domingo, 24 de novembro de 2019

Artigo de Opinião - Materializou - se o Partido da Bala - Flávia Oliveira

No país em que a morte está se tornando partido político por iniciativa do presidente da República, ficar vivo é ato revolucionário. Desde o início de 2019, são evidentes os sinais de que o Brasil caminha para o Estado de extermínio e impunidade. No Legislativo, tramita o pacote anticrime do ministro Sergio Moro, que pretende instituir redução de pena ou absolvição para homicídios cometidos por agentes da lei sob argumento de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Chamam de excludente de ilicitude, eufemismo para licença para matar. É mecanismo que, aplicado no Rio de Janeiro às margens da legislação pelo governador Wilson Witzel, deu em 1.402 mortes decorrentes de intervenção policial de janeiro a setembro, salto de 18,6% sobre um ano antes. Em 2018, o Anuário Brasileiro da Segurança Pública contabilizou 6.220 homicídios cometidos por policiais no país, 17 por dia.
Jair Bolsonaro já assinou decretos flexibilizando a posse de armas de fogo e prometeu indulto a policiais “presos injustamente”, seja lá o que isso signifique. Ontem, enviou ao Congresso Nacional projeto de lei para isentar de punições militares das Forças Armadas, policiais federais e integrantes das forças de segurança participantes de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), prerrogativa exclusiva da Presidência. A proposta foi anunciada durante o lançamento da Aliança pelo Brasil, partido ao qual pretende se filiar. Por encomenda do deputado estadual Delegado Péricles (PSL-SP), informou o portal UOL, o artista Rodrigo Camacho produziu com quatro mil cartuchos de munição .40, .50, 762 e 556 a marca da legenda.
Sem sutileza materializou-se o Partido da Bala, oficializou-se a necropolítica. É engrenagem para engordar as estatísticas nefastas de um país em que, segundo o Atlas da Violência 2019, publicação oficial do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 65.602 pessoas foram assassinadas em 2017, das quais 72,4% por arma de fogo; 35.785 mortos tinham de 15 a 29 anos; três em cada quatro eram pretos ou pardos. No mesmo ano, 4.936 mulheres foram mortas, 13 por dia, recorde em uma década; duas em cada três eram negras. Entre 2012 e 2017, mais da metade das mulheres (53,8%) foi morta à bala.
Nesse ambiente, resta às mulheres e aos homens negros a desobediência de ficarem vivos. Como ensina a escritora e professora Conceição Evaristo: “Eles combinaram nos matar. Nós combinamos não morrer”. Até ver a fotografia da logo construída com balas, eu escrevia sobre o pacto de existência firmado por ancestrais sequestrados de África e escravizados no Brasil, mas que hoje vivem no DNA dos 55,8% de brasileiros que se declararam pretos ou pardos. Refletia sobre isso após produzir uma resenha sobre “Escravidão”, primeiro volume da nova trilogia do best-seller Laurentino Gomes.
O livro enfileira histórias, estatísticas, imagens e mapas dos três séculos e meio de brutalidade que forjaram o Brasil — e ainda o habita. Por falta de documentos e evidências físicas, personagens tornados heróis do povo negro, como Dandara e Zumbi dos Palmares, têm a existência contestada. Entre africanos e indígenas a transmissão oral de conhecimento é tradição, mas a História oficial, ditada e escrita pelos colonizadores europeus, põe em dúvida o que não foi impresso. É cultura que não dialoga com o vento, despreza o invisível, ignora o encantamento, só existe na matéria.
Talvez por isso, o povo preto tenha aprendido a falar e ler e escrever e publicar em português. Figuras desconhecidas até outro dia provaram-se protagonistas da trajetória de luta por liberdade e direitos, a partir de investigações científicas e produção acadêmica que resgataram textos, fotos, restos mortais. E renderam livros, espetáculos teatrais, documentários, revitalização de cidades. Que o digam o Cais do Valongo e a Pequena África, Luíza Mahin e Luiz Gama, Maria Firmina dos Reis, os irmãos Antonio e André Rebouças, Machado de Assis.
Falta à gente preta assegurar a permanência. No Estado de extermínio, ela se dará com lápides gravadas com nomes, sobrenomes, datas de nascimento e de morte. Nossos túmulos serão provas inequívocas da matança de nossos jovens e da teimosia dos anciãos que alcançarem a longevidade. Os escafandristas saberão decifrar o que o Brasil fez com seus filhos. E o que eles sempre fizeram para existir.

