quinta-feira, 9 de julho de 2020

Crônicas do Dia - O Alzheimer do meu pai - Mentor Neto

Não bebo. Não uso drogas, nem álcool, porque não gosto de sentir meu cérebro fora de controle.

A droga mais forte que usei foi com prescrição médica.

Uma dessas que se usa em baladas, não só em clínicas.
Tem um efeito lisérgico, que faz a gente entender os hippies que pregavam uma nova percepção da realidade, como explicava Timothy Leary.
Ou o Santo Daime.
Na hora que bate, você realmente compreende como a nossa compreensão do mundo é limitada pelo funcionamento normal da mente.
Imagine quantas cores existem e nossos olhos não conseguem ver.
Ou quantos timbres e subfrequências que nossos ouvidos simplesmente não são preparados para ouvir.
Drogas permitem uma pequena janela para enxergar outra realidade possível.
O Brasil de hoje é uma droga. Não o adjetivo. O substantivo.
Mas também nos dá uma nova percepção da realidade.
A cada dia que passa, temos novas sensações e vemos coisas que nunca vimos antes.
Como foi o caso do sábado passado, onde um grupo de neo-idiotas se reuniu com tochas diante do STF, entoando bobagens de ordem.
Ou no domingo, quando o presidente desfilou a cavalo entre seus seguidores.
Coisas que nunca veríamos num estado normal.
Nem num Estado normal.
Me fez lembrar meu pai.
Meu pai tem Alzheimer há muito tempo.
Ficou muitos anos com minha mãe, mas agora está numa clínica, porque precisa de atenção constante.
Sua saúde física é perfeita. Ele tem, afinal, um histórico de atleta.
Até os 75 anos nadava dois quilômetros todos os dias.
Mas sua percepção de realidade, infelizmente, está muito debilitada.
Apesar de há muito tempo não falar coisa com coisa, suspeito que compreenda o mundo a sua volta, apenas com outros limites, que a gente não consegue acessar.
Devido ao isolamento imposto pelo coronavírus, não pode receber visitas.
Então a clínica tornou disponível um celular, onde os familiares podem fazer chamadas de vídeo.
Outro dia liguei para o Totô, que é como toda família sempre o chamou.
Estava sentado num sofá e tinha acabado de jantar, apesar de serem 5h30 da tarde.
– Oi Totô! Tudo bem?
Ele demorou um pouco para entender o que eu estava fazendo dentro de um celular.
– Ah… oi… tudo sim… mas tem o coiso lá.
– Qual coiso, pai?
– O depósito está cheio. Começou seu monólogo.
– Qual depósito?
– Não pode.
– Ah! que bom. E o que você almoçou hoje?
– Hoje?
– É.
– Contei luzes.
– Que legal. Quantas luzes você contou?
– Umas dez. Por causa do gírus.
– Vírus?
– Isso.
– Você sabe que tem um vírus solto por aí, não é?
– Gírus. Tô cansado de gírus.
– Então descansa, pai. Que horas você vai dormir?
– Sete mil.
– Então tá. Durma bem!
– Você também, filho.
Esse “filho” final, me reconhecendo, foi a dica de que — quero acreditar — meu pai ainda tem alguma percepção da realidade.
Vive num mundo que para nós parece incompreensível.
Só que nesse seu mundo não existe Bolsonaro, Carluxo, Weintraub, Damares ou Sara Winter.
Alzheimer talvez seja só isso. Uma percepção lisérgica da realidade. Quem sabe, até, seja uma evolução e não uma doença.
Um mundo onde contar luzes e dormir às sete mil sejam coisas plausíveis.
E considerando a atual conjuntura do país, talvez os drogados somos nós.
Revista IstoÉ - 10 de junho de 2020 

Você sabia disso? - O mundo sufocado


Os EUA ardem. Os EUA ardem em protestos populares como sempre arderam, ciclicamente, quando um policial branco mata um cidadão negro – as chamas vão e voltam em um país no qual a democracia racial mostrou-se ao longo dos séculos não ser mais que mera mentira. Mas há agora um novo fenômeno social, uma nova e excelente notícia, a julgar pelos acontecimentos dos últimos dias: a vocação escravocrata do establishment americano talvez comece a ser varrida pela pressão das manifestações de rua – talvez, porque certeza não dá para se ter. Os EUA ardem, dessa vez, como não ardiam havia setenta anos.


