguns detalhes simplesmente não casavam. Isso me chamou a atenção e me motivou a encarar o desafio. Decidi que não queria traduzir apenas alguns trechos, mas o livro todo.

E por que “Memórias Póstumas”, entre a vasta obra de Machado de Assis?
Eu sabia que seria um grande desafio, mas confesso que a escolha teve um lado afetivo. Me apaixonei pelo livro. Sabia que o processo seria longo e mereceria anos de pesquisa e reflexão. Do mergulho na crítica ‘Machadiana’ ao término do processo de tradução foram cinco anos, de 2014 a 2019.


Como foi o contato para a publicação do livro?
Como eu já trabalhava com traduções, comecei a bater de porta em porta assim que a tese ficou pronta. Fiquei surpresa porque a Penguin Classics topou rapidamente. Os editores acreditaram no projeto.


Contos que a realidade não deixa esquecer

Organizado pelo professor João Cezar de Castro Rocha, a antologia “Contos (Quase) Esquecidos de Machado de Assis” reúne numa bela edição da Filocalia raridades e textos que não estão nas coletâneas populares. São quatro eixos temáticos: Música e Literatura; Política e Escravidão; Desrazão; Filosofia. Como são apresentados em ordem cronológica, é possível acompanhar a evolução do estilo “Machadiano” e de suas opiniões sobre determinados temas. Destaque para “Mariana”, sobre uma escrava apaixonada pelo seu senhor que se suicida ao perceber que o relacionamento não seria aceito pela sociedade. Um conto corajoso que expressava em 1871 uma realidade tão atual que é impossível esquecer.



Você sabia disso? - A negligência da madame

A morte do menino Miguel Otávio da Silva, de 5 anos, que caiu do nono andar de um edifício de alto luxo em Recife (PE), exibe alguma das piores mazelas da sociedade brasileira e envolve vícios locais como o racismo, o trabalho servil, a falta de empatia e a irresponsabilidade das elites. O caso mostra que ainda se vive por aqui num clima de casa grande e senzala onde os brancos e ricos podem tudo e sempre têm um tratamento privilegiado. Miguel era uma criança feliz, inteligente e ativa, que estava se alfabetizando e sonhava em ser jogador de futebol. Caiu de uma altura de 35 metros, enquanto estava sob os cuidados de Sarí Corte Real, patroa de sua mãe, a empregada doméstica Mirtes Renata de Souza. Sarí estava fazendo as unhas com uma manicure no momento do incidente. Mandou Mirtes passear com seu cachorro na rua e ficou com o menino sob sua responsabilidade. Deveria estar atenta aos seus movimentos, mas, como se viu por imagens de câmeras de segurança do prédio, o incentivou a entrar no elevador sozinho. Isso deflagrou sua morte.

O caso causou comoção em todo o Brasil e tem motivado protestos frequentes em Recife, principalmente em frente ao edifício Píer Maurício de Nassau, no Cais de Santa Rita, onde aconteceu a tragédia. O que mais aumenta a revolta dos movimentos sociais, entre eles o recém-criado Justiça para Miguel, foi a tipificação do crime feita pelo delegado responsável pelo inquérito, Ramon Teixeira, titular da delegacia seccional de Santo Amaro. Teixeira, com base em investigações preliminares e de uma maneira benevolente e precoce, classificou a morte de Miguel como um homicídio culposo, quando não há intenção de matar. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE) cobra um inquérito rigoroso e considera a possibilidade de Sarí ter agido movida pelo chamado dolo eventual, quando há egoísmo, já que era conhecedora e aceitou os riscos do que fez. A lei não permite que menores de 10 anos usem elevadores sem acompanhante. Mas Sarí, que é primeira-dama do município de Tamandaré, onde seu marido Sérgio Hacker é prefeito, foi autuada e liberada após pagar fiança de R$ 20 mil. Escapou da audiência de custódia e da prisão em flagrante, apesar das imagens da câmera de segurança mostrarem a primeira-dama abandonando Miguel à sua própria sorte.

