sexta-feira, 10 de julho de 2020

Você sabia disso? - Graciliano Ramos e a peste



Em 1915, muito antes de se tornar um dos romancistas mais aclamados do Brasil, Graciliano Ramos tentava ganhar a vida como um jovem jornalista no Rio de Janeiro. Sempre ouvi dizer que ele havia fracassado ao buscar essa carreira. Com saudades de casa e sem conseguir se encaixar nas condições sofisticadas da vida na cidade grande, esse jovem tímido estava a mil quilômetros – e a um mundo de distância – de Palmeira dos Índios, sua cidade natal provinciana remota, localizada no seco interior do Nordeste brasileiro. Eu o imaginei batendo em retirada, voltando para se tornar um comerciante como seu pai, irritando-se com os clientes que interrompiam sua leitura.
Entretanto, em 1928, Ramos foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios e, usando essa rota improvável, ganhou projeção literária nacional. Como líder municipal, ele tinha de submeter relatórios anuais de orçamentos e projetos, rendas e despesas ao estado de Alagoas. Ele encarava esses relatórios como um tipo de desafio formal. Em uma narrativa dividida em subtópicos como “Obras Públicas” e “Funcionários da Justiça e da Polícia”, ele escreveu retratos hilários em tom seco da vida no interior, das rivalidades, da corrupção e do desperdício burocrático. Os relatórios viralizaram, para usar um anacronismo, circulando na imprensa ao redor do País e suscitando uma pergunta de uma editora: Será que, por acaso, ele não havia escrito outra coisa? Seu primeiro romance, Caetés, foi publicado logo em seguida, dando início a uma brilhante carreira literária.
Ramos ainda escreveria outros três aclamados romances, um livro de memórias sobre sua infância, um relato monumental sobre seu encarceramento durante a ditadura Vargas e inúmeros contos, ensaios e livros infantis. Em 1941, uma votação nacional sobre literatura considerou-o um dos dez maiores romancistas brasileiros. De lá para cá, sua influência tem sido profunda e duradoura. A maioria dos brasileiros cultos leu pelo menos um de seus livros. Seu último romance, Vidas Secas, já teve mais de cem edições.
Entretanto, recentemente descobri que uma narrativa viral de outro tipo paira sobre sua história. Após um ano trabalhando no Rio como tipógrafo e, depois, revisor de vários jornais, o jovem que lamentava sua timidez em cartas recebeu uma ótima notícia: várias crônicas suas em breve seriam republicadas na Gazeta de Notícias, um dos jornais de maior prestígio da época. Parecia que as coisas melhorariam, mas logo o destino interveio.
Em agosto de 1915, o pai de Ramos lhe enviou um telegrama para dizer que três de seus irmãos e um sobrinho haviam morrido, no mesmo dia, de peste bubônica, que na época assolava Palmeira dos Índios. Sua mãe e uma irmã estavam em estado crítico. “Não havia mais como permanecer no Rio”, escreveu o biógrafo Dênis de Moraes em O Velho Graça, relato da vida do escritor. Ramos abandonou suas ambições de cidade grande, embarcou para casa, casou-se com uma namoradinha do interior e ali se estabeleceu. Ele se mudaria novamente para o Rio apenas 23 anos depois.
Traduzi os despachos municipais de Ramos porque eles nunca haviam sido publicados em inglês e porque amo a retidão indignada e o humor astuto presentes neles. Mas aprender sobre o papel da peste em sua biografia mudou a visão que eu tinha de uma paixão sua enquanto era prefeito, destaque nos relatórios: a higiene. “Cuidei bastante da limpeza pública”, declarou, no relatório de 1929. Ele mandou construir banheiros públicos; aprovou leis contra jogar lixo no chão. “As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturos imensos, que a Prefeitura não tinha suficientes recursos para remover.”
Foi sarcástico ao mencionar detratores: “Houve lamúrias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamúrias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamúrias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças”. (Eu havia me esquecido da morte dos cachorros quando li, para meus filhos, parte de minha tradução do relatório de 1929. Eles estavam rindo comigo até então, mas decidiram na hora que odiavam aquele homem. Talvez eu devesse ter explicado que cachorros podem ter pulgas e pulgas podem transmitir a peste e a peste dizimou a família do autor. Ou talvez eu devesse ter pulado essa parte.)