“Ontem simples, fortes, bravos. Hoje míseros escravos, Sem luz, sem ar, sem razão” Castro Alves, em Navio Negreiro

Na semana passada, pelo menos quatrocentas e trinta cidades viveram mergulhadas em violência, depredações, saques, prisões, morte de manifestantes, coquetéis molotov e… fogo… fogo… fogo. Em resposta ao presidente Donald Trump, em seu primeiro movimento repressivo ao ameaçar por o Exército nas ruas, centenas de pessoas em Washington cercaram por três vezes a Casa Branca – a sede do governo precisou apagar as luzes por medida de segurança. É essa a ocasião inédita em que protestos pela morte de um negro anônimo romperam as fronteiras geográficas e ideológicas dos EUA e incendiaram inúmeros outros países. São milhões de pessoas mobilizadas. Antes disso, apenas o assassinato em 1968 de Martin Luther King, líder na luta pelos direitos civis, repercutira internacionalmente com tanta intensidade – mas ele já era, então, reconhecido mundialmente. Intelectuais, artistas, nomes famosos do esporte mobilizaram-se nas últimas horas em quase todo o planeta, incluindo o Brasil. Pois bem, faz-se hora de ir-se à cena que originou tudo isso, à cena que originou o que pode ser chamado de uma guerra civil. À cena que faz o mundo gritar: basta de segregação!

O joelho do policial branco, com a mão no bolso, esmaga o pescoço do desempregado negro que murmura: “não consigo respirar”. Foram nove minutos de tortura até a morte, na cidade americana de Minneapolis, na última segunda-feira de maio. Foram nove minutos de agonia, foram nove minutos de vermelho sangue escorrendo do nariz, foram nove minutos de branca lágrima escorrendo dos olhos pretos. Foram nove minutos… não, não foram nove minutos! São quatro séculos, isso sim, quatro séculos de racismo estrutural na cultura branca do país, principalmente em sua porção ao sul: simbolicamente, a vítima negra de agora, George Floyd, já estava com falta de ar no primeiro navio de escravizados que aportou em 1619 no país, em Jamestown. Ainda no terreno simbólico de uma estruturação e estratificação social sedimentada na cor da pele, a falta de ar de Floyd, que perdeu o emprego devido à pandemia de coronavírus e perdeu a vida porque supostamente tentou passar uma nota falsa de US$ 20 para comprar comida, já se fazia sentir no século XIX na Guerra da Secessão nos EUA: lutaram o norte contra o sul entre 1861 e 1865. É sobretudo nessa guerra que está a explicação para os traços culturais e a violência do preconceito. Nos EUA não há uma “questão racial”. Há “racismo estrutural”.

Há uma diferença, nos universos teórico e prático, entre a “questão racial” e o “racismo” – deixando-se claro, muito claro, que a existência desse e de qualquer outro preconceito, seja qual for a forma que se revele, tem de ser considerada crime contra a personalidade da vítima e contra a sua etnia. Para entender-se, no entanto, o fenômeno americano, vale, por exemplo, cotejar o preconceito que absurdamente existe lá, escancarado, com aquele não menos absurdo que sobrevive no Brasil, camuflado, como alguém que olha uma fresta étnica e diz: “eu sou diferente dele”. No Brasil, corre o pensamento que a abolição da escravatura se deu de forma consensual em decorrência da permissividade das mulheres escravizadas com os seus senhores brancos. Isso é a sexualização do chicote do feitor e do sangue escorrido nas costas do escravo, teoria que alimenta somente a extrema-direita e os sadomasoquistas que a integrarem. Verdade é, sim, que a abolição aconteceu por meio de um arranjo entre as elites, mais preocupadas em libertar os escravizados para fortalecer o ideário republicano do que com a pessoa do negro em si, atirado que foi à própria sorte para receber depois a pecha de “malandro” ou “marginal”. A escravatura no País foi brutal, embora houvesse nos grandes latifúndios uma relativa informalidade entre a casa grande e a senzala, geradora da nossa “cordialidade” (no sentido de passionalidade), conforme escreveu e revolucionou a historiografia Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”.