“Esse crime revela aquilo que a gente vem combatendo há décadas, que é a questão do racismo. Para começar, a trabalhadora deveria estar na própria casa, de quarentena. Trabalhadores domésticos não cumprem uma função essencial”, diz Luiza Pereira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e diretora do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco. “Mas essa sociedade está acostumada à servidão. É uma sociedade branca, escravocrata e com privilégios para poucos”. Segundo Luiza, Sarí é uma mulher protegida, a família Corte Real se destaca no mundo empresarial e na política e houve uma clara benevolência por parte do delegado ao tipificar o crime. “A mão da Justiça com uma pessoa branca e rica é sempre leve. Mas para quem é negro e mora na periferia, ela é muito pesada”, afirma Luiza. Segundo ela, a situação das empregadas domésticas em Recife é bastante precária. Apesar dos direitos assegurados à categoria, a informalidade no estado chega a 75%. A maioria das empregadas tem trabalhado normalmente durante a quarentena.

A OAB, em defesa da legalidade e dos direitos humanos, decidiu acompanhar o caso como membro da sociedade civil, e já abriu diálogo com outras organizações, como a Rede de Mulheres Negras. O que a entidade busca é que se possam produzir todas as provas e que o inquérito se desenvolva da melhor forma. “Estamos acompanhando o caso e queremos que se produzam todas as provas”, afirma o presidente da Comissão de Direitos Humanos da entidade, Cláudio Ferreira. “Há um dissenso entre a comunidade jurídica do estado quanto ao animus da pessoa que levou a criança ao elevador e apertou o botão do 9º andar”, diz. Para Ferreira, a manicure, única testemunha, tem que ser ouvida. O inquérito também precisa colher informações da relação da patroa com a criança. O delegado Ramon Teixeira tem um histórico de decisões controversas. Em 2018, levou à prisão dois homens negros, Wilson da Silva e Bruno de Andrade, acusados do assalto a uma imobiliária. Para prendê-los, Teixeira usou imagens de câmeras de segurança, mas não fez prova de reconhecimento facial. Wilson acabou preso por um ano e meio e Bruno, por nove meses, até que se descobriu que eram inocentes. “O inquérito foi cheio de falhas”, afirma Ferreira.

Pela imprensa, na sexta-feira 5, três dias após a morte do garoto, Sari divulgou uma carta em que pediu desculpas pelo que fez a Mirtes. A mãe de Miguel diz que o pedido nunca foi feito diretamente a ela e, também por meio de carta, disse que não pode perdoar a ex-patroa antes da “aplicação de uma pena” porque perdoar seria como “matar Miguel novamente”. “Sabemos que ela (Sarí) não trataria assim o filho de uma amiga. Ela agiu assim como o meu filho, como se ele tivesse menos valor, como se ele pudesse sofrer qualquer tipo de violência por ser ‘filho da empregada’”, disse Mirtes. “Eu não recebi qualquer pedido de desculpas. A carta de perdão foi dirigida à imprensa, o que me fez pensar que eu não era destinatária, mas sim a opinião pública com a qual ela se preocupa por mera vaidade e por ser um ano de eleição”, completou.

A questão eleitoral é importante porque a família Hacker compõe uma dinastia de políticos e domina as cidades do litoral sul pernambucano. Além de Sérgio, prefeito de Tamandaré, seu primo Franz Hacker é prefeito de Sirinhaém e sua mãe, Isabel Hacker, é prefeita de Rio Formoso. Todos pertencem ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), mesmo partido do governador do estado, Paulo Câmara. Sérgio integra a terceira geração da oligarquia iniciada com seu avô, José Hildo Hacker. Por parte de pai, é sobrinho de Jorge Corte Real, dono da construtora AB Corte Real e ex-deputado federal pelo PTB. Descobriu-se que Mirtes, assim como a mãe, Marta, que também prestava serviços à Sarí, eram registradas como funcionárias da Prefeitura de Tamandaré.

