domingo, 26 de julho de 2020

Resenha / Entrevista - O Cronista do Brasil ( ou coisa parecida )


Reunir as melhores crônicas de Luis Fernando Verissimo publicadas no último ano já seria uma tarefa difícil. Fazer uma seleção entre os textos publicados ao longo dos seus 50 anos de carreira parecia, então, quase impossível. Mas aconteceu: “Verissimo Antológico – Meio século de crônicas (ou coisa parecida)”, coletânea com mais de 300 textos, chega ao mercado em formato e-book

Pensei em escrever esse texto sobre Luis Fernando Verissimo em formato de crônica. Descartei a ideia imediatamente. Por diversas razões, mas principalmente porque a imagem de Verissimo jogando a revista na lareira de sua casa me atormentaria até o final dos meus dias. Ou pior: talvez a própria lareira rejeitasse o escrito. Afinal, não é uma chaminé qualquer que aconchega a residência de Petrópolis, arborizado bairro de Porto Alegre, onde o autor mora desde a infância e há 57 anos divide a casa com a mulher, Lúcia. Aquela é a lareira ao lado da qual seu pai, Érico Verissimo, escreveu seus clássicos. Para se ter uma ideia, no relógio da escrivaninha e pela janela, ele acompanhava, respectivamente, o tempo e o vento. É de se supor que o fogo, ali, esteja acostumado a ser alimentado com palavras mais saborosas.

O livro “Verissimo Antológico — Meio século de crônicas (ou coisa parecida)” reúne mais de 300 textos publicados em jornais e revistas de todo o País. A carreira como cronista começou precisamente em 19 de abril de 1969, quando o autor estreou em uma coluna no “Zero Hora”, o mais gaúcho dos jornais de Porto Alegre. A referência nominal à cidade faz sentido porque só assim podemos compreender por que Verissimo escreve como ninguém. Como ninguém, não: como um único alguém. Ele mesmo. Os gaúchos são brasileiros elevados à enésima potência. São mais difíceis de agradar, no bom sentido. Um governador nunca se reelegeu no Rio Grande do Sul. As condições e contradições do País são, para eles, um verdadeiro banquete onde podem degustar suas opiniões e regurgitar suas críticas. Verissimo é um gaúcho da gema, se é que existe isso. Em seu pequeno refúgio no Sul, longe das árvores da Amazônia, do sertão nordestino ou dos arranha-céus da Avenida Paulista, ele é o mais brasileiro dos cronistas. Ou o mais cronista entre os brasileiros. Não precisa sair por aí para decifrar ou devorar o zeitgeist do País: o Brasil entra por suas janelas e vai parar em suas palavras, tornando-se seu.

Ao longo de 50 anos, as crônicas de Verissimo passeiam pela nossa história como um registro bem humorado de tempos leves e pesados. Durante o regime militar, era obrigado a caprichar nas sutilezas para que os censores não as captassem; no processo de redemocratização, narrou a esperança pela qual estamos esperando até agora. Do início da revolução digital à polarização dos dias de hoje, Verissimo tem sempre algo inteligente a dizer. Essa capacidade de síntese é um de seus 534 maiores talentos. Às vezes seus textos são engraçados, mas é porque o brasileiro é um povo divertido mesmo. Em outras, o humor pelo menos ajuda a varrer nossos problemas para baixo do sorriso. Apesar das crônicas nesse e-book serem separadas por décadas, o leitor pode abrir em qualquer página virtual e dar de cara com o mesmo País. Os problemas podem até ser outros, mas Verissimo encontrou uma forma única de transformar cinco décadas da história de um povo em uma coleção de crônicas – ou coisa parecida.

ENTREVISTA
Luis Fernando Verissimo, escritor

“Uma boa crônica é lida e entendida em qualquer contexto”

Istoé – Nesses 50 anos de carreira, o senhor já escreveu milhares, talvez milhões de crônicas. Como foi possível escolher entre elas? O que torna uma crônica melhor que as outras?
Luis Fernando Verissimo – O critério da escolha deve ser a atualidade da crônica, mas isso nem sempre vale.
Às vezes a qualidade do texto independe da sua atualidade. Mas, em geral, uma boa crônica é lida e entendida em qualquer contexto. Você lê hoje as crônicas do Rubem Braga ou do Antonio Maria escritas há 50 anos
com o mesmo prazer de antes, por exemplo.