A questão não foi pacificada, ainda hoje sabemos que o negro é discriminado em nossas paisagens, a começar pelo seu banimento do núcleo dos grandes centros urbanos, empurrado para as periferias das cidades – caso do Rio de Janeiro, no início do século XIX, quando o alcaide era Pereira Passos. Mas bem diferente é a situação dos EUA, aonde a nação se dividiu numa guerra que começou por motivos econômicos – o norte industrializado contra o sul agrário – e foi dar na famosa “Emancipation Proclamation”, promulgada pelo presidente Abraham Lincoln, a 1 de janeiro de 1863. Esse mesmo Lincoln, democrata de alma e fundador do conservador Partido Republicano, é autor de um registro: “se eu pudesse salvar a união de meu país sem libertar um único escravo, eu o faria”. Lincoln temia que a hemorragia da guerra jamais cicatrizasse, e isso é o que se vê. Os nortistas derrotaram os confederados sulistas escravocratas, mas é como se tal guerra civil, no plano do legado de ódio, perdurasse: até hoje há uma estrutura cultural no norte e outra no sul. Para se ter uma ideia, a guerra terminou em 1865 e somente em 2017 a bandeira confederada foi retirada do Capitólio da Carolina do Sul. Também para se ter uma ideia, na semana passada um cidadão negro de origem sudanesa foi detido e algemado. Quando policiais brancos olharam seus documentos, descobriram que ele é do FBI. É elucidativa e didática a fala de Paul Chevigny, professor aposentado da Universidade New York: “quando abusos policiais produzem revoltas nos EUA é porque a ação da polícia é a gota d’água de um antigo e extenso padrão de discriminação”.

“O reencontro permanente dos americanos com a contradição de sua gênese remonta à criação de uma república de homens livres e iguais por sobre a escravidão dos negros, os menos iguais”, diz o professor e pensador José Vicente, fundador e reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo. “Trata-se do ideário de um destino de liberdade e igualdade que só valia aos brancos”. Para Suzane Jardim, historiadora da Universidade de São Paulo, “a unificação dos EUA após a guerra forçou os vitoriosos a esconderem o que de fato continuava a ocorrer na sociedade. Falava-se em integração, mas o sul insistia na segregação racial e nos linchamentos, tudo com o aval do Estado”. A linha de raciocínio do professor Vicente e da historiadora Suzane explica a razão porque, da noite para o dia, quando as águas da superfície do mar racial estão calmas, um negro é perversamente morto e as águas mais profundas de tal mar, sempre turbulentas, explodem num tsunami de revoltas e protestos. Foi assim, por exemplo, em Birmingham, no Alabama, em 1963. É o passado invadindo o presente. Querem ver? Também lá um policial branco asfixiou com o joelho uma mulher negra. Suas últimas palavras: “não consigo respirar”. A rigor, ninguém que democraticamente conceba pessoas como pessoas e não como coloração de peles consegue agora respirar. E isso é claramente demonstrado no caso de George Floyd, quando considerável parte da população americana e de diversos países tomam as ruas, cerram os punhos e enfrentam escudos policiais. E observa-se também, pela primeira vez, o contrário: policias ajoelham-se diante das passeatas como quem perde perdão.
Donald Trump e suas iradas falas, tachando os manifestantes de “delinquentes”, acirraram ainda mais os ânimos dentro e além do país. As suas ameaças de recorrer às Forças Armadas não intimidaram os americanos descontentes. Trump imagina que basta decretar toque de recolher e o seu país para, o continente para, o planeta para. Ninguém parou. Cada vez mais cidades e cada vez mais gente foram se revoltando. Tornou-se incônica a imagem de uma das pontes de Portland, na terça-feira 2. Em uma manifestação majoritariamente composta por brancos, as pessoas deitaram-se ao chão. A ponte tem quatrocentos e vinte e um metros de extensão. Em Portland o presidente tem o seu menor índice eleitoral (17%). Trump, o branquíssimo Trump idolatrado no sul (lembram-se da guerra civil citada acima?) esqueceu-se da histórica lição de Luther King: “na questão racial, muitas vezes o tumulto é a voz do negro que não era ouvido”. Agora, só não a escuta quem for ideologicamente surdo, porque nunca Nova York e Washington tinham sido sacudidas por tantas manifestações contra o racismo.