Entre os observadores da OAB designados para acompanhar o caso está a advogada Maria José Amaral, que vê no inquérito um claro esforço para proteger Sarí. Ela percebe isso, por exemplo, na decisão da polícia de não identificar o nome da primeira dama de Tamandaré depois da morte de Miguel. “O meu espanto logo depois da morte foi ouvir a polícia falar, em vez do nome de Sarí, a proprietária da unidade ou a moradora do 5º andar”, diz Maria José. “Só três dias depois, a TV mostrou a imagem da mulher dizendo que era a esposa do prefeito”. Segundo a Policia Civil, o nome de Sarí não foi revelado por causa da lei 13.869 ou lei do Abuso de Autoridade, que impede a divulgação de nomes de suspeitos de crimes em investigação. O argumento procede, mas se em vez de uma mulher branca e rica, o suspeito fosse um homem negro e pobre, o procedimento seria bem diferente.



O caso do menino Miguel mostra um abismo entre as classes sociais em Pernambuco e expõe uma sociedade oligárquica e racista. Também relativiza um dos livros mais importantes da sociologia brasileira, “Casa Grande e Senzala”, do pernambucano Gilberto Freyre. Conhecida pela leveza na análise da escravidão, a obra suavizou a violência na sociedade brasileira e romantizou a relação entre brancos e negros. Minimizou a crueldade e o desleixo que costumam acometer essa relação e que, em atos como o de Sarí Corte Real, se expressam com perfeição.

Revista IstoÉ - 17 de junho de 2020 


Entrevista - Antônio Pitanga - "Represento uma multidão que tem um grito sufocado"


Ele desafiou até mesmo a mãe ao nascer. Ela planejava para o dia 13 de junho para homenagear Santo Antônio, mas ele veio antes, no dia 6 de junho de 1939. Hoje, Antônio Pitanga está em isolamento social, junto com a esposa Benedita da Silva, deputada federal e ex-governadora do Rio de Janeiro. Morador das proximidades do aterro do Flamengo faz sua caminhada matinal e depois se organiza para os afazeres em casa. Também ajuda a esposa com as tarefas do gabinete. Pitanga tem um currículo de sucesso na TV, no teatro e no cinema. Aos 81 anos, participou de mais de 50 filmes e continua na ativa. Seu último filme “Casa de Antiguidades” representa o Brasil no Festival de Cannes e tem como tema principal o racismo. O seu próximo projeto é o filme “Males” que fala sobre a revolta do povo africano e será gravado pós-pandemia com elenco 99% negro. Crítico ao governo Bolsonaro, Pitanga é um entusiasta da juventude e acredita que o movimento negro tende a se organizar melhor. “Sou representante de uma multidão que tem um grito sufocado”, disse, em entrevista à ISTOÉ.


A arte no Brasil passou por vários momentos, foi até marginalizada. Como estão hoje: a arte e os artistas?
Nós éramos equiparados às prostitutas, e sem desmerecê-las, nós artistas não fazemos parte dessa profissão. As elites tiveram que nos engolir. O povo é a cultura! O governo é que não tem a sensibilidade e visão de nos reconhecer como profissionais. Mesmo hoje nós não estamos classificados como trabalhadores. Não dá para pensar que todos são Antônio Fagundes, Lázaro Ramos, Tony Ramos, Sônia Braga. Por trás das grandes estrelas existe um exército de invisíveis que faz o show acontecer. E agora durante a pandemia deixaram todos fora do auxílio emergencial. A cultura é um braço importante da economia nacional que movimenta R$ 24 bilhões por ano. São mais de 5 milhões de pessoas envolvidas na cultura em todo o País.

O seu trabalho mais recente, o filme “Casa de Antiguidades”, foi indicado ao Festival de Cannes. Qual a importância do reconhecimento dessa obra que fala de racismo?
É muito importante. É um personagem muito próximo de todo o início da minha carreira. Ele é um segundo “Barravento” na minha vida. Nele, lutamos contra todo tipo de preconceito, todo tipo de perseguição, seja religiosa, de cor de pele ou contra nordestinos. Eu estava nas ruas na década de 50 e 60 vendo nascer o Black Panther, Malcolm X, Martin Luther king, Patrice Lumumba. Esse personagem do “Casa de Antiguidades” está cicatrizado na minha alma. Como dizia o Waly Salomão, “o cérebro é uma ilha de edição”. Eu só puxei, já estava tudo ali. Essa obra é especial nesse momento que todas as mãos negras e brancas estão nas ruas. Porque nós negros já estamos há décadas sem conseguir respirar.