Antes de a música existir, ela é apenas silêncio. Antes de a crônica existir, é apenas um papel em branco. Qual é a diferença entre tocar e escrever? Para o senhor, que também é músico, o que seria o equivalente, na escrita, ao improviso no jazz?
Tentativas de escrever com o mesmo abandono com que se toca jazz não deram certo até agora, na minha debatível opinião. Estou pensando na literatura do Jack Kerouac e outros da sua geração. Um improviso de jazz permite uma liberdade que um texto que tenta simulá-lo, e ao mesmo tempo ser coerente e pensado como deve ser um texto literário, não consegue.

Qual é o assunto que sempre rende crônica? Há algum assunto sobre o qual é impossível dedicar
uma crônica?
Numa crônica cabe tudo. Qualquer assunto é assunto. O que se pode ou não se pode escrever é outra história. Depende do regime vigente. O regime vigente exerce grande influência sobre cronistas.

O Brasil de hoje rende uma crônica engraçada, triste ou absurda?
Triste, a caminho de absurda.

Se o senhor pudesse escolher apenas uma crônica, qual seria ela?
Essa eu vou passar. As crônicas são, mais ou menos, filhas da gente. Você pode ter uma filha favorita, mas não pode dizer qual é.

Há muita gente que acredita em ‘fake news’ – às vezes nem é por má fé, mas porque elas fingem ser as verdades que essas pessoas querem acreditar. Como se proteger das ‘fake news’? Como separar as ‘fake news’ das ‘news’?
Não há o que fazer contra “fake news” ou textos apócrifos. Só confiar que pessoas com um mínimo de informação ou discernimento saberão identificar o “news” real. No caso de crônicas com assinatura falsa, muitas vezes você se surpreende com a qualidade de um texto cujo autor não quis se identificar, ou preferiu atribuí-la a outro. Talvez por modéstia exagerada. Está tão difícil fazer algo que preste que nenhum elogio deve ser desperdiçado.

ara um escritor conhecido pelo bom humor, como competir com as notícias que se lê nos jornais?
Quem quer fazer humor profissional hoje em dia tem que competir com uma realidade cada vez menos engraçada e, principalmente, com os humoristas amadores, que tomaram o poder.

Com a pandemia, o esporte parou totalmente. Como o senhor tem sobrevivido sem futebol?
Não tem sido fácil. Nosso consolo é que, graças ao coronavírus, nenhum time está ganhando mais do que o Internacional, atualmente.

O senhor vê grandes cronistas brasileiros atualmente? Alguém que chame a sua atenção?
O melhor que apareceu nos últimos anos é o Antonio Prata. Também gosto muito do Gregório Duvivier, do Marcelo Adnet, do Fernando Caruso e da turma do Porta dos Fundos.

Saindo das crônicas e indo para a política: imagino que a escolha seja difícil, mas qual é o pior ministro do governo federal? E por quê?
Escolha difícil. Me dá mais um tempinho?

O senhor vê alguma liderança jovem e inspiradora na política? Como avalia até agora o trabalho
do governador Eduardo Leite?
O Eduardo Leite está indo bem, dentro dos limites do possível. Os limites do possível é que não estão ajudando ninguém.

Já que não entraram no livro, é bom perguntar: o que a Velhinha de Taubaté, o Ed Mort e o Analista de Bagé achariam do Brasil de hoje?
Todos estão fazendo a mesma pergunta: como é que se chega na Nova Zelândia?

“Não há o que fazer contra ‘fake news’ ou texto apócrifo. Só confiar que pessoas com um mínimo de informação ou discernimento saberão identificar o ‘news’ real”

