sexta-feira, 3 de julho de 2020

Editorial - O Lobo na Pele De “Jairzinho”

A nova fábula inventada pelo governo é a de que ele agora roga pela pacificação. Quer a paz, o armistício, o entendimento. Com o Congresso, o Supremo, os indigenistas, médicos, professores, quem aparecer pela frente. Deixou de lado o tom beligerante, a arrogância voluptuosa do “eu que mando”. A versão mal acochambrada do “Jairzinho paz e amor” — tal qual a embalagem marqueteira do demiurgo do agreste “lulinha…”, deixa prá lá, criminoso já encarcerado no passado — tem intento e razões de ser. O mandatário de quatro costados, seguro de si por se julgar sustentado pela caserna e pelas ruas, perdeu o chão. Não se vê mais como aquela cocada toda. Dos militares ouviu que seria bom (impositivo até) baixar o tom. Da plateia de eleitores soube, espantado, não existir qualquer apoio a aventuras ditatoriais nessas paragens. Em pesquisa que calou seus arroubos, 75% dos entrevistados disseram-se a favor da democracia, 52% não gostam nada da presença fardada no poder político e a maioria absoluta abomina ímpetos golpistas. Acabou o assunto. E com ele os sonhos totalitários de um capitão reformado. Mas tem mais: Bolsonaro no Planalto, filhos, apaniguados, militantes, aliados, paus mandados e operadores estão, por várias frentes, acuados. O presidente em pessoa enfrenta ao menos duas investigações no Supremo. Os rebentos Flávio e Carlos, idem, na Justiça Federal do Rio. Amigos de longa data, presos ou sob suspeita. Financiadores de esquemas de fake news no “gabinete do ódio”, parlamentares engalanados que participaram das “rachadinhas”, a tropa de ministros ideológicos que aprontam e atrapalham, gerando prejuízos sonoros, a cumbuca inteira dos seguidores, passaram da condição de pedra à vidraça. Bolsonaro virou bonzinho, baixou a bola, porque está amargando consecutivas derrotas e, mais grave, sob sério risco de perder o cargo e a glória antes do tempo. Emite sinais de conciliação para remendar os estragos. E olha que não foram poucos. Na comunidade internacional, Bolsonaro encontra no momento o ambiente mais adverso possível. Com riscos de perder até o maior aliado. Donald Trump, o ídolo indomável, a referência para tantas diabruras, que pode em alguns meses não estar mais lá na cadeira de homem mais poderoso da Terra. Corre séria ameaça de fracassar nas eleições por falhas, digamos, decibéis abaixo das praticadas pelo líder bananeiro da parte de cá das Américas. O mundo, no último final de semana, recebeu manifestações em dezenas de países e continentes com os dizeres “Stop Bolsonaro”. Há uma revolta generalizada em especial com o seu descaso pelas queimadas e desmatamentos, que sangram a Amazônia. Ninguém deseja ou aguenta mais tamanha destruição e vai punir o Brasil, talvez como cúmplice, pelo disparate do seu chefe de Estado.Um grupo de 29 instituições financeiras, entre as maiores do planeta, responsáveis por nada menos que US$ 3,7 trilhões em recursos (ou o dobro do PIB nacional) emitiram uma carta ameaçando claramente retirar seus investimentos daqui caso o País siga subindo seus índices de afrontas ambientais. Já se sabe, o tema caiu para o último lugar na hierarquia de atenções do “mito”. Mas ele quer se redimir, tomar prumo. É o que alega. Na verdade, Bolsonaro está por alguns dias comportado, mas não se emenda. Nem acalente esperanças! Não é da natureza dele. Quem age, coloca panos quentes e se mexe no meio de campo é a entourage dos ministros e assessores conscientes. Bolsonaro fez o que era possível e estava ao alcance do seu limite: saiu de campo. Algumas semanas sem Jair e com o “Jairzinho Paz e Amor” atuando foram, no mínimo, pedagógicas. Uma ausência que preencheu uma lacuna. Sem o tom histriônico e desagregador do capitão, o País pôde finalmente cuidar do que interessa. O lobo ficou na toca e movimentações producentes, como a da negociação do czar Paulo Guedes com deputados para evoluir na pauta econômica, conseguiram ganhar prioridade. Sem o presidente irascível o País evoluiu melhor. Quem diria! A ausência bem vinda. No coração do poder reina, momentaneamente, um comandante manietado, tutelado pelas forças militares, tolhido pelo descrédito junto aos demais poderes, ignorado por tantos disparates e imprudência. Não o imagine como vítima. Jamais! Está sim na posição de réu por malfeitos em série. Alguém em quem não se pode confiar. Não apenas pelas mentiras que professa, mas pelos atos indomáveis e inconsequentes que executa. O lobo ainda está ali, mas vestiu, por conveniência, a pele de Jairzinho.