Jornal O Globo 

Artigo de Opinião - O atestado do desastre - Bernardo Mello Franco

Desde a campanha, Bolsonaro promete facilitar a vida dos desmatadores. No poder, ele se aliou aos madeireiros e passou a hostilizar líderes indígenas e ambientalistas
Não cabia mais ninguém no auditório da Fiesp. Numa noite fria de junho, o presidente cantou o Hino Nacional, posou para fotos e ganhou uma medalha dos capitães da indústria. Depois caminhou até a tribuna e passou a elogiar o ministro do Meio Ambiente.
“O Ricardo Salles é um homem que está no lugar certo”, exaltou. “Os produtores rurais, cada vez mais, têm menos medo do Ibama. Eu paguei uma missão para ele: ‘Mete a foice em todo mundo’. Não quero xiita ocupando esses cargos”, prosseguiu.
A plateia interrompeu o discurso com aplausos. Animado, Jair Bolsonaro continuou a enaltecer o ministro. “Não podemos ter uma política ambiental como tínhamos há pouco tempo”, disse. Em seguida, esbravejou contra a demarcação de terras indígenas e prometeu acabar com a “indústria de estações ecológicas”.
Ontem o Inpe divulgou os dados do Prodes, que mede a taxa anual de desmatamento da Amazônia. A devastação chegou a 9.762 quilômetros quadrados, o pior resultado desde 2008. Em 12 meses, o Brasil perdeu o equivalente a um Líbano de florestas.
“Os números são um atestado do desastre que estamos vivendo”, diz o secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl. “E o principal motivo é a agenda antiambiental de Salles e Bolsonaro”, resume.
Desde a campanha, o presidente promete facilitar a vida dos desmatadores. No poder, ele se aliou a garimpeiros, madeireiros e grileiros de terras. Para agradá-los, passou a hostilizar líderes indígenas e ambientalistas que se ariscam na defesa da mata.
Em agosto, Bolsonaro brigou com os números do Inpe e demitiu o cientista que dirigia o instituto. A atitude só serviu para minar a credibilidade do país, que voltou a ser visto como um vilão ambiental.
Recrutado no Partido Novo, Salles se revelou o homem certo para “meter a foice” e desmontar os órgãos de fiscalização. Enquanto a Amazônia ardia, as autuações por crime ambiental recuaram 23%. Na Fiesp, Bolsonaro disse aos empresários que as punições “vão continuar diminuindo”. “Vamos acabar com essa indústria da multa”, prometeu.

O Globo 

Artigo de Opinião - Uma toga para a bancada da bíblia - Bernardo Mello Franco

Jair Bolsonaro não perde uma chance de cortejar a bancada da Bíblia. Ontem o presidente começou o dia num culto evangélico no Congresso. Em seguida, festejou o 42º aniversário da Igreja Universal, do bispo e empresário Edir Macedo.
No primeiro compromisso, o capitão ensaiou um discurso de pastor. “A paz de Cristo”, iniciou. “Amém!”, respondeu a plateia. “Vocês são mais que amigos, são irmãos”, continuou o orador.
O presidente voltou a descrever sua vitória como uma missão divina. Em seguida, repetiu a cantilena do país abençoado com terras férteis e “povo maravilhoso”. “O que que nos falta?”, perguntou. “Falta a fé. A vontade de vencer”, ele mesmo respondeu.
A pregação animou os deputados, mas eles queriam ouvir mais. “Poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal. Um deles será terrivelmente evangélico”, prometeu Bolsonaro. O auditório explodiu em aplausos e gritos de “Glória!”, como nos cultos transmitidos pela TV.
Em governos passados, a bancada evangélica trocava votos por verbas, ministérios e isenções fiscais. Na gestão atual, a turma passou a sonhar mais alto. Quer ascender ao olimpo do Judiciário.
As igrejas já deixaram claro o que pretendem: neutralizar a atuação liberal do Supremo. Nos últimos tempos, a Corte tem protegido minorias ameaçadas pela ofensiva conservadora. Em junho, equiparou a homofobia ao crime de racismo.
O presidente se irritou com a decisão, que classificou como “completamente equivocada”. “Se tem um evangélico lá, pedia vista e sentava em cima”, disse. Não podia ser mais transparente sobre a missão do ministro que vai escolher.
Não há qualquer problema na nomeação de um ou mais evangélicos para o Supremo. Hoje o tribunal tem juízes católicos e judeus. A questão é que nenhum deles chegou lá por delegação religiosa.
Bolsonaro quer atropelar a laicidade do Estado para dar mais poder aos pastores. Deus acima de todos e as igrejas acima da Constituição.
O Globo