Revista IstoÉ 


Artigo de Opinião - Descaso Amazônico - Carlos José Marques


Uma tragédia de dimensões pandêmicas começa a afetar não apenas a imagem internacional do Brasil como a própria economia, as perspectivas de retomada e mesmo as chances de sobrevivência do parque produtivo nacional — e isso tem a ver com a vida de todos nós que buscamos uma saída em meio à rigorosa crise da Covid-19. O País exibiu, para assombro do mundo, um recorde consecutivo e implacável na área ambiental que diz muito do desprezo
com o qual o atual governo vem tratando o assunto. O desmatamento na região da Amazônia cresce, inapelavelmente, há 14 meses seguidos, exibindo índices devastadores, capazes de cobrir uma área equivalente a soma dos estados de Alagoas e Paraíba de uma só sentada. Jamais se viu algo parecido. E o período dos 14 meses de avanço da prática criminosa corresponde justamente ao hiato de gestão do mandatário Bolsonaro, desde a sua posse até aqui. É insano e improdutivo imaginar as razões que levam o chefe da Nação a permitir tamanha afronta a fauna e flora em tempos de escassez global de florestas e de seus biomas. Estaria Bolsonaro, na vocação natural à polêmica, buscando provocar o planeta?

Obra do acaso não foi. Ao contrário. Debite muito mais na conta do descaso esse pendor antiambientalista. Como resposta às estatísticas, Messias recorreu à saída covarde de sempre: mandou demitir a coordenadora-geral do INPE, Lubia Vinhas, na tática do “não gostou da mensagem, demita o mensageiro”. Já havia feito o mesmo, logo no início de gestão, com outro comandante do organismo, Ricardo Galvão, pelo mesmo motivo: não aceitou os números divulgados e, claro, ao invés de ensejar esforços para reduzir o problema, tirou da frente o técnico que fornecia as más novas. Típico de administrações totalitárias. Bolsonaro está pouco se importando com as invasões de terras, conflitos e ataques de mineradores em áreas de delimitação indígena, queimadas ou desmatamentos ilegais. Não atentou um minuto sequer para o prejuízo dessa escalada. Mas os empresários, sim e estão caindo em cima do vice-presidente Hamilton Mourão, a quem coube conduzir a pendenga sem muitos instrumentos para tal. Ceos de 38 das maiores corporações brasileiras e estrangeiras, de quatro entidades setoriais do agronegócio, do mercado financeiro e da indústria subscreveram um documento no qual pedem providências urgentes contra a catástrofe. É a primeira vez no governo Bolsonaro que líderes empresariais reclamam coletivamente da questão.

Doeu no bolso e a mobilização se fez inadiável. A mensagem do grupo diz com todas as letras que a percepção do consumidor estrangeiro sobre os produtos brasileiros é hoje a pior possível, devido, justamente, a essas práticas que vão de encontro à pregação generalizada pela preservação. E, de fato, não apenas compradores de todos os continentes como os próprios fundos estrangeiros, que gerenciam perto de US$ 4,1 trilhões, resolveram dar um basta às atrocidades ambientais verificadas atualmente na Amazônia. Os investidores exigem resultado prático e
comprometimento explícito com o combate à devastação do pulmão planetário. Deixaram clara a ameaça de que vão retaliar com a suspensão de recursos para o Brasil caso não enxerguem mudanças nesse sentido. Na Europa, por exemplo, campanhas pedindo o boicote a alimentos produzidos em áreas desmatadas por aqui viraram uma constante.

Uma delas fala em não adquirir “carnes frescas de matadouros do Brasil”. Para fazer frente a essa resistência e desmoralização transnacional, o Ministério da Agricultura bolou uma série de vídeos para abrandar a imagem do agronegócio e afastá-lo da chaga do desmatamento. Em inglês, um deles, localizando no mapa a origem do suco de laranja, do açúcar, da carne, da soja e do café brasileiros, diz: “Produzidos em harmonia com as florestas” e conclui com o mantra do “alimentando o mundo, respeitando o planeta”. Como peça de marketing pode fazer algum efeito, mas sem os resultados práticos e concretos nos índices aguardados de redução da calamidade ambiental, nada feito. O Planalto, por exemplo, parece girar numa outra rotação. O vice Mourão eximiu o governo de responsabilidade no desmate. Foi além: pediu financiamento dos críticos para conter o avanço. Quer US$ 4 bilhões em recursos para ações ambientais no País, via instrumentos financeiros de captação a serem criados. Mourão ainda fala em índio “mais integrado”, o que contraria por completo a ideia de preservação também das povoações indígenas. Em nova articulação, ex-ministros da Fazenda brasileiros e ex-presidentes do Banco Central também partiram à reclamação.


