quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Artigo de Opinião - Abaixo os rótulos - Eurípedes Alcântara

No tempo que os homens falavam (*) dizia-se que a regra para encantar uma mulher considerada feia seria elogiar sua beleza, já com uma mulher tida como bela, infalível seria elogiar sua inteligência. Mas esse tempo, felizmente, passou. Bonito, feio, inteligente e burro são conceitos voláteis com significados dependentes dos variados pontos de vista. Sobrevive, porém, a mania de tentar definir a condição humana com rótulos reducionistas. Ainda colocamos todo o peso do conhecimento interpessoal na ilusão de que somos psicólogos altamente treinados para ler as mentes uns dos outros. Isso explica o triunfo dos rótulos.

Neofascista, neonazista, liberal radical, comunista, socialista, machista, feminista… Basta um desses rótulos e dá-se por decifrado todo o intrincado e mutante dinamismo da vida. Tudo bem que na rispidez das trocas de socos a 280 caracteres por segundo no Twitter, um rótulo ajuda bastante acertar o nariz do oponente. Mas no cotidiano, no quase nada que sobrou de contato humano — o que, na piada da hora, explicaria a lenta propagação do coronavírus fora da China — os rótulos são perniciosos. Deveriam ser evitados em benefício da esquecida arte da conversação.

Como deixar de falar com alguém que sempre admiramos porque, como disse com a genialidade de sempre o economista Delfim Netto, votou em Bolsonaro “em legítima defesa”? Ou simplesmente bloquear uma pessoa como @beruta, que no Twitter se define como, “médica, cearense, esquerdista, progressista, feminazi”. Pois essa feminazi conta como atendeu no pronto-socorro, em um fim de semana, um paciente jovem, negro, baleado na cabeça, enquanto ouvia na sala da emergência comentários desumanos: “Se foi a polícia que trouxe é bandido”… “Você vai tentar salvar isso aí?” Não era bandido. Ele tinha ido à casa da avó buscar um documento de que precisaria na segunda-feira, seu primeiro dia de trabalho. Foi baleado por traficantes que o confundiram com integrante de facção rival. O paciente morreu. A resposta dela para os colegas foi: “Sou médica e cuido de pacientes. Se quisesse julgar as pessoas teria estudado Direito e feito concurso para juíza”. Uma pessoa assim não cabe dentro de um rótulo.

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“Nós pensamos que somos ótimos juízes do que os outros estão pensando. Não somos. De fato, somos péssimos nisso”, diz Scott Adams, criador do Dilbert, o famosopersonagem de tiras sempre confinado em um cubículo — no Brasil sai em edições de bolso da editora L&PM. Adams acaba de publicar um novo livro nos Estados Unidos com o título intraduzível “Loserthink”, expressão criada pela união das palavras loser (perdedor) e think (pensar) para definir o modo irracional de leitura de caráter desses tempos de politização turbinada.

Scott diz que 90% das críticas que recebe de pessoas estranhas embutem alguma forma de adivinhação do como ele deve estar pensando. “Uma rápida verificação do meu feed do Twitter mostra um estranho dizendo que sou defensor da mentira, outro tem certeza de que apoio neonazistas, um terceiro diz que só quero ‘vender livro’ e, mais adiante, um quarto assevera que apoio o Trump, seja qual for a fala ou atitude dele. Bem, nenhuma dessas afirmações é verdadeira. Elas são fruto de estranhos acreditando que podem enxergar além das minhas palavras reais para adivinhar meus pensamentos secretos.”

De uma maneira ainda mais direta, o professor Claudio de Moura Castro explicou há pouco tempo o mesmo fenômeno: “O analfabeto emocional é aquele que sabe ler, mas é presa das emoções para entender o texto. Em vez de usar a razão, faz leitura ‘criativa’, embalada pelo sentimento e pela paixão. Decifra o texto por via de uma reação pura e espontânea, ignorando os estreitamentos de significado imposto pelo sentido rigoroso das palavras escritas.” Concordo. Se sua opinião depende da ilusão de ser capaz de adivinhar os pensamentos e os sentimentos mais profundos de um estranho, são enormes as chances de estar errado.