Editorial - Revista IstoÉ - 03 de julho de 2020 


Entrevista - José Vicente - reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

O professor e empresário José Vicente, 61 anos, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, atua de maneira destacada na valorização da educação inclusiva e equânime da população historicamente abandonada. Esse é o tema de sua vida: a condição dos negros brasileiros e tudo que permeia essa questão. “Em todos os espaços de poder, as pessoas negras são minoria, seja dentro do ambiente empresarial, seja nos três Poderes da República, seja em qualquer instituição pública ou privada”, disse José Vicente, em entrevista à ISTOÉ. A estrutura de comando universitário segue essa regra. José Vicente está entre os poucos reitores negros do Brasil e o único de uma instituição privada. Ex-bóia-fria, ex-policial e educador por excelência, ele discorre linearmente sobre o Brasil e os EUA explicando quais são as razões que levaram a ações de barbárie, quase diárias, que o mundo inteiro viu pela imprensa. Para o professor, a selvageria que vitimou George Floyd, em Minneapolis, e a violência que atingiu o menino João Pedro, no Rio de Janeiro, pertencem à mesma matriz ideológica. Ao falar sobre políticas, especificamente a respeito do governo Bolsonaro, ele é contundente. “O governo já tornou público que não tem nenhuma disposição para resolver a questão da discriminação e do racismo. Pelo contrário, tem reservas”, afirma. “Com Bolsonaro não é permitido o livre pensamento. Esse é o governo da negação”.

O informativo de desigualdade social por cor e raça, do IBGE, indica que entre 2012 e 2017, houve 255 mil mortes de pessoas negras por assassinato no Brasil. Os negros têm 2,7 mais chances de morrer assassinados do que pessoas brancas. Como o senhor vê essa situação?

Na Faculdade Zumbi dos Palmares temos o Observatório da População Negra que abrange vários temas e um deles é a violência contra essa população. Nós acompanhamos, debatemos e fazemos as mais diversas ações para tentar mudar esse estado de coisas que se apresentam como genocídio pré-ordenado à população negra. É uma verdadeira limpeza étnica, já que em nenhum local do mundo se matam tantos jovens negros dessa forma. Lembra um túnel do tempo. Isso sempre foi assim. Temos que ter um discurso que denuncie o racismo e a discriminação estrutural e institucional e motivar intervenções do Estado e da sociedade no sentido de terminar com essa matança. Ainda não conseguimos criar um caminho para produzir soluções.

Não sei quem é mais destrutivo: Bolsonaro ou o coronavírus. Tinha que se fazer no Brasil algo parecido com o Plano Marshall para vencermos essa crise sanitária 


No Brasil há letargia e falta mobilização contra o racismo? Por quê?

Porque todos nós fomos vitimados pela perversidade do nosso sistema político, que nega a existência do racismo e também nega que os números que refletem a violência e a desigualdade, pontuadas pelos indicadores sociais, sejam fruto do racismo e da discriminação. Há uma negação permanente.

Mas os números da discriminação saltam aos olhos.

Há cem anos que os indicadores são os mesmos e em nenhum momento, nem à esquerda, nem à direita, na Ditadura Militar, no milagre brasileiro, nem quando nós éramos um País atrasado, nem quando éramos a quinta economia do mundo, nós conseguimos mexer uma vírgula desses indicadores. Seja por essa desqualificação do racismo como realidade, como algo que separa e distingue pessoas, seja porque não se trata de uma prioridade da agenda política, econômica e social. Nós estamos há anos-luz do Apartheid sul-africano e do americano, mas nem assim as parcelas da sociedade, que exercem o poder, têm interesse, disposição ou determinação para intervir. Preferem o silêncio, a indiferença e a negação. Dizem, “o que acontece nos EUA é racismo, matar um negro com o joelho no pescoço, aqui no Brasil não é assim”. Atender essa demanda requer colocar a mão no bolso e tirar o dinheiro de alguém, e jamais a elite brasileira vai permitir que os recursos que atendem seus interesses, suas necessidades, saiam do seu bolso para resolver esse problema.

Então, o caminho é elegermos pessoas negras para o Executivo e o Legislativo? Isso vai permitir minorar o impacto do racismo?