O senhor já sofreu discriminação racial?
Claro e quantas vezes. Imagina o negro que quer ser artista. Quer viver da arte. Cuja arte nem era reconhecida. Foram muitos os caminhos para poder resgatar minha autoestima, sem ter ódio, sem ter qualquer tipo de azedume, sem sentimento de vingança. Mas nessa estrada eu fui registrando quantos impedimentos tive, quantas porteiras fechadas. Sempre respondendo e não perdendo o foco no objetivo da minha caminhada. Na escola em que estudei no Ipiranga, onde estudou Castro Alves na Bahia, eu era o único negro. Existe um processo subliminar covarde para que você se renda, fique de joelhos e não tenha força para continuar. É a arte da guerra. A gente precisa ter uma fortaleza para compreender o outro e criar uma terceira ou quarta pele pra poder suportar: sem ceder e sem achar que isso é maravilhoso. Eu sou representante de uma multidão que tem um grito sufocado.


Porque o governo Bolsonaro mantém um distanciamento da classe artística?
Porque é proibido pensar. A cultura é um instrumento socializador de qualquer civilização e alcança multidões. Com voz e vez ela pode dar esclarecimento ao povo e isso não serve para o atual governo.
A atriz Regina Duarte ficou muito pouco tempo no comando da Cultura. Qual foi o papel que ela desempenhou no governo?
A Regina é uma pessoa que eu conheço há quase 50 anos. Surpreendeu-me ela assumir um cargo e dizer que era a noiva do Bolsonaro. Eu não conhecia essa Regina. Ela esteve sem nunca ter estado. Fez um desserviço à cultura. Até hoje eu quero entender o que a Regina teve na cabeça. Ela traiu seus irmãos, traiu uma categoria. É como se ela dissesse que a carreira dela é uma mentira. Porque ela representou um governo que não tem o menor respeito pelos artistas.
Onde o senhor acha que o presidente quer chegar com os ataques às instituições e aos seus opositores?
Ditadura né! Só ele tem voz. Só ele decide. Ele mesmo disse que sabia onde estava o corpo do pai do presidente da OAB, o Felipe Santa Cruz. O Bolsonaro diz que a Ditadura não fez o serviço completo, tinha que matar e esquartejar. O que me surpreende é que ele não é uma mentira. Ele falou para uma deputada no Congresso: “eu não te estupro porque você não merece”. Disse que não gosta de mulher, de gay, de negro, de índio. Que movimento raivoso é esse dos eleitores que o escolheram? Poderiam ter escolhido Ciro Gomes, Alckmin, Haddad, qualquer um.
Desde a redemocratização dos anos 80, este é o período mais difícil para a democracia brasileira?
É. Porque você vivia na democracia mais longa, 30 anos. Houve um golpe democrático, porque o Bolsonaro foi eleito pelo voto. Mas a história não mente, porque o Mussolini foi eleito pelo voto. O Hitler também foi eleito com o voto. É um golpe mais pesado para a democracia. Porque o Bolsonaro é um civil, mas que mostra bem as garras ao sentar na cadeira de presidente da República. Ele dizia no Congresso que usava a verba de gabinete para comer mulher. É uma dor grande o atual momento.
De onde virá uma solução que responda às questões de miséria e desenvolvimento social do Brasil?
Ela virá no momento em que a esquerda tiver a capacidade de sentar, tirar os seus egos, esquecer as disputas ideológicas, ter humildade de enxergar o tamanho de nação com 212 milhões de habitantes, com um povo ávido para que os políticos apresentem uma nova maneira de agir. A esquerda ainda tem um discurso democrático seja com Brizola, Lula, Fernando Henrique ou Arraes. A direita não tem nada além de um pensamento fascista.