(*) Essa ironia em torno da expressão “no tempo que os bichos falavam” deve me atrair diversos rótulos. Talvez tivesse sido mais seguro ter escrito “no tempo que os homens podiam falar bobagens à vontade”.

Fonte: “O Globo”, 8/2/2020

Artigo de Opinião - Deixe o ódio para quem tem


O GLOBO - 08/02/2020
ANDRÉA PACHÁ 


Para impedir que alunos tenham acesso a obras de “conteúdo inadequado”, como Machado de Assis e Euclides da Cunha, a Secretaria de Educação de Rondônia mandou recolher 43 livros das escolas. Descoberto o plano arbitrário, as autoridades classificaram a notícia como fake news, e apenas recuaram quando confrontadas com os documentos, cuja existência se pretendia esconder.
Esse é apenas um, dentre inúmeros exemplos dos pesadelos diários a que somos submetidos. Anúncios ilegais, ainda que seguidos de recuos estratégicos, provocações desnecessárias, xingamentos, desqualificações, confusão permanente entre público e privado, entre governo e Estado passaram a integrar o cardápio da nova política, dificultando o controle institucional, e deixando os cidadãos exaustos e indignados, sem saber como reagir diante de tanta grosseria, falta de informação, preconceito e disseminação do ódio como linguagem.

A polarização, que se imaginava superada após as eleições, é cada vez mais estimulada, levando a rompimentos familiares e afetivos, ao esgarçamento da credibilidade nas instituições, à desconfiança e ao medo. Vez ou outra nos surpreendemos, respondendo à intolerância com mais intolerância, reproduzindo a linguagem que abominamos e que, lamentavelmente, nos contamina e se impõe.

É possível acreditar que vivíamos contidos, e que nunca fomos verdadeiramente solidários, gentis ou dóceis. As comportas da violência escancaradas apenas revelaram nossa real e truculenta dimensão. Ou —o que parece mais razoável — é fundamental indagar como a disseminação do ódio, do medo e a utilização de algoritmos estão sendo manipulados politicamente, impactando as relações sociais e alterando profundamente a forma com que nos comunicamos, e nos organizamos na vida em grupo.

Exatamente por recusar a ideia de que somos todos fascistas, corruptos ou cruéis, de que não podemos confiar em ninguém, até mesmo nas pessoas com quem convivemos ao longo de toda a existência, e pela percepção da escalada da comunicação agressiva, que não se restringe mais ao ambiente virtual, é importante compreender como a política se apropriou dos dados das redes, para turbinar confrontos, ódio e legitimar lideranças extremadas e populistas, pelo controle direto dos desejos e comportamentos.

É o que demonstra Giuliano Da Empoli, ex-secretário de Cultura de Florença, no livro “Os engenheiros do caos”, publicado pela Editora Vestígio. A estratégia do populismo, segundo ele, é sustentar nas redes sociais quaisquer posições, por mais absurdas que pareçam, de modo a que sejam interceptadas as aspirações e principalmente os medos dos eleitores. Quanto mais grotesco, grosseiro, ridículo, maior o potencial de se cacifar nessa nova política, que ainda não compreendemos, mas cuja existência e avanço são irreversíveis.

O fenômeno mundial, que ameaça a democracia — tal como a concebemos até aqui — reproduzido também no Brasil, tem nos levado ao adoecimento. As ferramentas da linguagem racional, que aprendemos a utilizar ao longo do processo civilizatório, são insuficientes para enfrentar o mal-estar causado pelo ambiente virtual, e pelo uso deliberado da instabilidade provocada pelo medo. O ódio, como método, vulnerabiliza todos os direitos fundamentais e garantias sociais.

Roland Barthes, escritor francês, que seguramente integraria a lista dos “autores inadequados”, definiu a linguagem amorosa como uma pele. “Esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo”, dizia ele, numa ode à delicadeza. Embora pareça inglório lutar contra os deuses do ódio e fulminar seus métodos repulsivos, enquanto não compreendemos e não dominamos a nova linguagem do caos, é fundamental, para a sobrevivência da liberdade e da democracia, exercitar a serenidade, irrigando, com a linguagem amorosa de Barthes, espaços da educação, da ciência e da justiça. É o convite que faço a todos.