segunda-feira, 22 de junho de 2020

Você sabia disso? - A negligência da madame

A morte do menino Miguel Otávio da Silva, de 5 anos, que caiu do nono andar de um edifício de alto luxo em Recife (PE), exibe alguma das piores mazelas da sociedade brasileira e envolve vícios locais como o racismo, o trabalho servil, a falta de empatia e a irresponsabilidade das elites. O caso mostra que ainda se vive por aqui num clima de casa grande e senzala onde os brancos e ricos podem tudo e sempre têm um tratamento privilegiado. Miguel era uma criança feliz, inteligente e ativa, que estava se alfabetizando e sonhava em ser jogador de futebol. Caiu de uma altura de 35 metros, enquanto estava sob os cuidados de Sarí Corte Real, patroa de sua mãe, a empregada doméstica Mirtes Renata de Souza. Sarí estava fazendo as unhas com uma manicure no momento do incidente. Mandou Mirtes passear com seu cachorro na rua e ficou com o menino sob sua responsabilidade. Deveria estar atenta aos seus movimentos, mas, como se viu por imagens de câmeras de segurança do prédio, o incentivou a entrar no elevador sozinho. Isso deflagrou sua morte.

O caso causou comoção em todo o Brasil e tem motivado protestos frequentes em Recife, principalmente em frente ao edifício Píer Maurício de Nassau, no Cais de Santa Rita, onde aconteceu a tragédia. O que mais aumenta a revolta dos movimentos sociais, entre eles o recém-criado Justiça para Miguel, foi a tipificação do crime feita pelo delegado responsável pelo inquérito, Ramon Teixeira, titular da delegacia seccional de Santo Amaro. Teixeira, com base em investigações preliminares e de uma maneira benevolente e precoce, classificou a morte de Miguel como um homicídio culposo, quando não há intenção de matar. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PE) cobra um inquérito rigoroso e considera a possibilidade de Sarí ter agido movida pelo chamado dolo eventual, quando há egoísmo, já que era conhecedora e aceitou os riscos do que fez. A lei não permite que menores de 10 anos usem elevadores sem acompanhante. Mas Sarí, que é primeira-dama do município de Tamandaré, onde seu marido Sérgio Hacker é prefeito, foi autuada e liberada após pagar fiança de R$ 20 mil. Escapou da audiência de custódia e da prisão em flagrante, apesar das imagens da câmera de segurança mostrarem a primeira-dama abandonando Miguel à sua própria sorte.

“Esse crime revela aquilo que a gente vem combatendo há décadas, que é a questão do racismo. Para começar, a trabalhadora deveria estar na própria casa, de quarentena. Trabalhadores domésticos não cumprem uma função essencial”, diz Luiza Pereira, presidente da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) e diretora do Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Pernambuco. “Mas essa sociedade está acostumada à servidão. É uma sociedade branca, escravocrata e com privilégios para poucos”. Segundo Luiza, Sarí é uma mulher protegida, a família Corte Real se destaca no mundo empresarial e na política e houve uma clara benevolência por parte do delegado ao tipificar o crime. “A mão da Justiça com uma pessoa branca e rica é sempre leve. Mas para quem é negro e mora na periferia, ela é muito pesada”, afirma Luiza. Segundo ela, a situação das empregadas domésticas em Recife é bastante precária. Apesar dos direitos assegurados à categoria, a informalidade no estado chega a 75%. A maioria das empregadas tem trabalhado normalmente durante a quarentena.