Ramos multou até o próprio pai por violar a lei que não permitia que porcos e bodes perambulassem pelas ruas da cidade. Quando seu pai reclamou, ele retorquiu: “Prefeito não tem pai. Eu posso pagar sua multa. Mas terei de prender seus animais toda vez que o senhor os deixar na rua”.
Apesar de ainda ser admirado pelo trabalho que fez enquanto era prefeito, Ramos pediu as contas depois de dois anos. Sua carreira de escritor havia decolado, embora ele tenha angariado mais aplausos dos críticos do que dinheiro enquanto era vivo. Tenho certeza de que o escritor nele desfrutou da ovação, mas ele tinha oito filhos e contas a pagar.
Em 1950, estava morando novamente no Rio e tinha se inserido bem na comunidade literária, portanto lhe foi dada a chance de traduzir, para o português, A Peste, de Albert Camus. Antes, eu achava que Ramos havia aceitado o projeto por ter um interesse em Camus. Quando soube de suas próprias perdas trágicas para a peste, especulei que ele tivesse sido levado ao romance por aquilo que este diz sobre a doença, talvez até como um amuleto contra um certo medo por ter mais uma vez ido ao sul, longe de sua região natal.
Acabou que não encontrei provas para qualquer uma das suposições. O consenso crítico é que, sendo um dos mais respeitados romancistas do Brasil numa época em que editoras queriam trazer mais literatura estrangeira contemporânea para o público leitor brasileiro, ele foi encarregado de traduzir A Peste, embora seu nome só tenha aparecido na segunda edição do livro.
No começo, Ramos resistiu – na verdade, ele não gostava muito da escrita de Camus, achava-a elaborada demais –, mas precisava do dinheiro. Sua solução foi refazer a obra, frase a frase, à imagem de sua própria prosa bem delineada – na prática, como dito pelo crítico Cláudio Veiga, tratar o romance de Camus como se fosse a primeira versão de um livro seu.
A obra de Camus começa com a descrição de um lugar familiar aos leitores de Ramos: uma cidade provincial isolada, onde as pessoas estão entediadas, trabalham bastante, “interessadas acima de tudo no comércio – um negócio que as mantém ocupadas, como gostam de dizer”. O narrador de A Peste é um obstinado escritor amador, que se identifica apenas no final. (Ramos também centralizou alguns de seus romances em escritores amadores, abordando indiretamente, como em A Peste, dificuldades de se expressar e legados da narração de histórias.)
Sabemos que o narrador mora nesse lugar – Oran, na costa nordeste da Argélia – e ficou para narrar o caos causado por um surto da peste bubônica. Frequentemente, desliza para a primeira pessoa do plural, falando de “nossa cidade” e “nossos cidadãos”, embora refira-se a si na terceira pessoa do singular. Entre as muitas modificações feitas por Ramos no estilo e prosa de Camus, está a eliminação desses “nós” e “nossos”, anulando o sentimento de comunidade trazido por esses pronomes. Ele ainda resume: reduz as frases à sua essência, não só distanciando o narrador, como deixando o romance mais sucinto e rijo.
Esse processo era tão rigoroso quanto o usado em sua prosa original, descrita por ele – sem surpresas aqui – em termos de higiene. Em uma famosa entrevista de 1948, disse: “Deve-se escrever da mesma maneira com que as lavadeiras de Alagoas fazem em seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal para secar”.
Esfregar, bater e deixar secar: aparentemente, essa era sua abordagem também na tradução. Não deixei de notar uma certa ironia, lendo tudo isso como sua tradutora: em grande parte, minha motivação de traduzir Ramos para o inglês se deu porque eu achava que alguns dos tradutores anteriores não haviam respeitado sua exatidão estilística. E agora aqui estava ele, modificando radicalmente um francês ganhador do Nobel que era tão deliberado quanto em suas escolhas estilísticas.