Não resta dúvida. Veja qual foi à resposta da sociedade e como foi a resposta da elite dirigente para a não presença das mulheres no ambiente político. Eles criaram uma lei em que todo o partido político tivesse 30% de mulheres. Não houve questionamentos ou resistência, todos compreenderam. Há uma distorção que deslegitima e desconfigura a presença e a perspectiva democrática e, por conta disso, vamos construir uma política pública, mas ninguém até hoje teve disposição e coragem para dizer que existe uma distorção maior, que não existem negros no sistema político. É um sistema perverso. Nós temos um senador negro, dez deputados federais negros, um vereador negro em São Paulo e duas deputadas estaduais negras, num País em que 54% da população é negra. Se fossemos uma República verdadeiramente democrática, seguramente isso não seria assim.

Há outro caminho?

O Estado tem meios, mecanismos e obrigação de fazer, já que é para isso que ele existe: para diminuir as desigualdades e distorções. Por exemplo, as cotas raciais em universidades públicas são uma ferramenta que têm capacidade de transformação. Agora falta termos a gestão universitária com negros na administração, mais professores negros, como pesquisadores na pós-graduação e no ambiente de produção de tecnologia. Precisamos de 50% de cotas em toda estrutura. Fora disso, temos desigualdade.

A violência contra a população negra está espalhada por todo Brasil?

A nossa gênese é a da violência. Nós somos um país construído sob a escravização, o extermínio e o vilipendio do índio, o estupro da mulher indígena, a destruição da família indígena, depois toda a barbárie sobre o negro e a violência e a brutalidade que se estabeleceu a todos aqueles que não fizessem parte da elite no poder. E essa elite vem desde então construindo sua milícia oficial, que tem como metodologia o extermínio puro e simples. A violência é o recorte. É só ver Datena e Sikêra Júnior para se ter noção de como a violência está embrenhada na vida social. O Estado terceiriza a violência formal e informal. Veja os casos das milícias e da polícia na periferia, daquele menino, por exemplo, que foi abordado numa escada na favela pela polícia aqui em São Paulo.

É como antigamente, quando o jovem negro não podia sair de casa sem os documentos?

Ainda bem que alguém teve a coragem de filmar. Mas aquilo é rotina, trivial, faz parte da rotina do jovem de periferia, principalmente negro, em qualquer lugar do País. No Judiciário também há problemas. Nós temos 900 mil presos no Brasil, dos quais 50% não foram denunciados. Não tem Direitos Humanos, não tem Ministério Público, não tem política, não tem mídia, não tem padre, não tem um filho de Deus que consiga fazer a Justiça cumprir a lei. Porque uma pessoa só pode ser mantida presa por noventa dias, sem denúncia. E quem são esses presos? Se fosse o Sérgio (Machado) da Transpetro, ficaria com uma tornozeleira eletrônica em casa esperando a pena passar.

Gostaria que o senhor analisasse a situação nos EUA e o assassinato de George Floyd.

Havia um policial com o joelho em cima do pescoço do Floyd, com a mão no bolso, quase como quem vai pegar o celular para enviar uma mensagem. Mas havia mais três policiais que estavam ao lado dele, olhando aquela cena horripilante, acompanhando a morte que estava se materializando, e todos continuaram na mesma posição sem nenhum tipo de constrangimento, sem preocupação que ali no chão havia um ser humano. Só ficaram dessa forma porque, em sua compreensão, a pessoa negra não é um ser humano, mas sim um ser inferior. É esse sentimento de superioridade que embasa a polícia e grande parte dos americanos e suas instituições. Trata-se de uma justificativa para se agir dessa forma. Essa é a essência do racismo.

O racismo está acima dos ensinamentos na academia de polícia?

Sim. Está no chip do indivíduo. Desde que a pessoa vem ao mundo, que tem um passado e uma estrutura racista, é isso que ele aprende.

Mas no caso dos EUA houve o fortalecimento do movimento antirracista, o Black Lives Matter.
Essa é uma diferença significativa entre Brasil e EUA. O slogan Black Lives Matter é uma nova nomenclatura para algo que já existia com outros protagonistas como Martin Luther King, Rosa Parks, Angela Davis, Panteras Negras, Malcolm X, entre outros. A trajetória do negro americano foi de luta e embate nas ruas e em todos os espaços sociais, enfrentando Ku Klux Klan, com suas patrulhas incendiárias, que invadiam as casas das famílias negras e tocavam fogo. São movimentos que os participantes acreditam na justiça, com capacidade de repercussão mundial. O dado novo foi que dessa vez vimos que a força letal do Estado, a polícia, se colocou de joelhos para se solidarizar com o movimento e no limite com o próprio George Floyd. Nunca imaginei essa cena, a polícia se desculpar por sua selvageria. E também foi resolutiva no sentido de fazer com que os municípios e estados mexessem no protocolo e no orçamento da polícia para que ações do tipo não aconteçam novamente. Sem contar uma meia dúzia de estátuas que foram para o rio. Quisera que isso acontecesse no Brasil. Aqui, 50 policiais entram na favela metralhando tudo, mesmo com gente dentro das casas, e não acontece nada.

