sábado, 24 de março de 2018

Você sabia disso ? - Mais de 90 propostas que coagem ou proíbem discussão de gênero na sala de aula tramitam pelo país


Já existem 90 propostas em tramitação pelo país que tentam evitar que os professores “façam a cabeça dos alunos”


JULIANA DAL PIVA


Protesto de estudantes em São Paulo Salas de aula viraram campo de batalha ideológico (Foto: Marlene Bergamo/Folhapress)


Poderia ser mais um vídeo de adolescentes nas redes sociais, se não fosse a letra. O grupo de 25 alunos aparece dançando em sala de aula ao ritmo do funk “Baile de favela”, do mc João. A maioria veste roupas azuis e aparece animada ao centro da sala. Seguram cartazes em espaços abertos pelo afastamento das carteiras escolares. Os alunos substituem os versos sensuais sobre a mulher que vem fervendo por paródia politizada ao cantar: “Karl Marx estudou economia e também estudou sociologia. Quer nos explicar a luta de classes pela ideologia, alienação e mais-valia”. Mais adiante, na mesma batida do funk original, completam: “Os burgueses não moram na favela. Estão nas empresas explorando a galera. E os proletários, o salário é uma miséria. Essa é a mais-valia, vamos acabar com ela”.

No dia seguinte à divulgação do filme, os alunos da turma do 3o ano do ensino médio do colégio estadual Professora Maria Gai Grendel, no bairro da Caximba, em Curitiba, foram liberados mais cedo. A última aula das segundas-feiras à noite era reservada à disciplina de sociologia. Taymara Rodrigues, uma das alunas, recorda-se do comunicado da direção da escola. “Apenas disseram que a professora tinha sido dispensada.”

Não demorou muito para que se espalhasse que a razão da ausência da professora Gabriela Viola, titular da disciplina, era o vídeo de quase três minutos que postara em seu perfil no Facebook. As imagens registravam um exercício relacionado a um dos conteúdos estudados no segundo bimestre daquele ano: a introdução ao pensamento do teórico alemão Karl Marx (1818-1883). A partir de alguns tópicos dos textos de Marx, os alunos produziram músicas.



O vídeo foi postado a pedido dos alunos, afirmou Viola. “Já tínhamos estudado o sociólogo Max Weber (1864-1920). O vídeo fazia parte dos estudos sobre Marx. Coloquei na rede social em um domingo à noite. Às 8 horas do dia seguinte, a repercussão estava gigantesca.”

No mundo virtual, a postagem tinha se tornado um viral. Quase 150 mil visualizações fizeram com que o alcance das imagens superasse em muito as redondezas do bairro periférico de Curitiba. A reação nas redes sociais foi uma enxurrada de críticas dos mais diversos pontos do país. A educadora virou alvo de defensores do movimento Escola sem Partido, acusada de “doutrinar” os alunos.

A direção da escola e a Secretaria de Educação do Paraná determinaram o afastamento da professora ainda na noite de segunda-feira, 24 horas após a postagem do vídeo. Gabriela Viola disse que seus superiores criticaram o uso do funk, a publicação do vídeo e cogitaram transferi-la para outra escola, o que ela recusou. Os estudantes, por sua vez, agiram no sentido oposto. Protestaram em defesa do retorno da educadora. A diretora reunia todas as turmas na quadra antes do início das aulas para rezar o pai-nosso, que classificava como oração universal. Com medo de protesto, evitou a convocação da oração naquela semana. Não adiantou. Os alunos se dirigiram ao pátio e se sentaram no chão: “Dissemos que só iríamos para a sala quando a Gabi voltasse”, afirmou Taymara.

A professora retomou as aulas na semana seguinte. Ela conseguiu lecionar até o fim de 2016. Como tinha contrato de trabalho temporário, quando expirou, no primeiro semestre de 2017, o vínculo não foi renovado. “Houve um corte muito grande de professores no Paraná. Fiquei sem dar aula. Virei personagem de uma guerra mais ampla”, disse a professora.