Mas nenhum dos tradutores de Graciliano Ramos, com a óbvia inclusão desta que vos fala, estiveram entre os maiores romancistas de suas próprias nações. Então, quando nos questionamos o que Ramos estava fazendo ao reduzir as frases de Camus como se fosse uma lavadeira ensandecida louca, remodelando-as à sua própria visão restrita, precisamos lembrar que é como se um William Faulkner de final de carreira (a quem Ramos foi bastante comparado por suas desoladoras elucidações de uma região isolada) o estivesse traduzindo. A soberba não seria de surpreender e o resultado nos deixaria curiosos.
Muitos cachorros levam tiros em A Peste. Gatos também. Mas é quando os ratos começam a reaparecer, correndo de um lado para o outro, ocupados com seus negócios, que o povo de Oran percebe que a vida está voltando ao normal. No final de A Peste, os cidadãos de Oran “se jogam para fora, nesse minuto sem fôlego quando o tempo de sofrimento está prestes a terminar e o tempo do esquecimento sequer havia começado. Dançavam por toda parte… Os velhos odores, de carne grelhada e licor de anis, erguiam-se na suave e fina luz que passava a cobrir a cidade. Ao seu redor, faces sorridentes voltadas para o céu”.
Desde que Susan Sontag cristalizou a ideia em aids e suas metáforas, tornou-se lugar-comum pensar em pestes como invasões. “Uma característica do roteiro habitual da peste: a doença sempre vem de outro lugar”, ela escreveu, listando nomes do século 15 para sífilis – os ingleses chamavam de “mal francês”, enquanto era “morbus germanicus para os parisienses, mal napolitano para os florentinos, a doença chinesa para os japoneses”. Queremos acreditar que as pestes nos visitam ou são visitadas por nós, vindo de longe, que não são nossas e muito menos nossa culpa.
A inovação radical de Camus era mostrar a peste surgindo espontaneamente da população de Oran – o livro termina dizendo que a bactéria pode ficar dormente por anos antes de “acordar seus ratos para que tragam morte a uma cidade feliz qualquer” – embora, visto que a obra é muitas vezes lida como uma alegoria da ocupação nazista na França, a metáfora da invasão alienígena não chegue a ser surpreendente.
Mas o que fazer se, tal qual Ramos, você está tentando definir e valorizar a literatura nacional num País ainda saindo da colonização, onde não se pode ganhar a vida com sua própria escrita (embora você ainda acredite que fará fortuna depois de morrer) e sua editora quer que você ajude a popularizar a escrita europeia traduzindo um romance francês sobre a peste? Talvez você tome aquele romance para si.
Apesar de suas derradeiras e sombrias notas de advertência, A Peste é reconfortante de um jeito que Ramos raramente é. O narrador de Camus nos conta que escreveu esse relato como um testemunho da injustiça e violência sofrida pelos cidadãos de Oran e “simplesmente para dizer que o que uma pessoa aprende no meio de uma epidemia é que há mais qualidades nos homens a admirar do que a desprezar”.
Os romances de Ramos costumam ser circulares, lineares. Eles não terminam com rostos voltados para o sol e louvores à bondade essencial do homem. Em vez disso, seus livros testemunham as invisíveis e admiráveis maneiras com que as pessoas lutam contra seus destinos e fracassam ao tentar mudá-los, por causa de sua própria cegueira tanto quanto qualquer outro motivo. Seus personagens, apesar de suas ambições, não chegam a triunfar sobre a natureza humana, sua própria natureza ou a natureza em si: “Plus ça change, plus c’est la même chose”.
Quando o narrador de Camus revela sua identidade, entendemos que ele não é, paradoxalmente, nenhum dos dois homens que de fato vimos escrever. Um deles, aquele que passou anos revisando compulsivamente a primeira frase do que certamente seria sua obra-prima caso ele conseguisse passar da primeira linha, finalmente consegue um ínfimo de satisfação: “Cortei todos os adjetivos”, ele diz – palavras que poderiam ter sido ditas por Ramos.
Fonte: The Paris Review | Tradução: Mariana Nântua (Época)