Qual é a sua analise a respeito do governo Bolsonaro, principalmente em relação ao Ministério da Educação?

Essa pasta foi cooptada pelo governo Bolsonaro para fazer um recorte ideológico. Fica o tempo todo criando factóides, que é uma das marcas da gestão. O primeiro a assumir o cargo, Ricardo Vélez, era um desconhecido que estava totalmente perdido. Weintraub, não tinha capacidade e envergadura técnica para gerir o Ministério. Transformou-o num palanque, no qual fez a construção de um inimigo, o marxismo cultural, algo imaginário. E agora, o presidente tirou da cartola um novo ministro que também não tem capacidade técnica. Aliás, nem assumiu, por ter um currículo questionável. Esse governo não está pautado para construir um novo projeto educacional para o Brasil. Ele preza pela destruição.



Abraham Weintraub não tinha capacidade e envergadura para gerir a educação. E, agora, o presidente tirou da cartola um novo ministro sem condições técnicas e que nem assumiu
Esse momento de pandemia acentua esse projeto do governo?

Não sei quem é mais destrutivo: Bolsonaro ou o coronavírus. Tinha que se fazer algo parecido com o Plano Marshall para vencermos essa crise.

Mas o ministro da Economia, Paulo Guedes, não aprova. Ele já disse isso publicamente.

Sim, eu sei. Paulo Guedes é um representante do capitalismo rentista dessa gestão. Até por isso que o governo propôs R$ 200 de auxílio emergencial e foi preciso muita articulação política para chegar aos R$ 600.

Como a crise sanitária impactou o setor empresarial universitário? Como a Zumbi dos Palmares está lidando com esse momento?

A crise é forte. Estamos trabalhando remotamente, mas tivemos uma queda de 50% na demanda, deve demorar de dois a três anos para retomarmos o antigo patamar. Se tivéssemos uma gestão mais técnica no Ministério da Educação, conseguiríamos sair dessa crise melhor. Pois ninguém tem uma resposta pronta. A solução vai se dar ao longo do processo.

A educação é uma das formas de minorar o racismo. As empresas associadas à Faculdade Zumbi dos Palmares estão disponibilizando mais vagas de emprego aos candidatos negros oriundos da instituição?

O movimento cresceu e se fortaleceu. Atualmente são 60 empresas que de uma forma mais transparente têm demonstrado interesse nesse processo de valorização do negro. Muitas delas construíram políticas importantes, mas ainda muito aquém do necessário. Essas ações podem encorajar outras empresas a participar do nosso esforço, num espaço curto de tempo.

Qual a empresa que mais emprega candidatos da Zumbi dos Palamares?

Só da Faculdade Zumbi dos Palmares o Bradesco tem 500 trabalhadores negros efetivados. É a empresa mais avançada nesse tema, é a empresa que mais contratou negros na história. Mas eles têm 100 mil funcionários e os negros não representam nem 10% do total. O banco pode fazer mais.

No contexto das manifestações antirracistas, a Zumbi dos Palmares está lançando um manifesto. Do que se trata?

Trata-se do Movimento AR – Vidas negras Importam. É uma ação nacional de mobilização e colaboração gratuita e voluntária, com o propósito de promover mudança e transformação social, através de ações práticas, efetivas e objetivas de combate ao racismo, ao preconceito e à discriminação racial contra negros. Nosso objetivo é promover mudança e transformação nas atitudes pessoais, comunitárias e sociais para eliminação da discriminação racial contra os negros e todas demais pessoas no Brasil.

Zumbi dos Palmares se tornou um dos personagens mais criticados no governo Bolsonaro. Como o senhor vê a atitude de Sérgio Camargo, presidente da Fundação que leva o nome do líder negro?

O País transformou esse homem num herói nacional. Zumbi dos Palmares foi reconhecido e reverenciado pela sociedade brasileira, através dos seus representantes no Congresso, como um herói nacional. E mais: duas mil cidades e alguns estados reconheceram o valor da luta de Zumbi dos Palmares e declararam o dia de sua morte como feriado, além de nomear ruas, praças, avenidas e escolas em sua homenagem. Como pode um desqualificado desse dizer essas coisas? O governo Bolsonaro já tornou público que não tem nenhum tipo de disposição para resolver a questão da discriminação e do racismo. Pelo contrário, tem reservas. O presidente exige que todos que estão no governo operem na mesma sintonia. É um governo que não permite o pensamento. No caso da Fundação Palmares, quem conhece o pai do Sergio Camargo, o Oswaldo, um dos maiores escritores brasileiros, sempre defendendo a bandeira da negritude, isso não faz qualquer sentido. A Fundação Palmares foi criada para tratar do patrimônio cultural e artístico, além de fomentar políticas públicas para a inclusão dos negros brasileiros. A gestão atual revela um desvio de finalidade. Isso só poderia acontecer nesse governo da negação e do absurdo.