A Secretaria de Educação do Paraná informou que Gabriela Viola retomou suas turmas depois que a escola conseguiu “garantir a normalidade das aulas”. A secretaria atribuiu a não renovação do contrato à posição obtida por ela no processo seletivo de 2017. Ficou em 36o lugar, mas havia apenas 33 vagas para contratação. No fim do ano passado, nova convocação foi feita, mas Gabriela recusou o chamado.

Nos últimos anos, a novidade brasileira na educação vem não de educadores, mas de quadros políticos. Tentativas de regular o comportamento dos professores em sala de aula, na maioria por meio de leis municipais, multiplicam-se em todo o país. Em geral, inspiram-se no movimento Escola sem Partido, que pretende conter o que classifica de doutrinação ideológica de alunos dos ensinos fundamental e médio.

Uma pesquisa da historiadora Fernanda Moura, mestre pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, identificou a tramitação de 90 projetos de lei e uma Proposta de Emenda Constitucional (pec) alinhados à restrição ou normatização da ação dos professores em diferentes casas legislativas do país. A maioria (80%) das propostas tramita em Câmaras municipais. Já há 28 leis inspiradas no movimento Escola sem Partido aprovadas – todas em âmbito municipal. Esse número pode aumentar, porque outros 11 projetos foram aprovados, mas aguardam a sanção do Executivo. Cinco outros só não estão em vigor porque prefeitos vetaram a medida.

A pesquisadora compilou o avanço do movimento Escola sem Partido, com dados atualizados até meados de janeiro. O movimento afirma defender interesses de pais e estudantes preocupados com a influência ideológica na educação, seja política, religiosa, partidária ou moral. Tem provocado polêmica, conflitos e processos judiciais em torno da formação de crianças e jovens.

Episódios controversos como o ocorrido na escola paranaense estão se multiplicando pelo país. Provocam debates sobre os limites dos professores em sala de aula. Políticos unidos a movimentos da sociedade civil se organizam para legislar sobre como devem ou não ser tratados – em sala de aula – temas relacionados à política, à moral e aos costumes. Sexualidade e a chamada “ideologia de gênero” estão no topo das preocupações desses grupos.

O primeiro dos projetos de lei a regular a ação de professores surgiu no Rio de Janeiro em 2014. Foi resultado de parceria entre o deputado estadual Flávio Bolsonaro (psc-rj) e o criador do movimento Escola sem Partido, o advogado Miguel Nagib. Bolsonaro falou a época em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no centro da cidade, dividindo espaço entre uma visita e um telefonema para negociar sua troca de partido e uma eventual candidatura para o Senado na eleição de 2018.

Logo que ouviu a pergunta sobre como surgiu a ideia do projeto, Bolsonaro, sorridente, justificou: “Havia um processo de décadas de formação de militantes de esquerda dentro dos colégios. Você, que fez faculdade de Jornalismo, sabe que lá a tendência é essa”.

Apesar de ter passado pelos bancos escolares nas últimas três décadas, Bolsonaro, de 36 anos, disse que ele próprio nunca sofreu “doutrinação”.

O deputado conheceu o movimento Escola sem Partido por meio da internet em 2014. Após algumas conversas por telefone, convidou Miguel Nagib para vir ao Rio de Janeiro. “A ideia de sugerir um projeto criando um programa ‘Escola sem Partido’ foi minha. Ele estava remando havia muito tempo, sem que tivesse uma publicidade tão grande. Ninguém dava importância ao assunto”, disse o deputado.

Nagib citou um episódio familiar como ponto de partida para o movimento. Em setembro de 2003, sua filha mais nova cursava a 7a série do ensino fundamental em um colégio particular de Brasília quando chegou da escola contando que o professor de História havia comparado o líder guerrilheiro Che Guevara a São Francisco de Assis. Nagib elaborou uma carta aberta para denunciar o “empenho” do professor em “fazer a cabeça dos alunos”. Fez 300 cópias e distribuiu-as no estacionamento da escola. Ele próprio admite que ninguém lhe deu respaldo. “A direção do colégio contestou rispidamente a veracidade do fato narrado pela minha filha. Negou que seus professores usassem as aulas para doutrinação. Os alunos se solidarizaram inteiramente com o professor. Recebi dezenas de mensagens ofensivas. Nenhum pai me procurou”, recordou.