Alertaram para os custos monumentais do descuido de “eventos climáticos”. Pediram critérios de redução de emissões e do estoque de gases de efeito estufa na atmosfera e uma revisão na gestão política da questão. Por enquanto, especialmente o presidente Bolsonaro tem ignorado a necessidade de alguma resposta. Mourão fala em estender ações na Amazônia até 2022. Tem muito de jogo de cena e pouco de medidas efetivas a caminho. E nessa toada, como bem lembrou o ex-presidente do Banco Central e do BNDES, Pérsio Arida, o Brasil já virou “pária do investimento internacional”. O preço a pagar pelo descaso será alto.

Revista IstoÉ

Você sabia disso ? - Já vai tarde

Abraham Weintraub, que destruiu a Educação no Brasil, já é carta fora do baralho ­— e isso é bom para o País. Ele sabe que há algo de muito podre no reino do Planalto. Em troca disso, ganhou um cargo no Banco Mundial


Venceu o prazo de validade do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e ele caiu na quinta-feira 18. Jair Bolsonaro segurou um pouco a sua demissão porque precisava dar-lhe uma saída honrosa. Weintraub já vai tarde, e ocupará uma vaga no Banco Mundial. O clã Bolsonaro faz isso por gratidão em troca da lealdade que o ex-ministro sempre demonstrou? Não, claro que não. Era muito arriscado defenestrá-lo sem compensá-lo, porque Weintraub sabe que há algo de muito podre no reino do Planalto. E é sabedor do fato graças a sua proximidade com o gabinete do ódio tocado pelos filhos do presidente. Somente por tal motivo a sua despedida foi cozinhada lentamente: Weintraub manteve-se como quem estava de malas prontas, mas sentado sobre elas, esperando o trem da história passar. Assim, deixa a Esplanda dos Ministérios mas segue para uma boa função. Como ministro, pode-se dizer que Weintraub foi um razoável humorista: quem, a não ser ele, para chamar asseclas de acepipes? Quem, a não ser ele, para transformar o genial escritor Franz Kafka na iguaria árabe Kafta? Mas nem tudo são graças. Weintraub vai embora e vai tarde para aqueles que prezam a área da Educação, simplesmente porque o ministro arrasou com ela feito gafanhoto na lavoura – não restou nada, nem esperança.
Nos bastidores do governo, ao longo da semana passada ouviram-se muitas especulações a respeito dos cargos possíveis para os quais ele poderia ser destinado pelo capitão inquilino do Palácio do Planalto. Cogitou-se de uma embaixada no Exterior, mas a ideia foi logo escanteada porque o Senado jamais aprovaria o seu nome (poupando-nos de passar mais vergonha ainda no estrangeiro). Falou-se também de cargo em conselhos e de poltrona e mesa no Banco Mundial. Vingou a terceira hipótese. Talvez caísse-lhe melhor um pocket show.

Em Brasília, a única certeza era de que tanto o Supremo Tribunal Federal como o Congresso Nacional aguardavam a demissão do ministro o mais breve possível, apesar de os filhos de Jair Bolsonaro tentarem convencer o pai a mantê-lo na função. Aliados do presidente comentavam que ele sairia, “mas não de mãos vazias”. Era de fato perigoso demais. Defenestrá-lo sem compensá-lo certamente teria danoso efeito bumerangue. Enquanto não era decidido seu futuro, no entanto, o ministro ainda conseguiu dar mais um golpe na Educação, revogando uma portaria que estabelecia a política de cotas para negros, indígenas e portadores de deficiência em cursos de pós-graduação.

O STF complicou ainda mais a situação de Weintraub mantendo-o no inquérito das fake news, e, com o cenário cada vez mais crítico, Bolsonaro passou a olhar com maior carinho – pura estratégia, é óbvio – para ajeitar o ex-aliado no Banco Mundial. Para tanto, até o ministro da Economia, Paulo Guedes, teria sido chamado para auxiliar nas negociações. Ou seja: o chefe dos acepipes é um kafta explosivo. Com a demissão, ainda havia a dúvida de quem colocar no comando do ministério, pelo qual já passou o folclórico e incompetente colombiano Ricardo Velez Rodríguez. Tudo indica que o substituto será o secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim. Indicação não sem motivo, pois também ele é um dos discípulos do filósofo de internet Olavo de Carvalho – ou seja, a educação seguirá em péssimas mãos. É importante deixar claro que Bolsonaro não tirou Weintraub dada a sua carência de talento mas, isso sim, porque o ex-ministro começava a disputar holofotes com ele. “Queríamos que o substituto fosse alguém menos radical, porque em dezoito meses de governo não temos nada construído”, diz João Marcelo Borges, diretor da organização nacional Todos pela Educação.