Bolsonaro desrespeita os mais necessitados?
Ele diz que é só uma gripezinha. Ele classifica os filhos como 01, 02, 03, 04. Ele não tem coração, Bolsonaro não tem comportamento humano. Ele não tem um senso de família. Quem tem senso de família teria uma extensão da família ao lidar com o povo. Não existe o povo para ele. Os melhores amigos já estão se afastando.
A Covid-19 deixou claro que o barco Brasil não está preparado com botes salva-vidas para todos. Depois da pandemia o senhor acredita que as pessoas terão uma postura mais solidária frente à miséria.
Eu espero, mas isso não é uma questão brasileira, é uma questão mundial. O povo só se une a partir da tragédia. A solidariedade nasce com o combate ao sarampo, a gripe espanhola, na Segunda Guerra Mundial. Nesse momento a gente está tendo tempo de fazer uma revisitação aos nossos pensamentos para sermos melhores. O presidente esconde o resultado diário de mortes. Espero que a gente adquira uma consciência e saia dessa quarentena melhor.
A educação de jovens pobres no ensino público é de imensa desigualdade frente aos jovens do ensino privado. O isolamento mostrou a distância tecnológica?
Total distância. Entendo que quando você utiliza meios de comunicação, redes sociais para que o jovem com tablet e computador possa ter o direito de ter aula em casa. Mas milhões de jovens não tem esses instrumentos. É preciso que essa consciência possa emergir de nós nessa situação. Do mesmo modo que eu vivi, que eu senti por ser negro. Como você sai e constrói a partir da negação, do isolamento, da invisibilidade, do preconceito, de todo tipo de discriminação e emerge criando dignidade e autoestima? Estamos com a oportunidade de ver como a educação é realmente tratada apenas para alguns e não para a maioria.
É possível para o jovem das comunidades mais pobres, independentemente das questões raciais, competir em grau de igualdade no ensino público superior ou mesmo disputar uma vaga no mercado de trabalho?
Acredito que sim. Porque as oportunidades nascem mesmo num processo em que te negam. Aí é que você cria condições para moldar o ser humano que pretende ser. É a superação. Nós vamos sair desse processo superando muitas adversidades. Eu sou romântico. Vamos construir com a adversidade uma nova nação. Não acredito que a gente saia de tudo isso mais pobre.
Qual a expectativa das pessoas mais pobres, em especial da população negra com a atual crise econômica?
É mergulhar na fonte da educação. Independentemente de ser negro ou branco. Tem que trazer a educação para ser o pilar número um. Para, a partir da educação, crescer. Esse foi o legado que os meus pais me deram. O negro precisa disso. Nós precisamos disso. Os governantes não precisam nos dizer isso. Os nossos pais nos dizem isso desde muito cedo. O momento que o negro detém o conhecimento ele se torna muito importante. Sou fã do Luiz Gama, uma criança que nasceu livre. Com dez anos se tornou escravo, depois do pai, um fidalgo português, perder a liberdade num jogo de cartas. Ele só foi aprender a ler e escrever aos 17 anos. E esse cara virou um dos maiores advogados da causa negra. A educação é o conhecimento da alma humana.
O preconceito tende a aumentar?
Claro que vai aumentar. No momento que você detém o conhecimento ele é uma arma, uma força, é uma potência. Há um movimento no mundo que brota, para acordar. Para que os negros tenham voz e vez. Parece que surpreende esse preconceito, mas sempre esteve ali guardado. Estamos conquistando espaços que nos foram negados por centenas de anos. É uma reação visceral.
A reação da população brasileira à morte do garoto negro de 14 anos João Pedro foi proporcional ao tamanho da violência?
Não foi e é muito preocupante. Somos uma população formada por mais de 50% de pessoas negras. Nós estamos tendo uma reação muito maior com a morte do americano George Floyd do que as nossas crianças. Não só o João Pedro, assassinado com 70 tiros na sua residência, como outros 80 tiros do Exército no carro de uma família negra que ia para um chá de bebê. Não é normal. Eu fico muito espantado. Não existiu reação, não aconteceu e eu cobro isso. Precisa ter uma reação humana em se ver uma tragédia dessas. Me assusta ver como o braço do poder ainda metralha crianças negras.
Por que nos Estados Unidos a reação foi tão impactante?
Porque nos Estados Unidos você tem um componente de liderança muito forte, que é a igreja evangélica. Eu fui com a Benedita a Washington conhecer a igreja frequentada pelo Obama. A igreja evangélica americana traz pela religiosidade um calor, uma presença de organização e defesa do povo negro muito evidente. No Brasil, você tem na colonização um número de africanos sequestrados em mais de 54 países e que foram dizimados ao chegar ao maior interposto de escravos. As famílias que chegavam com conhecimento eram dizimadas ou classificadas como lotes e enviadas para distintos locais. Essa foi a realidade de fundação. Essa foi a grande manobra do colonizador para governar. O candomblé que poderia ser o guia religioso do negro do Brasil, perdeu esse elo com a causa. Nos Estados Unidos são 13% de negros, mas como uma força de organização muito maior que a nossa.