Derrotado, mas inconformado, Nagib se dedicou a criar o site que, em 2004, desembocaria na criação do movimento Escola sem Partido. Demorou uma década para que se encontrasse com Flávio Bolsonaro, que se tornou assim o acendedor de um rastilho de pólvora que se acumulara por anos.

Nagib usou a experiência como advogado para auxiliar Bolsonaro na elaboração do projeto apresentado à Assembleia do Rio. Nenhum educador foi consultado para auxiliar no tema. “Especialista nessa área aí normalmente é totalmente viciado, opinião totalmente politizada”, justificou Bolsonaro. No Rio, o projeto recebeu duras críticas de parlamentares e educadores e não avançou.

A iniciativa, apesar de malfadada, inspirou descontentes país afora. Em 2014, o movimento abraçou a agenda de grupos que trabalhavam contra a inclusão de igualdade de gênero no Plano Nacional de Educação, base para os planos estaduais e municipais. É uma espécie de Constituição dos temas da educação no Brasil. O plano determina diretrizes, metas e estratégias para a política educacional até 2024.

Embalado com a ampliação das adesões e o acirramento da polarização política a partir de 2014, o movimento Escola sem Partido colocou em seu site propostas próprias de leis a serem encampadas por seguidores políticos nas Câmaras Municipais, nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional. Estava aberta a franquia de projetos de lei do movimento.

“Apresentei a proposta a alguns deputados e vereadores. Devagarinho a coisa foi se espalhando e a partir daí não parou de crescer. Estamos apenas no começo”, disse Nagib, orgulhoso. Ele acredita que a Escola sem Partido será um dos temas essenciais das eleições de 2018, obrigando os candidatos a se posicionar em relação à proposta.


Com algumas variantes, os projetos de lei encaminhados a partir do movimento têm em comum a redação de cinco artigos. O principal diz que o “poder público não se imiscuirá no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo na abordagem das questões de gênero”. Em seguida, ficam estabelecidos os “deveres do professor”, como não promover suas opiniões ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias. Prega ainda o respeito “ao direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções”. Estabelece que tais deveres sejam fixados em cartaz em todas as salas de aula, no ensino básico, e na sala dos professores, no infantil.

Um dos 11 projetos que tramitam na Câmara dos Deputados é de autoria do deputado Izalci Lucas (psdb-df). Propõe a proibição da “adoção de formas tendentes à aplicação de ‘ideologia de gênero’ ou orientação sexual na educação”. A justificativa do projeto, porém, contém trechos inexistentes de A ideologia alemã, obra de Karl Marx escrita em 1846. A fraude é descrita pelo pesquisador da Universidade Estadual do Oeste do Paraná José Luis Derisso, que apontou a costura como citação única de trechos de páginas distintas do livro de Marx. “A passagem não consta de nenhuma das publicações em português desta obra. É uma montagem a partir de trechos que aparecem em diferentes partes do livro, sem sequer respeitar a ordem sequencial”, descreveu.

A artimanha dá a dimensão do grau de tensão e politização que o tema tem despertado. A possibilidade de interferência no cotidiano de sala de aula virou tema de conflito entre educadores, pais e alunos. Questionamentos sobre a legalidade da medida têm se avolumado no Poder Judiciário.

Embora esteja no centro do debate, o primeiro escalão do Ministério da Educação não concede entrevistas sobre o tema. Por nota, afirmou que o Ministério da Educação se posicionou contra a Escola sem Partido em projeto que tramita na Câmara dos Deputados.

“O papel dado pela Constituição ao governo federal na educação básica é suplementar, de apoio e fomento. Jamais pode interferir na gestão de nenhuma rede, muito menos em um outro poder local”, informou.