Revista IstoÉ 

Artigo de Opinião - Direito de expressão

As redes sociais deram vez e voz a muita gente. Disseminaram o pensamento, mas geraram falsa impressão de liberdade ilimitada. Vários filósofos, psicólogos e sociólogos apresentam boas análises sobre esse fenômeno. A maior parte deles aborda essa aparente ausência de responsabilidade que leva indivíduos a publicarem aquilo que dificilmente falariam fora das redes. Tal comportamento é reforçado pelos “algoritmos”. Com eles, as redes sociais se tornam um “lar, doce lar”, feito sob medida ao usuário. Isso fortalece certas posições, muitas vezes minoritárias no plano social. Aquele que tinha receio de falar torna-se destemido e avança para o comportamento temerário.
A liberdade de expressão, conquista do constitucionalismo e da democracia liberal, tem sido o indevido apoio para a impunidade referida. Assim como aqueles que pensam existir “intervenção militar constitucional”, numa leitura oblíqua da Constituição, os que praticam assassinato de reputações defendem a ausência de qualquer responsabilidade atrelada à liberdade de manifestação. Muito distante disso, a Constituição Federal garante o livre pensamento, vedando o anonimato (art. 5º, IV), bem como prevê o direito de resposta proporcional ao agravo, sem prejuízo de indenização decorrente de dano material ou moral (art. 5º, V). Vedar o anonimato é meio para identificar quem se expressa. Garantir o direito de resposta e a indenização por danos causados pela livre manifestação do pensamento é afirmar a responsabilidade de quem se manifesta quanto àquilo que manifestou.
A Constituição Federal também assegura a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, X). Indivíduos mais expostos têm menor privacidade. Contudo, o fato de serem públicos não lhes retira direitos da personalidade que integram a essência humana. Estão sujeitos a críticas, como todos estamos, e têm direitos em face
de agressões desmedidas e odios as Lesões a direitos sujeitam-se à apreciação judicial, na órbita civil e penal. Não se confunda a responsabilidade apresentada com censura. Esta cerceia a liberdade de expressão, impedindo que seja exercida. Livre para manifestar o próprio pensamento, o indivíduo não o é para agredir impunemente quem quer que seja. O agredido, diante da liberdade garantida ao agressor, poderá levar ao Judiciário a apreciação dos fatos, cujo conteúdo possa lhe ter causado danos materiais e morais. Por fim, o anonimato, além de inconstitucional, é prova de covardia.

Luiz Fernando Amaral - Revista Isto É

Artigo de Opinião - Genocídio anunciado


O maior esforço genocida que se  vê no mundo, atualmente, está acontecendo no Brasil, bem na nossa cara. É algo intencional, calculado e perverso. Tenta-se de forma inescrupulosa intensificar entre os povos indígenas os efeitos de uma pandemia que atinge toda a população. E isso acontece com o impulso do governo de Jair Bolsonaro e como parte de um projeto silencioso de extermínio. Povos inteiros estão sob ameaça de serem dizimados pela Covid-19 porque nada se faz para preservá-los. Ao contrário, aproveita-se de sua vulnerabilidade para deixá-los mais expostos ao coronavírus. Em vez de poupar os indígenas da contaminação, as forças do Estado tratam de testar sua capacidade de resistência e de deixá-los mais expostos. Com disse o cacique dos Caiapós, Raoni Metuktire, internado com desidratação , “Bolsonaro quer aproveitar e está falando que o índio tem que morrer, que os índios têm que acabar”.
Matam-se indígenas com transmissão intencional de doenças contagiosas no Brasil desde tempos imemoriais. Assim que os europeus perceberam que a gripe e a sífilis afetavam mais os povos autóctones do que eles próprios, passaram a utilizá-las como ferramenta de guerra biológica. No século 19, há pelo menos três relatos consistentes desse tipo de prática cruel. Um deles, feito pelo antropólogo Darcy Ribeiro no livro “Os índios e a civilização”, refere-se ao povo Timbira, no sul do Maranhão. Para se livrar dos indígenas, os pecuaristas locais os “presenteavam” com roupas infectadas com bexiga (varíola) de moradores da Vila de Caxias. Ainda no começo do século 20, há relatos de matanças orquestradas no Oeste Paulista com o uso de roupas contaminadas. Durante o governo militar, aconteceram casos semelhantes. A doença era a arma mais frequente usada pelos invasores para dizimar as populações locais.
Agora a história se repete. E recebe o nome de “ação social”. Mulheres de militares de Roraima visitaram, no final de junho, o território Yanomami para maquiar e fazer as unhas de mulheres indígenas, doar roupas para gente que normalmente vive seminua e fazer distribuição de doces para as crianças e incentivá-las a se aglomerar num pula-pula. No mesmo território, militares montaram uma operação, no início do mês, para distribuição de máscaras, álcool gel e milhares de comprimidos da inútil cloroquina. Há também uma impensável liberdade de circulação, estimulada pela Fundação Nacional do Índio (Funai), de missionários em tribos isoladas. Mudou o estilo, mas o espírito destruidor é o mesmo. O que se busca, na prática, com todas essas iniciativas, é levar o vírus para mais perto dos indígenas. Com o velho argumento de dar assistência, o governo brasileiro trata de levar adiante uma política genocida.

