sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Artigo de Opinião - Drama, comédia e farsa - Nelson Motta


A ascensão e queda de Roberto Alvim foi uma farsa megalômana que virou um drama real, depois uma comédia de erros, e terminou como tragédia chinfrim. Com muitos anos de vivência no teatro como autor e diretor, Alvim encenou meticulosamente o seu monólogo triunfal, com o cenário, o figurino, o corte de cabelo, a atitude de um cruzado guerreiro e música de Wagner para dar grandiosidade. Só não imaginou que o protagonista se mostrasse um canastrão, falando como um ungido de Deus e pregando uma espécie de nacionalismo nazicristão.

Esse tal de Roberto Alvim, como o chamava Bolsonaro, pode ser meio louco, mas não é burro. Se não fosse ignorante, conheceria e nunca repetiria a citação de Goebbels no discurso fatídico, seria uma provocação inútil e perigosa. Algum assessor malvado, ou conspirando para derrubá-lo, sugeriu a citação e Alvim adorou, expressava suas ideias sobre a nova arte brasileira, cristã, heroica e de direita.

Mas quem plantou a citação fatal? Não deve ser difícil descobrir, entre os próprios assessores que participaram do discurso. A serviço de quem?

A primeira coisa que Regina Duarte deve fazer é demitir toda a assessoria de olavistas de Roberto Alvim e cercar-se de pessoas decentes da área de cultura, com experiência em gestão e convicções democráticas. O Estado não deve fazer cultura, só estimular, sem dirigismo e com diversidade.

Além de ótima profissional, Regina é uma pessoa honesta e bem-intencionada, com intensa vivência dos problemas do teatro, do cinema e da televisão, que às vezes toma decisões e posições com mais emoção do que razão.

Mas não se pode querer tudo. Ela sabe que boas intenções não bastam e que o governo, qualquer governo, é um viveiro de conspiradores e puxa-sacos capazes de arruinar os melhores planos.

Sua missão é convencer Bolsonaro da importância econômica da indústria cultural, seus empregos, seus impostos e sua capacidade de alegrar, divertir, emocionar e informar as pessoas.

Chato é passar de namoradinha do Brasil a noiva de Bolsonaro.

Artigo de Opinião - Respeita o meu axé. E o amém - Flávia Oliveira


Era 21 de janeiro, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, e um comentário na rede social expôs o tamanho do buraco em que a liberdade de credo está metida. Num post, dois recados: 1) As religiões de matriz africanas serão sempre minoria; 2) Majoritário, portanto hegemônico, no país é o cristianismo. Li a mensagem, que denunciei como inadequada, horas depois de falar sobre Mãe Gilda de Ogum, homenageada com a efeméride instituída pela Lei 11.635/2007. Gildásia dos Santos e Santos era ialorixá do Ilê Axé Abassá de Ogum, terreiro da mesma Bahia por onde os colonizadores inauguraram a invasão das terras, a pilhagem da riqueza, a subordinação dos corpos, a conversão das almas no Brasil. Ela morreu há 20 anos, após complicações de saúde decorrentes de agressões verbais e ataques à comunidade religiosa.

Uma foto de Mãe Gilda estampou em 1999 reportagem da “Folha Universal” que relacionava religiões de matriz africana a charlatanismo e golpe financeiro. Identificada, ela foi perseguida e teve a vida abreviada por um infarto fulminante, em 21 de janeiro de 2000. A filha e sucessora da líder religiosa, Jaciara Ribeiro dos Santos, acionou judicialmente a Igreja Universal do Reino de Deus, instituição à qual o jornal é ligado. Em 2009, o Superior Tribunal de Justiça condenou a IURD à retratação e indenização por danos morais. A data de morte tornou-se símbolo da luta contra a intolerância religiosa. Terça passada, no Parque Metropolitano do Abaeté, em Salvador, ela foi homenageada com toque de atabaques, flores e alimentos sagrados.