“Apresentei a proposta a alguns deputados e vereadores. Devagarinho a coisa foi se espalhando e a partir daí não parou de crescer. Estamos apenas no começo”
Miguel Nagib, movimento Escola sem Partido
Parcela significativa dos educadores observa com perplexidade o texto da legislação que se amplia pelo país. “Costumo dizer que, mais do que uma mordaça, eles têm estabelecido um tribunal pedagógico nas escolas”, afirmou Daniel Cara, coordenador da campanha pelo direito à educação. Para ele, o clima de desconfiança é “extremamente improdutivo e nenhum professor é capaz de lecionar num tribunal inquisitório”.

Claudia Costin, professora da Fundação Getulio Vargas (fgv) e ex-secretária municipal de Educação do Rio de Janeiro, declarou que são exceções os casos de professores que extrapolam o papel educacional. Classifica como histórica a existência de disputas sobre como devem ser tratados temas políticos e de comportamento. “A doutrinação sempre existiu em escola. A minha mãe é húngara. Ela nos contava que, quando tinha 11 anos, a professora de história dela ensinava — como verdade científica — que os generais romenos usavam calcinha de mulher”, contou, aos risos. O equilíbrio, de acordo com ela, poderia ser encontrado na formulação de currículos bem estabelecidos. “O que é considerado doutrinação? Se eu ensinar evolucionismo, que é a teoria científica estabelecida, vou estar doutrinando?”, questionou Costin.

Para Priscila Cruz, diretora executiva do movimento Todos pela Educação, nem sequer faz sentido a alegação de que as salas de aula estejam dominadas por educadores que fazem imposições políticas. “São muito mais casos isolados do que algo sistêmico. Para mim é um exercício de lógica. Se realmente professores estivessem fazendo doutrinação ideológica de esquerda, não haveria a onda conservadora atual. É incompatível”, analisou.

Para ela, barrar opiniões distintas da família ao longo do amadurecimento da criança ou do jovem é “uma forma de infantilização”. Priscila acredita que poderá haver reflexos até na maneira como o adolescente fará sua argumentação em exames como Enem e Fuvest, entre outros. “O que é grande parte da nota nesses grandes exames? Interpretação de texto. Se você coloca o aluno numa bolha em que só um tipo de ideia é debatido ou aceito na escola, está privando esse aluno da capacidade de interpretar textos diversos”, observou. Ela acredita que falta às famílias compreensão sobre o papel da escola.

No cotidiano das relações entre famílias e escolas, há queixas sobre o que pais eventualmente consideram excesso de professores. A atriz e empresária Sherazade Médici, de 36 anos, é mãe de uma estudante de 15 do Colégio Federal Pedro ii, na unidade do Humaitá, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Ela diz que a escola vive um cotidiano de muita polarização e dificuldade de diálogo entre pais, alunos e professores. Até seu sobrenome, igual ao do ditador Emílio Garrastazu Médici, mesmo sem parentesco, motiva olhares desconfiados de funcionários da escola.

Médici cita palestra sobre a prática de aborto que houve na escola. “O filho de uma mãe extremamente conservadora disse que não iria porque o tema era contra a religião dele. A esse episódio, seguiram-se cobranças da professora na linha: ‘Você tem de ir, deixa de ser careta’. Essas são coisas que incomodam as famílias. Se me perguntar, acho um absurdo a mulher não ter direito ao aborto em caso de estupro, mas essa mãe pensa diferente. A saída é o respeito”, opinou.

A secretária Maria Inez Medeiros Belarmino, de 56 anos, moradora de Brás de Pina, no subúrbio carioca, vê papéis distintos para a família e para a escola. “Gênero é para ser orientado pelos pais", disse ela. Mãe de uma aluna de 11 anos do Colégio Pedro ii, na unidade de São Cristóvão, ela ficou famosa na internet após um discurso na Câmara Municipal do Rio, em abril de 2017. Com uma camisa verde grafada com os dizeres “Basta! Não à ideologia de gênero e à doutrinação partidária nas escolas”, subiu à tribuna. Com o braço direito balançando negativamente no ar, esbravejou que, após 15 dias de aula, a filha chegou em casa dizendo que não tinha mais religião e perguntou: “Mamãe, você é homofóbica?”