Artigo de Opinião - Um dia a conta chega

O grande romancista francês, Balzac declarou que "por trás de cada grande fortuna existe um grande crime". É inegável que os Estados Unidos têm desfrutado de uma riqueza e fartura sem precedentes na história. Mas nós, americanos, precisamos reconhecer que nossa prosperidade está fundamentada numa perversidade histórica, a escravidão, e que nunca vamos conseguir livrar - nos das consequências desse pecado original.
Escrevo estas palavras com confrontos entre policiais e populares estourando em 140 cidades americanas e algumas grandes metrópoles, inclusive Nova York e a capital, Whashington, em chamas, baixo toque de recolher e com tranques nas ruas - tudo isso em reação à morte de um homem negro sem arma. George Floyd, asfixiado por um policial branco em Minnesota. Aconteceu na noite de 25 de maio, coincidentemente num feriado dedicado à memória dos 750 mil mortos em nossa Guerra Civil de 1861 - 1865, travada para extirpar a escravidão e incorporar o negro como cidadão com direitos plenos. 
Em vez disso, o mundo assistiu ao vídeo de Floyd - com o policial em seu pescoço durante quase nove minutos - arfando, engasgando e finalmente gritando "Não consigo respirar!". A mesma frase foi pronunciada por Eric  Garner, um camelô negro detido por vender cigarros ilegalmente em Nova York e estrangulado por outro policial branco em 2014. Naquele ano, o jovem negro Michael Brown foi morto a tiros por policiais em St. Louis e um policial branco em Cleveland fuzilou um menino negro de 12 anos, Tamir Rice, dois segundos depois de chegar a um parque onde a criança ostentava uma arma de brinquedo. A lista nunca termina. 
Quando Barack Obama foi eleito presidente em 2008, eu acreditava que sua vitória podia ajudar a cumprir com as promessas de igualdade racial feitas depois da Guerra Civil 150 anos. Engano meu. A ascensão de um negro à Casa Branca apenas incentivou os racistas em nossa sociedade a serem ainda mais audaciosos. Eles questionaram desde o primeiro dia a legitimidade do governo dele, com Donal Trump na liderança. Proliferaram os desenhos animados retratando Obama como macaco e também a lenda de que ele tinha nascido na África. Para os racistas, todo negro é um sub-humano, a perda de um imóvel queimado por manifestantes irados vale mais do que a vida de um negro, e a melhor maneira de lidar com protestos contra abusos de negros pela polícia é com abusos ainda mais violentos.
Quando o primeiro navio negreiro chegou à Virgínia, a escravidão já existia havia um século no Brasil. Cerca de 500 mil africanos foram transportados aos Estados Unidos, enquanto 4 milhões chegaram ao Brasil, Lincoln emancipou os escravos em 1863, 25 anos antes da Lei Áurea. Nos Estados Unidos, a escravidão foi um fenômeno limitado por lei aos estados do sul; no Brasil, foi nacional. Apenas 13,4% dos americanos tem ascendência africana, enquanto a maioria dos brasileiros são negros, mulatos ou pardos. 
Não é apenas o contexto histórico que assemelha nossos países. O Brasil praticou a miscigenação e celebrou os elementos africanos de sua cultura bem antes dos Estados Unidos. Mas nós temos nosso Tamir Rice, e vocês têm seu caso João Pedro. Policiais racistas rápidos demais no gatilho, idem. Presidentes incompetentes que desprezam negros e outras minorias raciais e tentam desqualificar qualquer questionamento como obra de "terroristas", também. Em ambos os países, o negro ganha menos, morre mais jovem e sai da escola antes. 
São as sequelas da escravidão, e não sei como remediá - las. A religião nos ensina que não se pode escapar do pecado original. Mesmo assim, temos o dever moral de aliviar o sofrimento e a injustiça, e isso explica as grandes multidões nas ruas americanas. Em todos esses casos de negros mortos, os policiais foram absolvidos. Um tímido primeiro passo em direção à justiça racial seria a condenação do policial que assassinou George Floyd. 
Nestes dias de angústia, fico pensando num livro do escritor negro americano James Baldwin, The fire next time, de 1963. O título vem de um hino negro tradicional: Deus deu a Noé o sinal do arco - íris / Não mais será água, na próxima, as chamas. Aqui a próxima já chegou, com sua conta pesada. Vocês tiveram mais sorte. Mas até quando?