A perseguição ao candomblé, à umbanda e às demais religiões de matrizes africanas e ameríndias atravessa Colônia, Império e República. Acomodou-se com o arcabouço constitucional que instituiu liberdade de credo e criminalizou a perseguição a terreiros e filhos de santo. Nas últimas décadas, recrudesceu como atestam estatísticas do governo, da sociedade civil e até um relatório do Ministério Público Federal. No primeiro semestre de 2019, o Disque 100, do Ministério dos Direitos Humanos, recebeu 354 denúncias de discriminação religiosa, média de duas por dia. O serviço identificou a religião de 121 vítimas. Houve 26 agressões a umbandistas, 18 a candomblecistas, 17 a outras denominações de matriz africana. O número de queixas é crescente: nos seis primeiros meses de 2018, foram 221 denúncias; em todo o ano, 506.

No Rio, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa contabilizou 201 casos de agressões e ameaças em 2019, mais que o dobro de 2018 (92). Os ataques partem não só de líderes religiosos, mas de grupos de criminosos autodenominados evangélicos. Um em cada três episódios (35%) de violência religiosa ocorreu na Baixada Fluminense. Não por acaso, a cidade de Nova Iguaçu foi escolhida para abrigar o primeiro Núcleo Avançado de Atendimento às Vítimas de Intolerância Religiosa, parceria da Secretaria estadual de Desenvolvimento Social com a prefeitura. Desde fins de 2018, o Rio tem delegacia especializada em crimes raciais e delitos de intolerância, a Decradi.

Religiões de matriz africana não buscam hegemonia; nada têm a ver com catequese, conversão forçada, imposição. O que mães, pais e filhos de santo reivindicam, desde sempre, é liberdade para praticar sua fé. E respeito. Existiram e resistiram nas frestas; assim, atravessaram os séculos num país assentado no racismo e no autoritarismo. Por isso, é revolucionário ver, no epicentro do racismo religioso, o carnaval se refundar pela via da reaproximação com seus personagens, tradições e territórios. Desidratadas de recursos financeiros e apoio político, as escolas de samba voltam às origens. No Grupo Especial do Rio, oito das 13 escolas fazem referências a divindades e encantados das religiões afro-ameríndias nos sambas-enredo: Viradouro (Oxum, Xangô), Vila Isabel (Preto Velho), Portela (Oxóssi), Mocidade Independente de Padre Miguel (Exu), Paraíso do Tuiuti (Oxóssi e o Touro Encantado de Lençóis, representação de Dom Sebastião, o rei desaparecido de Portugal), Grande Rio (caboclos, Exu, Oxóssi, Iansã), Beija-Flor de Nilópolis (Exu) e Estácio de Sá (Xangô).

Na homenagem mais explícita, os carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, da Grande Rio, apresentarão Joãozinho da Gomeia, Tata Londirá, um dos sacerdotes de candomblé mais famosos do Brasil. O enredo, sugerido por componentes antigos da escola, foi abraçado pela dupla de artistas, estreante na agremiação e no Grupo Especial. No refrão contundente, cantado a pleno pulmões, a comunidade escancara o combate à intolerância: “Pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé /Eu respeito o seu amém, você respeita o meu axé”, nítida referência à perseguição de denominações neopentecostais aos cultos afros.

A polêmica do ano, contudo, ronda a Mangueira, que levará à avenida um Jesus Cristo pobre, de rosto negro, sangue indígena, corpo de mulher, concebido pelo carnavalesco Leandro Vieira à luz de uma interpretação progressista e inclusiva da Bíblia. As críticas por católicos e evangélicos conservadores e dogmáticos já renderam até abaixo-assinado contra a escola. É a verdade absoluta dos homens de bem que monopolizam o debate político, se impõem à criação artística, interferem nas políticas sociais, desprezam a liberdade de credo, apequenam a democracia. Não respeitam a diversidade. Nem no amém, nem no axé.

Artigo de Opinião - Alvim é Bolsonaro -

Carlos Andreazza - O Globo - 22/01/20

‘Não queira estar no meu lugar” — vitimizou-se Jair Bolsonaro. Não quero — respondo. Por isso não me candidatei à Presidência nem fiz campanha — ilegalmente — por quase quatro anos. Há método, porém, na falsa incoerência. O líder que, eleito como consequência do próprio empenho, projeto de uma vida, reclama do fardo como se cumprisse missão divina é aquele que — síntese do populista autoritário — pede, cobra, adesão incondicional. Ele se sacrificou por nós. Não é isso?