Qual foi o caso de racismo que mais lhe marcou?

A Faculdade Zumbi dos Palmares existe há quinze anos e todas as vezes que chego a bons hotéis para participar de seminários, debates, cerimônias, a pessoa fala: “Para aguardar a chefia você tem que estacionar o carro lá na frente”, mesmo o meu carro sendo novo e bonito. Aí tenho que dizer: “Eu não vim aguardar a chefia. Eu sou a chefia”. Aí o cara fica todo constrangido, todo sem graça. Pois bem, após participar das atividades, ao voltar para pegar meu carro, enquanto estou na porta aguardando, todas as pessoas que chegam colocam as chaves na minha mão. “O senhor pode pegar meu carro, por favor”. Então, preciso falar todas as vezes que não sou o manobrista e que estou, como as outras pessoas, também esperando meu carro.


Revista Isto É - 03 de julho de 2020


Você sabia disso? - A direita insana



Cinco personagens expõem a miséria atual da vida política nacional e apontam para a conformação de uma nova extrema-direita com ideias sem pé nem cabeça e um desejo incontido de violência e lacração

Seria ridículo se não fosse trágico. A manifestação noturna montada na frente do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo autodenominado grupo 300 do Brasil, liderado pela ativista bolsonarista Sara Winter, ficará marcada pelo esvaziamento e falta de importância. O protesto serviu para espernear contra o relator do inquérito das fake news, o ministro Alexandre de Moraes, atual inimigo número 1 dos radicais, a quem Sara chamou de “arrombado”. Mas o que pretendia ser uma grande ameaça direitista parecia um teatro ordinário, cheio de jovens grã-finos carregando tochas ou usando máscaras do personagem Jason, num clima de falsa Ku Klux Klan. Para um grupo que diz ter 300 participantes juntar apenas 30 almas penadas no protesto é, no mínimo, uma vergonha. O que não surpreende porque essa nova extrema-direita brasileira é absurda e sem vergonha. Esses grupos radicais que ganham forma agora no Brasil misturam símbolos neonazistas, fascistas, supremacistas e autoritários de um modo geral, falam muito palavrão e querem se assentar no poder. O ídolo momentâneo é o ditador Benito Mussolini, citado por Bolsonaro numa postagem. É um pessoal que toma leite, precioso líquido dos extremistas, para ser afirmar ideologicamente. Apesar do leite, cultivam a aparência de malvados e o poder dissuasivo. Exibem armas e, obviamente, todos defendem um golpe militar.

Sara Winter ou Sara Fernanda Giromini, 27, que começou sua vida pública atuando como agitadora feminista, defendendo o direito ao aborto e ao topless, é um dos exemplos mais bem acabados desse novo extremismo. Ela era libertária, foi uma das fundadoras do grupo Femen Brasil, mas diz que, em 2014, após sofrer um aborto, decidiu mudar de lado e passou a rezar pela cartilha da extrema-direita. Convertida ao cristianismo, diz-se defensora da família tradicional brasileira, luta contra a discussão de gênero, as drogas, a doutrinação marxista, a jogatina e a prostituição.

Gosta de exibir armas e se mostrar agressiva e desbocada. Hoje é uma das apoiadoras mais ferrenhas do presidente Jair Bolsonaro, tem um cargo no governo e comanda os 300 do Brasil. Parte dos membros do grupo está alojada em Brasília num acampamento situado no núcleo rural Rajadinha, entre Paranoá e Planaltina. A propriedade foi escolhida por cumprir o objetivo de dificultar a aproximação de estranhos e evitar olhares curiosos. Sara foi um dos alvos da operação da Polícia Federal que investiga as fake news, sob ordens do ministro Alexandre de Moraes. Nas redes, Sara divulgou vários impropérios e palavrões contra o ministro e a PF e disse que se recusará a depor.