A OAB, em defesa da legalidade e dos direitos humanos, decidiu acompanhar o caso como membro da sociedade civil, e já abriu diálogo com outras organizações, como a Rede de Mulheres Negras. O que a entidade busca é que se possam produzir todas as provas e que o inquérito se desenvolva da melhor forma. “Estamos acompanhando o caso e queremos que se produzam todas as provas”, afirma o presidente da Comissão de Direitos Humanos da entidade, Cláudio Ferreira. “Há um dissenso entre a comunidade jurídica do estado quanto ao animus da pessoa que levou a criança ao elevador e apertou o botão do 9º andar”, diz. Para Ferreira, a manicure, única testemunha, tem que ser ouvida. O inquérito também precisa colher informações da relação da patroa com a criança. O delegado Ramon Teixeira tem um histórico de decisões controversas. Em 2018, levou à prisão dois homens negros, Wilson da Silva e Bruno de Andrade, acusados do assalto a uma imobiliária. Para prendê-los, Teixeira usou imagens de câmeras de segurança, mas não fez prova de reconhecimento facial. Wilson acabou preso por um ano e meio e Bruno, por nove meses, até que se descobriu que eram inocentes. “O inquérito foi cheio de falhas”, afirma Ferreira.

Pela imprensa, na sexta-feira 5, três dias após a morte do garoto, Sari divulgou uma carta em que pediu desculpas pelo que fez a Mirtes. A mãe de Miguel diz que o pedido nunca foi feito diretamente a ela e, também por meio de carta, disse que não pode perdoar a ex-patroa antes da “aplicação de uma pena” porque perdoar seria como “matar Miguel novamente”. “Sabemos que ela (Sarí) não trataria assim o filho de uma amiga. Ela agiu assim como o meu filho, como se ele tivesse menos valor, como se ele pudesse sofrer qualquer tipo de violência por ser ‘filho da empregada’”, disse Mirtes. “Eu não recebi qualquer pedido de desculpas. A carta de perdão foi dirigida à imprensa, o que me fez pensar que eu não era destinatária, mas sim a opinião pública com a qual ela se preocupa por mera vaidade e por ser um ano de eleição”, completou.

A questão eleitoral é importante porque a família Hacker compõe uma dinastia de políticos e domina as cidades do litoral sul pernambucano. Além de Sérgio, prefeito de Tamandaré, seu primo Franz Hacker é prefeito de Sirinhaém e sua mãe, Isabel Hacker, é prefeita de Rio Formoso. Todos pertencem ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), mesmo partido do governador do estado, Paulo Câmara. Sérgio integra a terceira geração da oligarquia iniciada com seu avô, José Hildo Hacker. Por parte de pai, é sobrinho de Jorge Corte Real, dono da construtora AB Corte Real e ex-deputado federal pelo PTB. Descobriu-se que Mirtes, assim como a mãe, Marta, que também prestava serviços à Sarí, eram registradas como funcionárias da Prefeitura de Tamandaré.

Entre os observadores da OAB designados para acompanhar o caso está a advogada Maria José Amaral, que vê no inquérito um claro esforço para proteger Sarí. Ela percebe isso, por exemplo, na decisão da polícia de não identificar o nome da primeira dama de Tamandaré depois da morte de Miguel. “O meu espanto logo depois da morte foi ouvir a polícia falar, em vez do nome de Sarí, a proprietária da unidade ou a moradora do 5º andar”, diz Maria José. “Só três dias depois, a TV mostrou a imagem da mulher dizendo que era a esposa do prefeito”. Segundo a Policia Civil, o nome de Sarí não foi revelado por causa da lei 13.869 ou lei do Abuso de Autoridade, que impede a divulgação de nomes de suspeitos de crimes em investigação. O argumento procede, mas se em vez de uma mulher branca e rica, o suspeito fosse um homem negro e pobre, o procedimento seria bem diferente.



O caso do menino Miguel mostra um abismo entre as classes sociais em Pernambuco e expõe uma sociedade oligárquica e racista. Também relativiza um dos livros mais importantes da sociologia brasileira, “Casa Grande e Senzala”, do pernambucano Gilberto Freyre. Conhecida pela leveza na análise da escravidão, a obra suavizou a violência na sociedade brasileira e romantizou a relação entre brancos e negros. Minimizou a crueldade e o desleixo que costumam acometer essa relação e que, em atos como o de Sarí Corte Real, se expressam com perfeição.

Revista IstoÉ - 17 de junho de 2020 


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