Larry Rohter - Revista Época - 08 de junho de 2010


Artigo de Opinião - Vida ou Morte

Perguntado sobre os mais de 30 mil mortos por Covid-19 no Brasil, o presidente da República respondeu, na lata, sem dó: “A morte é o destino de todos”. A morte é o destino de todos. Destino de George Floyd nos Estados Unidos, nas mãos de um policial. Destino do menino João Pedro, de 14 anos, baleado enquanto obedecia a quarentena dentro de sua casa. Assassinado por policiais. A morte é o destino de todos. Destino de pessoas de idades diversas, vítimas da doença a que o presidente se recusa a dar a devida relevância. Pois bem. A morte é, de fato, o destino de todos, ou de muitos que não perderiam sua vida tão cedo em razão do desprezo pela vida que demonstra o líder do país. Manifestação? Sim, manifestação.
As manifestações no meio de uma epidemia evidentemente aumentam o risco de contágio. As pessoas precisam se proteger, sair de máscara, procurar manter distanciamento para reduzir o risco de contaminação. Mas condenar as manifestações pró-democracia por causa da epidemia?
É bom lembrar que a manifestação pró-democracia é contra o presidente da República, que não apenas repudia a democracia, mas faz troça da epidemia e da perda de vidas, todas as vidas — em especial, a vida dos mais pobres e dos negros, os mais atingidos até agora. Portanto, manifestar-se pró-democracia é posicionar-se a favor da luta contra a epidemia.
Manifestar-se pró-democracia é uma questão de vida ou morte, tal qual a própria epidemia.
Tenho visto muita gente no Brasil se recusando a enxergar aquilo que deveria ser óbvio. O país atravessa um momento insustentável, com um governante que prefere o caos à preservação do país. Um governante que detesta as instituições que regem nossa democracia. Um governante abertamente favorável à brutalidade e à opressão. Um governante que não se importa com o sofrimento de dezenas de milhares de famílias brasileiras, com dezenas de milhões de habitantes do Brasil, com os mais vulneráveis, que ele reluta em auxiliar pela renda básica emergencial. O que fazer perante essa situação? Panelaços, sim. Gritaria, sim.
Mas vejam: as ruas sempre foram um espaço privilegiado da ação política. Quando algo está profundamente errado nós buscamos as ruas porque é nelas que se tem maior visibilidade e, portanto, se encena a um maior número a contestação, na esperança de que espectadores se disponham a se tornar atores. A tomada das ruas está proibida por causa da epidemia? Não, tomá-las está mais perigoso, mas de modo algum proibido.
Cabe a todas as pessoas que queiram se manifestar — diga-se, legitimamente — contra a barbárie do bolsonarismo ir às ruas com responsabilidade. Com máscara para não se contaminar. Com máscara para não contaminar os outros.
Aqui nos EUA a morte de George Floyd levou centenas de milhares de pessoas para as ruas ao longo de mais de uma semana. Algumas dessas manifestações foram violentas. Outras foram pacíficas. Outras ainda tiveram de lidar com a brutalidade da polícia: foi esse o caso aqui em DC, onde moro. Para que Trump pudesse tirar uma foto com a Bíblia na mão de cabeça para baixo, as forças de segurança lançaram gás lacrimogênio sobre pessoas que exerciam pacificamente seu direito de protestar contra o racismo.
Há temores de que possa haver um recrudescimento da epidemia nas próximas semanas? Sem dúvida. Mas o resultado das manifestações já é visível: os policiais envolvidos na morte de Floyd que haviam sido acusados com brandura viram suas acusações se tornarem muito mais duras em razão da indignação do povo nas ruas diante da injustiça do homicídio e da condescendência com ele.
Vejo no Brasil uma relutância que, apesar do descontrole da doença, não vislumbrei aqui. São pessoas que veem no governo Bolsonaro, na figura presidencial, todos os perigos que eles representam, mas que hesitam. Hesitam por causa da epidemia. Hesitam devido a um senso de responsabilidade justificado, como preservação das vidas.
Contudo, calar-se neste momento, apequenar-se neste momento, esconder-se neste momento é dar respaldo às atrocidades que levam vidas impiedosamente e com descaso. “É o destino de todos”.

Mônica de Bolle - Revista Época - 08 de junho de 2020 

Você sabia disso? - Racismo, poder e dinheiro explicam tentativa de ocultar nome da patroa da mãe de Miguel

Por  and  em 05/06/2020, 07:15.

OAB acompanhará inquérito

Sobrenomes de poder e dinheiro

Caridade para o Tennessee


Na manhã de quinta-feira, depois de uma enxurrada de comentários, questionamentos e xingamentos, tanto o prefeito de Tamandaré quanto a acusada Sarí Gaspar Côrte Real desativaram suas redes sociais. No perfil de Sarí, a publicação em modo público mais recente era ela solicitando doações a um hospital no lugar de presentes para o aniversário dela no ano passado. Mesmo sendo primeira-dama de uma das cidades com menor salário médio do estado, foi para um hospital nos Estados Unidos, o St. Jude Children’s Research, de Memphis, no Tennessee, que Sarí pediu as doações.
A ausência dos nomes dos patrões nas primeiras publicações e a retirada dos perfis do ar não adiantaram muito. O caso da morte de Miguel teve uma imensa repercussão nacional. Em um momento em que a luta contra o racismo causa protestos nos Estados Unidos e em capitais do Brasil, além de grande comoção nas redes sociais, a morte da criança entrou forte nesta discussão. Artistas e personalidades com milhões de seguidores se pronunciaram nas redes sociais pedindo por justiça, a exemplo das cantoras Anitta, Ludmilla e Iza.

A ativista Luisa Mell, com mais de quatro milhões de seguidores no Instagram, divulgou a manifestação que acontece hoje, às 15h, em frente às Torres Gêmeas. “Me ajudem a não deixar essa mulher ficar impune, porque ela é rica e influente”, escreveu. Ela foi além da postagem: entrou em contato com a família de Miguel e se ofereceu para pagar um advogado.