Outro expoente dessa onda extremista é o deputado estadual Daniel Silveira (PSL-RJ), que ao longo da semana disse, numa transmissão pelo YouTube, que estaria disposto a atirar em manifestantes antifascistas se houvesse um enfrentamento. Ex-policial, Silveira é conhecido por ter sido filmado quebrando uma placa em homenagem à vereadora Marielle Franco (PSOL) nas eleições de 2018. Também é alvo da mesma operação da PF que atingiu Sara Winter. Nos últimos meses se tornou muito ativo no YouTube e depois dos protestos de domingo publicou vários vídeos que mostram muito bem o espírito da nova extrema direita. Em um deles chamou os participantes de um protesto antifascista que aconteceu, domingo 31, na Praia de Copacabana, de “vagabundos” e, em outro, ameaçou se dirigir ao grupo, declarando a um policial do isolamento que estava armado. “Eu vou lá. Vamos ver se eles são de verdade. O primeiro que vier eu “cato”. Aí fica a lição. Eu queria ir lá pegar um, po. Deixa eu pegar um, caralho”, disse Silveira. Mais tarde, o deputado afirmou que não estava ameaçando ninguém, mas que considerava uma “hipótese plausível, factível” a de que poderia usar uma arma para se defender de manifestantes.

A mulher do porrete

Representante de destaque dessa nova turma da extrema-direita é Cristina Rocha Araujo, também apoiadora fervorosa de Bolsonaro. Ela ficou conhecida, no domingo 31, porque portava um taco de beisebol durante uma caminhada contra a democracia na Avenida Paulista. Acabou retirada da manifestação pela Polícia Militar. “Senhora, por favor, vamos para lá”, disse o agente de segurança, enquanto encaminhava a bolsonarista para o grupo de simpatizantes do mandatário. “Eu não tenho medo, vim para a guerra”, responde ela. Além do porrete, no qual estava escrito Rivotril, um remédio ansiolítico, a manifestante levava no rosto uma máscara com a bandeira dos Estados Unidos, e se dizia com vontade de “enfiar o bastão nas pessoas que estavam criticando o presidente”. Ela se diz filha de um general e amiga do general Eduardo Villas-Boas, ex-comandante do Exército e um dos articuladores da campanha de Bolsonaro à Presidência. Ela trocou insultos e xingamentos com manifestantes a favor da democracia, que naquele dia estavam representados pelas torcidas organizadas dos principais times de futebol de São Paulo.

O amigo do filho 03

Também chama a atenção nessa nova extrema-direita o delegado da Polícia Civil de São Paulo, Paulo Bilynskyj, 33. Ele foi baleado em 20 de maio, por sua namorada, a modelo Priscila Delgado de Bairros, 27, após discussão e briga do casal, dentro do apartamento em que viviam juntos, em São Bernardo do Campo. O delegado ficou internado durante treze dias na UTI do Hospital Mário Covas, em Santo André. Bilynskyj, que era instrutor de tiro e dava aulas a Priscila, contou que a namorada teria ficado furiosa, enciumada, após ver uma troca de mensagens entre ele e uma ex-namorada. Na versão do delegado, a modelo teria disparado seis tiros contra ele e depois se matado com um tiro no peito. Porém, a investigação continua correndo e nenhuma possibilidade é descartada: feminicídio, homicídio e legitima defesa. Os dois se conheceram em 2019, e desde abril estavam morando juntos. Declaradamente bolsonarista, o delegado recebeu apoio do filho 03 do presidente, o deputado estadual Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). “Hospital Mario Covas em Santo André precisa de sangue para o amigo, delegado e Professor Paulo Bilynskyj. Força aí guerreiro. Se Deus quiser vai sair dessa. Já para a imprensa fica o conselho de tomar cuidado para não disseminar fakenews, ok?”, escreveu Eduardo no Twitter. A mensagem já foi apagada.

Antes do trágico fim do seu namoro, Bilynskyj gravou um vídeo em seu canal Projeto Policial, com a participação de Eduardo. Na conversa entre os dois, o filho do presidente fala sobre projeto de lei para liberalização das armas de fogo e faz críticas às pessoas que não apoiam o movimento de armar a população indiscriminadamente. Em suas redes sociais, o delegado Bilynskyj sempre se manifestou contra pautas de esquerda, sobre direitos humanos, além de tecer comentários com conotação machista. “O que mulher faz, além de iludir?”. E também escreveu que “a cada 3 segundos uma mulher ilude 10 homens no Brasil”. Paulo e Priscila planejavam se casar neste mês de junho.