Vicente Vilardaga - Revista IstoÉ 








Artigo de Opinião - Números do preconceito

O brutal assassinato de George Floyd em Minnesota, nos Estados Unidos, pela polícia colocou, mais uma vez, a questão do racismo em evidência. Passeatas e manifestações de repúdio ao episódio explodiram no mundo inteiro, revelando que há motivo para esperanças e que podemos — e devemos — acreditar que o sonho de Martin Luther King se tornará realidade. Que as pessoas um dia não serão julgadas pela cor de sua pele, mas pelo seu caráter. Houve avanços? Sim, sem dúvida. Mas uma série de indicadores deixa evidente que ainda há muito a ser feito.
No informativo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, o IBGE indica que entre 2012 e 2017 foram registradas 255 mil mortes de negros por assassinato no país. Em termos de proporção, os negros têm 2,7 mais chances de se tornarem vítimas de homicídio do que os brancos. O Atlas da Violência de 2019, estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, confirmou essa tendência ao mostrar que, no ano passado, 75,5% das pessoas assassinadas no país eram negras — a maior proporção da última década.

O preconceito também é perceptível no mercado de trabalho. Em 2018, os trabalhadores brancos ganhavam, em média, 73,9% a mais do que os trabalhadores pretos ou pardos. E recebiam, em média, 27,1% a mais do que as mulheres. Esse cenário foi identificado pelo IBGE na pesquisa Síntese de Indicadores Sociais — Uma Análise das Condições de Vida da População Brasileira: 2019, lançada em novembro passado. De acordo com dados divulgados em fevereiro deste ano, a taxa de desocupação da população autodeclarada negra em 2019 ficou acima da média nacional (11%), alcançando 26,1%. Os dados constam da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE.

O contingente de negros sem emprego era então de 13,5%, entre pretos, e de 12,6%, entre pardos. Outro indicador preocupante: dos 2,6 milhões de estudantes de ensino fundamental ou médio reprovados em 2018, 48,41% eram negros (pretos ou pardos). Segundo estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), o número de reprovados nesse grupo é duas vezes maior que o de brancos, somando, em 2018, mais de 1,2 milhão de estudantes reprovados. Não podemos nos acostumar com esses dados. Não podemos perder a capacidade de nos indignarmos com a desigualdade. Essa indignação não pode existir apenas quando um homem negro é asfixiado  até a morte. Chega de asfixia.

Cristiano Noronha - Revista IstoÉ

Artigo de Opinião - Um peixe pode na casa branca

Quando o coronavírus finalmente chegou à Casa Branca, na semana passada, atingindo um dos mordomos do presidente e a secretária de imprensa do vice-presidente, foi realmente instrutivo observar a reação de Donald Trump. Depois de quatro meses subestimando a seriedade da pandemia, de repente ele ficou assustado, e foram imediatamente postas em prática uma série de medidas para protegê-lo. Agora ele será testado diariamente, todo mundo que se reúne com ele será testado também, e o uso de máscaras na Casa Branca virou obrigatório.