Discussões como essas, antes ocorridas em reuniões escolares, agora vão parar no Judiciário. A historiadora Fernanda Moura — autora da pesquisa que compila o avanço do movimento Escola sem Partido — explica que as propostas de legislar sobre o conteúdo transmitido na educação criaram um ambiente que incita denúncias. “Estão judicializando a sala de aula. Antes os pais queriam resolver essas coisas na direção ou na coordenação regional. Agora querem fazer denúncia no mp. É o que o Escola sem Partido estimula”, afirmou.

Um exemplo é o caso do professor Pedro Mara, diretor do ciep 210, em Belford Roxo. O deputado estadual Flávio Bolsonaro denunciou-o ao Ministério Público. Pediu seu afastamento das funções porque Mara possui uma folha similar à maconha tatuada na parte interna do antebraço esquerdo. A acusação? Apologia às drogas.


“O poder público não se imiscuirá
no processo de amadurecimento sexual dos alunos nem permitirá qualquer forma de dogmatismo ou proselitismo nas questões de gênero”
Projeto de lei do movimento Escola sem Partido
O MP arquivou o caso e considerou a tatuagem como parte do exercício de liberdade de expressão do educador. O episódio, porém, fez com que Mara recebesse ameaças de agressão na internet. “Tive de sair do estado por 15 dias até a poeira baixar”, disse, antes de mencionar que a escola fica em um local que tem a presença de traficantes e milicianos.

Em Manaus, os Bolsonaros é que foram alvo de acusações de doutrinação. Estudantes do 3o ano do ensino médio do Colégio Estadual Professor Waldocke Fricke de Lyra gravaram um vídeo convidando o deputado federal Jair Bolsonaro (psc-rj), pai de Flávio Bolsonaro, para sua formatura. As imagens mostram filas de alunos, comandados por dois policiais militares, gritando como soldados em treinamento: Convidamos Bolsonaro, salvação dessa nação/Nos quatro cantos ouvirão completa nossa canção. Procurado, o coronel Diniz, corregedor responsável por avaliar o caso, disse que os dois militares respondem administrativamente por “transgressão à disciplina”.

Neste ano, é provável que a confusão aumente. A expectativa é que a cidade de São Paulo vote projeto na linha do movimento Escola sem Partido. A arena da batalha final, no entanto, deverá ser o Supremo Tribunal Federal, que terá de decidir pela legalidade ou não das restrições ao comportamento dos professores em sala de aula.



A proliferação de projetos de lei inspirados no movimento Escola sem Partido, além de refletir o crescimento de uma onda conservadora no país, é também sintomático de um problema grave (tanto à direita quanto à esquerda) no debate educacional brasileiro: achar que questões complexas podem ser resolvidas com soluções simplistas, sem base em evidências, e motivadas apenas pelo senso comum.

O Escola sem Partido é um bom exemplo disso. O movimento parte do princípio de que a prática de doutrinação política e ideológica em sala de aula está disseminada por todo o sistema de ensino. Como evidência, seus defensores citam uma pesquisa de opinião. A citação de casos isolados para comprovar a “disseminação sistêmica” de um fenômeno é uma lógica argumentativa rudimentar.

Não se trata de negar que, num país com mais de 2 milhões de professores, certamente há casos de abusos e má conduta, como em qualquer profissão. A questão é que faltam evidências sólidas para sustentar a tese de que o problema seja estrutural. E, mesmo que elas existissem, os projetos inspirados no movimento Escola sem Partido partem de premissas de que a aprovação de uma lei seria uma forma eficiente de atacar a questão, fato questionado até mesmo por educadores que, ao menos em algum grau, concordam com o diagnóstico feito pelo movimento.

Há ainda o problema da percepção arcaica de que o papel do professor é transmitir conhecimentos para uma audiência de estudantes passivos, como se os jovens de hoje fossem presas indefesas para ideias perniciosas de seus mestres. Nenhum sistema educacional de ponta do mundo trabalha mais com esse conceito.