Bolsonaro, o que se martiriza pelo Brasil, pede — cobra — adesão incondicional tanto quanto não hesita em se livrar dos que instrumentalizou.

Investido de poder pelo presidente e estimulado por ele (“secretário de Cultura de verdade”), Roberto Alvim cumpriu seu papel. Mais um kamikaze disparado para desfiar o tecido social de um país há muito em profunda depressão política; um país cujo liberalismo, por exemplo, dá-se à luxúria de se crer somente econômico — a própria expressão da doença — e capaz de prosperar servindo ao ressentimento reacionário (a própria definição de suicídio).

O erro de Alvim: explicitar a essência do bolsonarismo

Como todo fusível, Alvim queimou. Há vários assim, peões de baixo alcance, à mão do projeto bolsonarista de afrouxamento da democracia liberal. Sim, as instituições mobilizaram-se para mostrar que o vídeo do então secretário de Cultura, aquele com referência a texto nazista, violava valores inegociáveis. Não havia dúvida de que a reação viria; tampouco de que Alvim seria lançado ao mar. O problema está na frequência com que as instituições ora são provocadas no Brasil — o que significa que os freios de nosso sistema, por enérgicos que sejam, submetem-se ao desgaste de um uso excepcional, não sendo improvável que, tão esticados, cedam algum terreno a cada vez que acionados. Alvim vai. A ideia fica.

Alvim morto é Alvim posto. Um provocador que veio para trombar, para testar linguagem, averiguar reações e avançar algumas peças retóricas extremadas — que equivalem a iscas para demonstração de fidelidade, de submissão. A ideia fica e circula. Considerada a relativização do discurso do sujeito por influentes pensadores do bolsonarismo, a questão agora consiste somente em medir como o arreganho fascista chegará ao guarda da esquina. Sempre chega.

A mensagem contida no vídeo tem a arte apenas como um meio para expressão da fé autocrática: o Estado como gerador de uma nova civilização brasileira; um Estado em que à elite dirigente — a um indivíduo como Roberto Alvim — é pedido que faça uma cultura. Isto mesmo: que faça uma cultura. Onde já vimos algo dessa natureza?

O padrão autoritário de comunicação bolsonarista é conhecido. Alvim sentiu-se à vontade para pontificar sobre “as aspirações urgentes do nosso povo”. Reproduzia o chefe. O presidente é um que fala para uma pequena porção da sociedade, mas que arma esse discurso, segmentado, com pretensão totalizante. Comunica-se para poucos, trata da agenda de pouquíssimos, mas como se para todos, de todos — o que é uma das formas de exclusão que caracterizam os populistas autoritários.
  
Os frequentes impulsos extremistas de Bolsonaro autorizam vídeos como o do ex-secretário de Cultura. É impossível não ver, na versão de Alvim, um desenvolvimento da estética das lives do presidente.

Roberto Alvim era descartável. Se louco, um — mais um — escolhido e empossado por Bolsonaro. Outros como ele virão. São agentes antiliberais a serviço de uma concepção de Estado que, sem a vigilância da democracia, terá a sua musculatura aplicada contra os cidadãos — contra aqueles que, sem serem o mal, não veem nobreza em “mitos fundantes” como pátria, família e Deus.

A própria ideia de cultura — um campo de guerra e, pois, de imposição —veiculada pelo bolsonarismo mostra que aquela secretaria não importa senão como estrutura, máquina, para a destruição; inclusive de quem a comanda. O próximo Alvim — ainda que Regina — virá para morrer.

O próximo Wajngarten também virá para morrer.

O presidente sabia da atividade — típico ato de improbidade administrativa — do chefe da Secom. Não se incomodou com a irregularidade. A razão é dupla: nunca se importou com o auxiliar; o auxiliar está ali como escada, gatilho, como criador mesmos de arestas, para seus ataques à imprensa.

De resto: ninguém melhor do que ele, Bolsonaro, sabe se desvincular da responsabilidade por aqueles a quem delega. Fábio Wajngarten tinha uma missão a cumprir no governo — e a cumpriu. Enquanto o presidente avaliar que pode mantê-lo como o zumbi que já é, zumbi será, exposto e progressivamente enfraquecido, ainda assim carne para substanciar suas afrontas ao jornalismo. Se e quando a situação se tornar insustentável, já de todo afastado do elemento, de todo murchado o elemento, colocará outro no lugar do descartável.