Uma misteriosa bandeira vermelha e preta apareceu na manifestação na Avenida Paulista, em meio aos grupos bolsonaristas, no domingo. Falou-se primeiro que se tratava de uma bandeira neonazista, mas logo se descobriu que era apenas de um grupo extremista e ultranacionalista ucraniano chamado Pravyi Sektor, organização paramilitar convertida em partido político. O reconhecimento da bandeira, inclusive, teria sido o estopim do entrevero entre bolsonaristas e torcidas organizadas que houve naquele dia. Quem portava a bandeira era o brasileiro Alex Silva, 46, instrutor de segurança que mora na Ucrânia desde 2014. Ele trabalha em uma academia de tiro e táticas militares em Kiev, capital do país, e, diante do clima propício às armas e ao conflito, veio abrir uma filial no Brasil. Ficou impedido de voltar para casa por causa da pandemia. Enquanto isso passa seu tempo em manifestações pró-Bolsonaro e contra a democracia. “A gente sempre vai de uma maneira ordeira, pacífica, sem quebra-quebra, sem vandalismo. O máximo que a gente faz é vaiar os caras que nos chamam de gado”, disse Silva. “Eles são terroristas, não são pró-democracia coisa nenhuma”. Sua polêmica bandeira, porém, causou revolta e teve um efeito provocativo. Os novos extremistas dão a sensação de que podem manejar qualquer símbolo autoritário impunemente. Para eles, o importante é lacrar e se preparar para a briga, que pode eclodir a qualquer momento.

Revista IstoÉ - 10 de junho de 2020 

Artigo de Opinião - Não podemos respirar - José Vicente


O músico negro Elivaldo Rosa foi morto dentro de seu veículo com oitenta tiros disparados por soldados do exército, no Rio de Janeiro. O jovem negro Pedro Gonzaga foi asfixiado e morto por seguranças do hipermercado Extra, no Bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. O jovem negro, João Pedro, de 14 anos, foi morto e teve sua casa cravejada por 70 tiros efetuados por policiais civis e federais, em São Gonçalo/RJ. Um jovem negro de 17 anos foi despido, amarrado, amordaçado e chicoteado por seguranças do supermercado Ricoy, na periferia da zona sul de São Paulo.

No dia 13 junho, no bairro do Jaçanã/SP, um jovem negro foi rendido, agredido e espancando com socos, pontapés e cassetetes por PMs, e os parentes e amigos que foram em sua defesa, da mesma forma foram agredidos pelos policiais. No dia 14 deste mês, um PM de São Bernardo do Campo/SP, foi preso preventivamente, suspeito de haver sequestrado e assassinado com dois tiros na cabeça, o jovem negro Guilherme de 15 anos. Nenhuma dessas cruéis e brutais agressões foi suficiente para produzir qualquer tipo de indignação ou comoção social que levasse as pessoas às ruas, ou mesmo, que estimulasse um pedido protocolar de desculpas aos familiares e amigos das vítimas
e à própria sociedade, por parte dos diversos agressores.

No Brasil, os George Floyds são mortos e violentados aos borbotões pela segurança pública e privada em qualquer hora e lugar. As estatísticas do IBGE e do IPEA são um importante farol para iluminar a irracionalidade da indignidade seletiva que nunca contemplou as vidas negras. De 2012 a 2017, 255 mil negros foram assassinados; e, em 2019, dos mais de 60.000 assassinatos, 75,5 das vítimas foram negros, jovens na sua maioria.

Na prática real e objetiva da republica brasileira, alguns cidadãos passaram a valer mais que os demais, e os mais diversos grupos de interesses dos “homens brancos e de olhos azuis” que operam seus desejos e privilégios, através da estrutura do Estado, transformaram o racismo, o preconceito e a discriminação racial contra negros em arma política de garantia do alcance, manutenção e proteção da maioria dos benefícios e oportunidades sociais. Um verdadeiro Apartheid racial estratégico e preordenado que mantém negros e brancos separados e desiguais, e que usa a violência e a força bruta para manter seu status quo.

Sem desmontar esse maquinismo silencioso, dissimulado, perverso e criminoso, estaremos incapacitados de realizar o inexorável salto civilizatório, e continuaremos todos, com um joelho no pescoço, sufocados, asfixiados e impedidos de livremente respirar.