Em resumo, o diagnóstico da extensão do problema carece de comprovação e nada indica que o método proposto para combatê-lo seja eficaz. Sem falar que o efeito prático dessas ações tende a ser o estímulo a um clima de desconfiança e de medo, pelos docentes, de tratar de necessários temas políticos e de gênero na escola. Resta, no entanto, um debate pertinente e não restrito ao Brasil: qual o limite da atuação do professor em sala de aula na abordagem de temas políticos controversos.

Essa foi uma das questões abordadas pelas pesquisadoras Diana Hess e Paula McAvoy, da Universidade de Wisconsin, num estudo feito com professores de 1.001 alunos de ensino médio em 35 escolas públicas nos Estados Unidos. Os resultados foram publicados na obra The Political Classroom (A sala de aula política), vencedora do prêmio de melhor livro do ano de 2016 pela Associação Americana de Pesquisas Educacionais. O argumento inicial das autoras é que, justamente em cenários tão polarizados, ensinar os alunos a se envolver de forma respeitosa e qualificada em diálogos sobre temas públicos importantes torna-se função essencial.

Ao acompanhar como educadores conduziam discussões que tratavam desses temas, as pesquisadoras identificaram que a questão que mais influenciava a qualidade da aula não era o fato de o professor ter exposto ou não sua opinião pessoal sobre o tema. “Não há nada de errado no fato de as pessoas serem partidárias. O que seria um problema, e nós temos realmente uma boa evidência de nossa pesquisa sobre isso, é ensinar como se houvesse uma resposta definitiva a uma pergunta que deveria ser debatida como uma questão aberta de política pública”, diz Diana Hess.

O argumento das autoras não deve ser confundido com a relativização de tudo. O aquecimento global, por exemplo, é um fato com evidências científicas, e sobre isso não cabe discussão. O que deve ser tratado como uma questão em aberto são as políticas públicas para lidar com esse fenômeno ambiental.

Por fim, um ponto importante e válido para o contexto brasileiro é que conduzir essas discussões políticas em sala de aula requer preparo e planejamento. “Discussões espontâneas são de baixa qualidade, porque nem todos conhecem o tema de forma suficiente para participar adequadamente”, afirma Hess.

Em vez de leis inúteis, deveríamos discutir como as escolas podem ensinar melhor os alunos a dialogar em alto nível, respeitando discordâncias, mas com base em
evidências.

*Antônio Gois é jornalista especializado em educação e passa temporada de estudos na Universidade Harvard, em Cambridge (EUA)

Você sabia disso ? - O planeta pede água


A crise é mundial: 20 países exauriram suas reservas e a cada cinco minutos 500 pessoas morrem de sede ou por beberem de fontes contaminadas. No Brasil, onde o quadro é igualmente preocupante, especialistas alertam: é preciso poupar e garantir com rigor a qualidade do precioso líquido

Crônicas do Dia - Cultura e corrupção


É razoável esperar que um PM do Rio, que recebe um salário mensal de US$ 400, não seja empurrado para a corrupção?


José Padilha, O Globo

A cultura de uma organização, o conjunto de práticas e comportamentos que seus membros exibem de forma recorrente, tem dois componentes: um formal, balizado pelas regras e procedimentos expressos nos seus documentos, e outro informal, composto por práticas que não estão escritas e muitas vezes (mas nem sempre) vão contra o que está formalizado.

Exemplo: de um ponto de vista formal, quando um policial militar prende um traficante, deve levá-lo a uma delegacia. Na prática, boa parte dos policiais militares do Rio que trabalham diretamente na repressão ao tráfico de drogas negociam informalmente com os traficantes: ou você me corrompe, ou te levo preso...

O primeiro comportamento faz parte da cultura formal da PM; o segundo, da sua cultura informal.

Durante a realização de “Ônibus 174”, “Tropa de elite” e “Tropa de elite 2”, entrei em contato com inúmeros policiais militares e estudiosos da segurança pública do Rio. Quando indaguei deles qual seria o percentual dos PMs que praticaram ou deixaram de denunciar algum tipo de corrupção, as estimativas informais que recebi ficaram na casa dos 65%.