Não faltam Waingartens à disposição do presidente. O problema é a ideia: que fica.


Artigo de Opinião - Educação: as desculpas vão perder força




















Culpar governos passados, ou o bode expiatório da vez, uma hora perde a força. Em 2021, alunos brasileiros com 15 anos de idade farão o Pisa, uma avaliação de aprendizagem realizada pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), e em 2022, conheceremos sua pontuação. Será difícil escapar da responsabilidade pelos resultados de uma avaliação independente. O governo atual tem de decidir logo (e já com atraso) se manterá o rumo atual — ideológico e ineficiente — ou se fará um compromisso efetivo com estados e municípios em prol da aprendizagem dos alunos, que são brasileiros, não federais, estaduais ou municipais.
O Ministério da Educação (MEC) segue errático em suas iniciativas, mostrando constância apenas na atribuição de culpa a governos anteriores, a Paulo Freire, aos professores, à balbúrdia etc. Infelizmente, problemas sociais não acabam quando findam os mandatos e, se negligenciados, crescem. Que tal unir esforços em vez de só apontar o dedo?
Há muito a ser feito. Estão em curso discussões importantes para fazer avançar a educação básica brasileira que exigem máxima atenção, pois definirão as oportunidades dadas a milhões de crianças e jovens. A despeito da apatia estratégica da gestão federal, alguns atores já entenderam isso.
O Congresso Nacional — em especial o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM) — já compreendeu que o ano traz oportunidades ímpares, como garantir maior eficiência e mais recursos para os alunos mais vulneráveis com a reformulação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação); assegurar uma trajetória escolar com menos percalços a partir da aprovação do verdadeiro Pacto Federativo da educação — o Sistema Nacional de Educação (SNE) — e, por fim, colocar de vez na agenda nacional o desenvolvimento infantil pleno com o início do Biênio da Primeira Infância (2020-2021).
É preciso aprofundar esses debates, tomando cuidado com os possíveis retrocessos. Um deles diz respeito ao Fundeb, discussão que o MEC pretende devolver à estaca zero. Não podemos deixar que seja ignorado o diálogo sobre o assunto construído nos últimos três anos, nem que haja prorrogação do prazo do Fundo sem mudanças. Menos ainda aceitar seu desaparecimento. Protelar a reformulação do Fundo é colocar a melhoria da educação em suspenso; e acabar com ele, promover o caos. Não instituir o SNE, por sua vez, é apostar na descoordenação entre os níveis de governo.
No campo do Executivo, os governadores vêm intensificando seu protagonismo em temas como alfabetização, carreira docente e ensino médio. Muitos estados, como Pernambuco, Espírito Santo, Amapá, Sergipe, estão implementando junto aos municípios políticas de alfabetização inspiradas no sucesso do Ceará.
O governo federal, por outro lado, prometeu um programa nacional de alfabetização como meta de 100 dias, mas divulgou apenas a Política Nacional de Alfabetização (PNA) —genérica e sem estratégia de implementação. Desde então, pouco tem dialogado com um espectro amplo de especialistas ou com os gestores municipais, principais responsáveis pela alfabetização. Será preciso articular a PNA aos programas já em funcionamento nos estados.
Ademais, em 2020, será crucial assegurar que as pautas relevantes da educação — e não sua defesa genérica — sejam prioritárias para os novos prefeitos a serem eleitos em outubro.
É tempo de decidirmos como o ano de 2020 será lembrado. Apenas como uma coincidência numérica que ocorre a cada século ou como o ano em que o Brasil decidiu priorizar efetivamente a educação básica? A história do ensino básico neste ano dependerá muito da ação do MEC. Se continuar como hoje, não terá parte dos sucessos, mas será responsabilizado por eventuais fracassos. É uma escolha.
Priscila Cruz é presidente-executiva, e João Marcelo Borges é diretor de estratégia política do Todos Pela Educação

Poesia - Vou - me embora pra Pasárgada - Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe - d’água.
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

Artigo de Opinião - Regina Duarte tem um nome a zelar

Espanta que atriz não sinta medo de entrar na máquina bolsonarista