Revista IstoÉ - 26 de junho de 2020 

Artigo de Opinião - Educação desigual - Ricardo Amorim

A origem do problema brasileiro de desigualdade: os filhos dos mais ricos têm mais oportunidades educacionais. Por isso, qualificam-se mais. Por isso, ganham mais. Por isso, tornam-se mais ricos. Daí, seus filhos têm mais oportunidades educacionais, e o ciclo recomeça… Desigualdade de renda não é problema. A busca das pessoas por melhorar de vida gera desenvolvimento, melhora das condições para toda a sociedade e também desigualdade de renda. O problema é a falta de mobilidade social que decorre da falta de igualdade de oportunidades educacionais. Grande parte dos filhos dos mais pobres é condenada a continuar a ser pobre por não receber educação adequada.
A universidade pública, paga com impostos de todos os brasileiros, mas só os mais ricos têm acesso na maioria dos casos, mantém e agrava o problema. É um programa anti-social, um Robin Hood às avessas: dinheiro de todos para bancar os estudos dos ricos. Antes que alguém sugira que a solução é simplesmente colocar mais alunos pobres nas universidades públicas, é importante enfatizar que isto, sozinho, não é solução. As cotas para entrada na universidade deveriam ser baseadas fundamentalmente em critérios socioeconômicos, mas apenas colocar, por cotas, mais alunos pouco preparados nas universidades pioraria ainda mais a qualidade da educação nas universidades.

Precisamos qualificar os alunos mais pobres desde a escola básica. A grande solução para permitir que, mais alunos pobres cheguem à universidade, bem preparados, qualifiquem-se ainda mais nas universidades, ganhem mais, deixem de ser pobres e ajudem a desenvolver o país, aumentar a mobilidade social e diminuir as injustiças é muito simples: educação de primeira nas escolas públicas. Isso, sim, é um programa social. Mais do que nunca, esta tem de ser uma das principais prioridades do país. O isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus e a transição forçada e sem planejamento para o ensino à distância piorou ainda mais a educação no país, principalmente a educação dos mais pobres, que em geral não têm boa internet, nem espaço adequado em casa para aulas digitais. No caso das crianças menores, estes desafios se multiplicam pelas dificuldades naturais de educar uma criança pequena à distância. Se não investirmos para corrigir o fosso educacional que se formará, teremos toda uma geração mais despreparada e mais mal paga, desperdiçando potenciais talentos e reduzindo ainda mais nossa já baixa mobilidade social, o que aumentará tensões no país.

Revista IstoÉ - 10 de junho de 2020 

Artigo de Opinião - Basta, Bolsonaro - Germano Oliveira

Não resta mais dúvida. Bolsonaro deseja dar um autogolpe para levar o seu governo para a extrema-direita, muito semelhante às ditaduras fascistas, como a de Chávez, na Venezuela, embora o ministro do STF, Celso de Mello, tenha ido mais longe e comparado essa pretensão com algo semelhante ao regime nazista de Hitler. O decano foi um pouco exagerado, porque Bolsonaro, ignorante como é, não tem capacidade intelectual para fazer algo mais sofisticado. Sua ideologia tacanha, formatada pelo guru trapalhão da Virgínia e seguida por seus aloprados filhos, não passa de arremedo de um projeto fadado a ir para a lata de lixo da história. Ele vai continuar insistindo nessa tese até quando?

Todo final de semana, Bolsonaro faz suas bravatas na Esplanada dos Ministérios, aplaudido pelos “300” da amalucada Sara Winter — que, na verdade, não passam de 30 gatos pingados — ou autoriza os decrépitos seguidores a se armarem, estimulando-os a pregarem o fechamento do Congresso e do STF, como se fosse factível. A sociedade não permitirá que ele tenha sucesso. Não passa de um sonho de uma noite de verão também as falas reverberadas pelo deputado Eduardo, limitadíssimo intelectualmente, de que um cabo e um soldado fecharão o STF, ou que a ruptura está próxima. Balela. As Forças Armadas já disseram que não embarcarão nessa jornada insana. Quem ainda apóia esse grupelho fascista, liderado pelos Bolsonaros, são alguns generais de pijama. Os da ativa, que efetivamente comandam tropas, querem apenas manter o país em paz.

Na verdade, o barulho que Bolsonaro faz é muito conhecido na Justiça como “jus sperniandi” (o direito de espernear) contra o cerco que o STF faz contra ele e os filhos, todos suspeitos de vários crimes. Podem ser condenados à prisão, como é o caso do senador Flávio, acusado até de lavagem de dinheiro. O vereador Carlos também está no foco das investigações que o ministro Alexandre de Moraes faz no caso das fake news: Carluxo é acusado de ser o coordenador do “gabinete do ódio”. Esse grupo conta com a ajuda do irmão Eduardo e de outros deputados, além de blogueiros venais, como Allan dos Santos.


Todos se esquecem de que não estamos em 1964. Desta vez, a sociedade não permitirá que “o ovo da serpente” germine. A democracia brasileira amadureceu, a classe política não endossará essa aventura, o STF não compactuará com medidas inconstitucionais e a sociedade, mais organizada, e melhor informada pela imprensa livre, não permitirá a consolidação desse autogolpe em gestação, por mais fantasioso que ele seja. Basta, Bolsonaro!

Revista IstoÉ  - 10 de junho de 2020