Ora, se é verdade que mais de 30 mil dos 45 mil policiais militares do estado estão envolvidos, temos um problema relativo à qualidade das pessoas que ingressam na PM, ou temos um problema relativo à organização em si?

No primeiro “Tropa de Elite” defendi a tese de que o problema da PM era, fundamentalmente, organizacional.

Uma das convicções que formei foi a seguinte: a PM do RJ estava (e ainda está) estruturada de forma tão surreal do ponto de vista formal que era inevitável que boa parte de seus membros desenvolvesse uma cultura informal de violência e de corrupção.

Por exemplo: é razoável esperar que pessoas que têm a função de enfrentar, dia após dia, criminosos extremamente violentos e fortemente armados, recebam um salário mensal de US$ 400?  Ou será que o razoável é imaginar que a fragilidade econômica destas pessoas, somada à violência recorrente a que estão submetidas e ao contato diário com criminosos, vai empurrá-las para corrupção?

De forma geral, organizações que têm estruturas formais incompatíveis com a natureza biológica e a realidade econômica e social de seus membros tendem a desenvolver culturas informais que contrariam as suas normas.

(Pense na pedofilia e na igreja católica...) A única forma de se impedir que isso aconteça é a adoção de um algum sistema de controle externo à instituição, que tenha o poder de punir exemplarmente os seus membros.

Na Polícia Militar do Rio de Janeiro este sistema não existe, posto que seus homens e mulheres são supervisionados pela corregedoria da própria. Não foi à toa, portanto, que a PM desenvolveu uma cultura informal de corrupção que se estende muito além do tráfico de drogas. Há corrupção no trânsito, há corrupção na relação com o comércio informal, há corrupção com vans, com clínicas de aborto, com milicianos, com jogos de azar...

Pois bem, a tese que tenho defendido neste espaço (me refiro a ela como a tese do mecanismo) e que enuncio vagamente nos planos finais do “Tropa de Elite 2” pode ser expressa da seguinte forma: o que acontece na PM do Rio acontece em quase todas as organizações do estado brasileiro, em nível municipal, estadual e federal; no Legislativo, no Executivo e no Judiciário.

Em outras palavras: a grande maioria das organizações públicas do nosso país desenvolve culturas organizacionais informais que trivializam a corrupção e a transformam em hábito.

A pergunta que fica é: posto que cada organização tem a sua própria lógica interna, e que estas lógicas não são iguais, porque será que o fenômeno do “mecanismo” é tão generalizado no setor público do nosso país? Por que será que, no Brasil, o mecanismo tem o tamanho do Estado?


Crônicas do Dia - Do seu bolso

Nada pode ir bem num país em que os seus juízes e procuradores se aproveitam da vantagem de não poderem ser punidos nunca, por ninguém e por nenhum motivo, para desrespeitarem a lei em busca de um benefício pessoal. Felizmente não são todos ─ o país realmente já teria ido para o diabo se fossem. Os juízes estaduais e os Ministérios Públicos dos Estados, por exemplo, não participam da “greve” convocada para o dia 15 de março pelas “lideranças da categoria”. Mesmo entre os magistrados federais o problema está concentrado num desses grupos que transformaram suas associações em sindicatos trabalhistas com militância política. Não são muitos ─ mas falam, decidem e agem por todos. O resultado, de qualquer jeito, é que temos aí mais uma agressão aberta à democracia no Brasil. Não há um regime democrático em funcionamento normal quando juízes de direito dão a si próprios direitos diferentes e maiores que os do cidadão comum ─ no caso, colocando-se acima da lei numa greve para obrigar o Supremo Tribunal Federal a decidir uma causa em seu favor. Ou o STF faz o que eles querem, segundo ameaçam, ou então a Justiça não vai funcionar. Isso, obviamente, não existe em democracia nenhuma do mundo. O STF não pode ser obrigado por nenhum grupo particular, e muito menos por magistrados, a agir assim ou assado. Mas aqui, hoje, está valendo tudo.