“Os EUA se reencontram sempre com a contradição de sua gênese: uma república de livres e iguais e, sob ela, a escravidão dos menos iguais, os negros” José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares

Milhões de pessoas inundaram as avenidas. E o senhor da Casa Branca seguiu escondido em um escudo de brinquedo chamado toque de recolher. Mas tudo tem seu preço, e Trump já mal consegue respirar: na mais recente pesquisa de intenção de votos para as eleições presidenciais de novembro (feita pelo jornal “The Washington Post” e pela emissora ABC News), Trump perde para o ex-vice-presidente Joe Biden por 43% contra 53%, respectivamente. Há dois meses, Biden estava somente dois pontos percentuais à frente. E Trump ainda segue falando que representa a “maioria silenciosa”, diz que age “pela lei e pela ordem” enquanto milhões de americanos berram contra ele. Trump está anacrônico. As suas plavras são idênticas as do establisment do revolucionário ano de 1968, quando mataram o líder negro Luther King. O ar diminuiu ainda mais para o presidente com a posição do secretário de Defesa, Mark Esper, contrário à convocação do Exército para reprimir a população. Lembremos, porém, que republicanos tendem a comparecer mais as urnas do que os democratas quando os EUA vivenciam convulsões sociais. Foi assim que o conservador Richard Nixon elegeu-se em 1968.

“Quando abusos policiais causam revoltas nos EUA é porque a ação da polícia é a gota d’água de um antigo e extenso padrão de discriminação” Paul Chevigny, professor aposentado da Universidade Nova York

Fora dos EUA, a morte de Floyd ecoou em Sydney, Paris, Amsterdã, Londres, Berlim, Barcelona, São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro, para citar algumas cidades. Na quinta-feira 4 somavam-se dez dias de protestos com emblemáticos destaques. A ideia de que as funções das redes sociais fossem interrompidas por vinte e quatro horas ganhou o apoio de artistas como Susan Sarandon, Rihana e Elton John. No Rio de Janeiro houve mobilização das favelas diante do Palácio Guanabara. Elas gritaram o slogan americano “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”), denunciaram a violência policial e, claro, a sofreram durante o próprio ato. A revolta teve como principal motivo a morte do garoto João Pedro, 14 anos. A polícia metralhou a casa em que ele estava, porque perseguia traficantes: ao todo, setenta tiros foram dados. “Era para o Brasil estar pegando fogo”, diz o rapper paulista Emicida. No campo esportivo, e já em outro continente, o hexacampeão mundial de F-1, Lewis Hamilton, colocou o dedo em uma ferida: “eu vejo aqueles que estão calados (…); a F-1 é um esporte dominado por brancos”. De volta ao esporte e de volta ao Brasil, o caso de Minneapolis (cidade em que uma família negra ganha US$ 36 mil por ano contra US$ 93 mil recebidos por uma família branca) uniu clubes de futebol de diversos estados. Publicaram um documento que poderia ser enviado para a cela em que o policial assassino de joelho loiro, Derek Chauvin, está preso nos EUA. E poderia também desembarcar na mesa de Trump. Diz um trecho: “nascemos das diferenças e elas nos fazem mais fortes”. É isso: o respeito às diferenças nos deixa respirar.

Revista Isto é - 10 de junho de 2020