quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Artigo de Opinião - Deixe o ódio para quem tem


O GLOBO - 08/02/2020
ANDRÉA PACHÁ 


Para impedir que alunos tenham acesso a obras de “conteúdo inadequado”, como Machado de Assis e Euclides da Cunha, a Secretaria de Educação de Rondônia mandou recolher 43 livros das escolas. Descoberto o plano arbitrário, as autoridades classificaram a notícia como fake news, e apenas recuaram quando confrontadas com os documentos, cuja existência se pretendia esconder.
Esse é apenas um, dentre inúmeros exemplos dos pesadelos diários a que somos submetidos. Anúncios ilegais, ainda que seguidos de recuos estratégicos, provocações desnecessárias, xingamentos, desqualificações, confusão permanente entre público e privado, entre governo e Estado passaram a integrar o cardápio da nova política, dificultando o controle institucional, e deixando os cidadãos exaustos e indignados, sem saber como reagir diante de tanta grosseria, falta de informação, preconceito e disseminação do ódio como linguagem.

A polarização, que se imaginava superada após as eleições, é cada vez mais estimulada, levando a rompimentos familiares e afetivos, ao esgarçamento da credibilidade nas instituições, à desconfiança e ao medo. Vez ou outra nos surpreendemos, respondendo à intolerância com mais intolerância, reproduzindo a linguagem que abominamos e que, lamentavelmente, nos contamina e se impõe.

É possível acreditar que vivíamos contidos, e que nunca fomos verdadeiramente solidários, gentis ou dóceis. As comportas da violência escancaradas apenas revelaram nossa real e truculenta dimensão. Ou —o que parece mais razoável — é fundamental indagar como a disseminação do ódio, do medo e a utilização de algoritmos estão sendo manipulados politicamente, impactando as relações sociais e alterando profundamente a forma com que nos comunicamos, e nos organizamos na vida em grupo.

Exatamente por recusar a ideia de que somos todos fascistas, corruptos ou cruéis, de que não podemos confiar em ninguém, até mesmo nas pessoas com quem convivemos ao longo de toda a existência, e pela percepção da escalada da comunicação agressiva, que não se restringe mais ao ambiente virtual, é importante compreender como a política se apropriou dos dados das redes, para turbinar confrontos, ódio e legitimar lideranças extremadas e populistas, pelo controle direto dos desejos e comportamentos.

É o que demonstra Giuliano Da Empoli, ex-secretário de Cultura de Florença, no livro “Os engenheiros do caos”, publicado pela Editora Vestígio. A estratégia do populismo, segundo ele, é sustentar nas redes sociais quaisquer posições, por mais absurdas que pareçam, de modo a que sejam interceptadas as aspirações e principalmente os medos dos eleitores. Quanto mais grotesco, grosseiro, ridículo, maior o potencial de se cacifar nessa nova política, que ainda não compreendemos, mas cuja existência e avanço são irreversíveis.

O fenômeno mundial, que ameaça a democracia — tal como a concebemos até aqui — reproduzido também no Brasil, tem nos levado ao adoecimento. As ferramentas da linguagem racional, que aprendemos a utilizar ao longo do processo civilizatório, são insuficientes para enfrentar o mal-estar causado pelo ambiente virtual, e pelo uso deliberado da instabilidade provocada pelo medo. O ódio, como método, vulnerabiliza todos os direitos fundamentais e garantias sociais.

Roland Barthes, escritor francês, que seguramente integraria a lista dos “autores inadequados”, definiu a linguagem amorosa como uma pele. “Esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo”, dizia ele, numa ode à delicadeza. Embora pareça inglório lutar contra os deuses do ódio e fulminar seus métodos repulsivos, enquanto não compreendemos e não dominamos a nova linguagem do caos, é fundamental, para a sobrevivência da liberdade e da democracia, exercitar a serenidade, irrigando, com a linguagem amorosa de Barthes, espaços da educação, da ciência e da justiça. É o convite que faço a todos.



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