Numa situação mais ou menos normal, o juiz que fizesse greve para pressionar publicamente os seus superiores na hierarquia, e isso para arrancar um privilégio pessoal, deveria ser simplesmente demitido do cargo e ir fazer outra coisa na vida. Acontece que o Brasil não vive, já há muito tempo, uma situação normal no Poder Judiciário. O motivo da anomalia é que se transformou num hábito, no sistema de Justiça brasileiro, ignorar a lei e a Constituição Federal em benefício dos interesses materiais e ideológicos dos que têm um emprego ali dentro. Nada poderia comprovar isso de forma tão clara como a “greve” do momento. Ela já é um disparate em si mesma, por ser escandalosamente ilegal, mas o motivo pelo qual foi convocada é muito pior ainda ─ na verdade, é o próprio sintoma da falência geral de órgãos que envenena atualmente o corpo da máquina judiciária nacional. Os grevistas não exigem o cumprimento de nenhum preceito virtuoso, como o direito de julgarem em liberdade e de acordo com as próprias consciências. O que querem, mesmo, é garantir miseráveis interesses financeiros pessoais ─ mais exatamente, o pagamento de 4.300 reais por mês como “auxílio moradia”, inclusive para quem já mora na própria moradia. São cerca de 30.000 juízes a procuradores no Brasil inteiro. Multiplique por 4.300 por mês ─ e veja aí o custo dessa brincadeira. Desde que o ministro Luiz Fux, do STF, inventou em 2014 que todos os magistrados brasileiros, sem exceção, deveriam ganhar o “auxílio” hoje contestado, a despesa pública com ele aumentou vinte vezes.



Quer dizer: é um desses casos onde se soma o insulto à injúria. A greve, por si só, já é uma ofensa à ordem; o motivo da greve é uma ofensa à moralidade. De fato, que sentido pode fazer uma aberração como esse “auxílio-moradia”? Os cidadãos brasileiros não têm direito a receber dinheiro do governo para pagar seu aluguel mensal, e muito menos para reforçar seu bolso quando já têm a própria casa. Por que, então, juízes, incluindo os “do trabalho”, e procuradores, deveriam receber aqueles 4 mil e tantos a mais por mês, se pela Constituição todos os cidadãos brasileiros são iguais perante a lei? Fica oficializado, com esse desatino, que não são iguais ─ se o Estado quer tirar dinheiro dos impostos para pagar a moradia de uns, deveria pagar então a moradia de todos. A respeito deste ponto, a propósito, desvenda-se a hipocrisia sem limites da “luta pelo direito à moradia”, que é como os sindicatos apresentam sua exigência. Ela é descrita como se o dinheiro gasto com o “auxilio” pertencesse ao “Estado” ─ ou, numa mentira mais grosseira ainda, “ao governo Temer”, ou ao “Supremo”. Então por que não dizem, logo de uma vez, que a verba vem do Tesouro de Marte? A verdade, como em 100% dos “gastos do governo”, é que o “governo” não gasta nada, nunca. Quem está pagando cada centavo do “auxílio moradia” é você mesmo, ninguém mais; é o público, que mete a mão no bolso para pagar imposto a cada vez que recebe o seu salário ou acende a luz de casa. Não seria mais “republicano” se os nossos magistrados exigissem da população, que de fato é quem lhes paga, o que exigem do SFT? Fica aí a ideia.

Fonte: “Veja”, 19/03/2018 - J.R. GUZZO 

Crônicas do Dia - E as mulheres brasileiras ?

Espanha, Turquia, França, Bélgica, Itália, China, Paquistão, Índia, Afeganistão, Filipinas, Coreia do Sul. Na América Latina: Argentina, Chile, México. Esses foram alguns dos países onde o Dia Internacional da Mulher foi marcado não por rosas pálidas e inúteis, mas por protestos clamando pela igualdade de oportunidades e pelo fim da discriminação e da violência contra a mulher. A imprensa internacional deu ampla cobertura aos protestos mundo afora. No Brasil, houve protestos em 50 cidades, mas nada comparável ao que ocorreu na Espanha e na Argentina, onde as mobilizações repercutiram ruidosamente.