E nós, o povo? Enquanto o presidente parece, por fim, reconhecer a necessidade de medidas protetivas, ao menos para ele mesmo, o povo ainda está enfrentando estoques inadequados de máscaras, é quase impossível encontrar desinfetantes nas lojas, o papel higiênico continua em falta e, nos supermercados, há uma escassez crescente de carne e enlatados. Pior ainda, Trump já declarou a vitória sobre o coronavírus, alegando que o povo nem precisa de testes e exigindo que os governadores dos 50 estados reativem a economia.



Ou seja, estamos vivendo uma situação de dois pesos e duas medidas. Em 2016, Hillary Clinton foi duramente criticada quando disse que metade dos seguidores de Trump são racistas e xenófobos, “uma cesta de deploráveis”. Mas Trump foi muito além disso: para ele, todos nós que não fazemos parte do pequeno grupo que o rodeia podemos ser sacrificados para que ele realize sua ambição de ganhar um segundo mandato. Somos simplesmente descartáveis.



É claro que existem vários graus de descartabilidade, que refletem as desigualdades e hierarquias da sociedade americana. Para combater a escassez de carne, por exemplo, Trump decretou que matadouros e frigoríficos são essenciais à segurança nacional e não podem fechar; muitos estavam paralisados porque os empregados, trabalhando ombro a ombro, pegaram o vírus. (Vale a pena notar que uma das quatro empresas principais do ramo é a brasileira JBS, e que houve surtos do vírus em seis de suas fábricas americanas.)
E quem são os operários processando a carne que Trump consome em seu Big Mac? A grande maioria são imigrantes mexicanos e centro-americanos, “estupradores” e “gente ruim”, segundo Trump, ou refugiados africanos de lugares que Trump chama de “países de merda”. Para ele, as empresas frigoríficas são “essenciais”, mas seus trabalhadores estrangeiros não. O decreto reativando a indústria de carnes inclui uma cláusula isentando as empresas de responsabilidade legal caso seus operários peguem o vírus ou morram por causa dele e devido às condições insalubres de trabalho.



Os Estados Unidos têm toda uma propaganda oficial ao redor dos veteranos de guerra, e, quando chegam à terceira idade, eles têm direito a moradia especial e acesso a hospitais para ex-soldados. Só que na pandemia esses locais ficaram muito inseguros e até perigosos: em uma dessas casas de repouso para militares, com pouco mais de 300 residentes, já morreram 72 e outros 111 pegaram o vírus. Apesar de toda a retórica sobre “nossos heróis”, o governo não está tomando as providências devidas para protegê-los. Falar é fácil, não é?
Então imagine a situação dos milhões de idosos e idosas que não fizeram o serviço militar. A grande maioria das famílias não tem orçamento para contratar cuidadoras, e surgiu toda uma indústria de lares de idosos, não de caridade, mas com fins de lucro. A primeira morte em massa da pandemia aconteceu justamente num desses recintos, em Seattle, e foi seguida por outras chacinas em casas de repouso em Massachusetts, Texas, Illinois e Nova Jersey. Mas tudo bem, dizem seguidores fervorosos de Trump como Dan Patrick, vice-governador do Texas. Segundo ele, os avós precisam aceitar o sacrifício de sua vida para “preservar para seus filhos e netos a América que todos amamos”, com economia pujante. Em outras palavras, são descartáveis.



Descartáveis também são as enfermeiras, os trabalhadores do Samu, os técnicos e até os médicos. Mais uma vez, a retórica triunfa sobre a realidade: são aplaudidos como operários “da linha de frente”, mas não têm um estoque suficiente de equipamento pessoal de proteção. Muitos deles são de minorias raciais: negros, hispânicos, asiáticos. Mas, quando reclamam da falta de equipamento e testes, Trump, em vez de socorrê-los, os acusa de vender máscaras no mercado negro.
Na verdade, existe apenas um descartável neste desastre que os Estados Unidos estão vivendo, com mais de 80 mil mortos. Como diz o ditado: “É sempre pela cabeça que o peixe começa a ficar podre”, e um fedor está emanando da Casa Branca.


Larry Rohter, jornalista e escritor, é ex-correspondente do “New York Times” no Brasil e autor de “Rondon, uma biografia”

Artigo de Opinião - Prevenir fenômenos aleatórios