O governo Bolsonaro atrapalha no combate ao racismo?
Ele bota um presidente negro na Fundação Palmares que não se reconhece como tal.
O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, chamou o movimento negro de: “escória maldita, que abriga vagabundos”. O que senhor responderia a ele?
É um negro que é um capataz. Ele acha que é loiro de olhos azuis. Ele não se enxerga. Ele não se olha no espelho? Que pobreza de alma desse homem! Ele está a serviço de quem, para quem? Eu tenho dificuldade de entender essa família negra que tem vergonha dele. Essa mãe que pariu esse cara tem que dizer que ele não é loiro de olhos azuis: você é negro. Sua pele grita do chicote que dobraram nas costas dos seus antepassados. O Sérgio é a avacalhação de uma raça, de um povo. Que chicote bateu nesse cara. Ele nega a Fundação Palmares que foi criada pela Benedita no governo do presidente José Sarney para dar dignidade e voz ao povo negro. Negar isso é negar a cultura brasileira. É negar dança, música, culinária, jeito de ser. Ele nasceu no coração do Brasil, não foi na Áustria. Não há muitas palavras para tentar classificar esse cidadão.
A atual geração está melhor educada para se defender dos preconceitos sociais.
Está sim. Na minha época a gente tinha a informação por cabo submarino. Por acaso até trabalhei nessa área na Uespa, uma empresa de telégrafo inglês. Você mandava a informação e só duas horas depois chegava. As notícias vinham de navio, demoravam. Hoje com tantas ferramentas tecnológicas que a globalização traz de presente dá para se comunicar com o mundo. Então tem uma juventude seja negra, branca, homens, mulheres que tem uma fonte de conhecimento para se libertar e tem condições de se organizar como nós não tivemos. A gente tem a luz do futuro. Quando eu sai do Brasil em 1964, em 16 de abril, no início da ditadura de Castelo Branco, eu fui para a África e fiquei quase dois anos por lá. Eu podia ter me exilado na Europa ou no Chile. Fui para a África porque eu queria conhecer mais, saber da minha origem, ter mais informação. Aprofundei-me na discussão racista. Entendi a importância de James Meredith, o primeiro negro que se formou numa universidade dos EUA, em 1963. Essa consciência eu tive a partir da leitura.
Em 80 anos de vida o que, essencialmente, mudou nas relações humanas no Brasil que pode nos deixar otimistas em relação ao futuro?
Mudou para melhor, eu olho no retrovisor da minha caminhada e vejo muita esperança nos olhos dessa juventude negra. O sucesso de representantes do povo negro como Thaís Araújo, Lázaro Ramos, Camila Pitanga, Fabrício Boliveira, Maju Coutinho me emociona. Porque eu vejo em cada um o resultado de uma trajetória que deu frutos. Sinto como se todos fossem meus filhos. Hoje vem uma juventude que não é racista, que não é alienada, que tem vigor e um olhar promissor. Também em relação à política essa nova juventude não é radical, ela faz política com mais generosidade. Eu tenho dito muito para a minha mulher e meus filhos que eu vou retardar a minha morte porque eu quero assistir o resultado desse projeto de humanidade. É um novo olhar que me dá força para continuar vivendo.

Revista IstoÉ - 17 de junho de 2020