sábado, 26 de março de 2016

Crônicas do Dia - Depois do Temporal - Flávia Oliveira

Depois do temporal

Tomara que a fileira de moderados entre os dois grupos ganhe corpo


Seja qual for o desfecho da crise — afastamento ou permanência de Dilma Rousseff no Palácio do Planalto —, os brasileiros não sairemos inteiros dela. Pelo caminho, ficarão amizades, sonhos, crenças. E também algum projeto de país. Uma queda de braço arrastada e brutal opõe compatriotas extremados. Há os que desejam ver pelas costas o governo petista; há quem ainda o deseje. Tomara a fileira de moderados entre os dois grupos ganhe corpo, para que o cérebro, não o fígado, conduza o debate depois do temporal.

A mitologia iorubá guarda a história de Ajagunã, outro nome de Oxaguiã, também conhecido como Oxalá jovem. Ao orixá coube o domínio do progresso. Para cumprir a missão, ele semeava a discórdia entre os homens. Certo dia, Olodumaré, o Deus maior, o inquiriu sobre a persistência na cizânia. Ajagunã argumentou que era do conflito que nascia a transformação. Sem tensão, uma comunidade não evolui. É a disputa a alavanca da superação; é a discórdia a mãe do progresso. Assim foi.

A referência à narrativa mítica africana serve de alento ao momento de intensa, aguda, exacerbada discórdia na jovem democracia brasileira. Faz quase dois anos, o país está mergulhado na agenda do não. Começou na corrida presidencial de 2014. Parte robusta do eleitorado decidiu o voto mais pelo defeito inaceitável do adversário do que pela qualidade inequívoca do candidato escolhido.

A crise entra agora na fase mais aguda, com o país entrincheirado no Fla-Flu que contrapõe fãs e críticos da atuação na Operação Lava-Jato do juiz Sérgio Moro, transformado em cruzado anticorrupção. O enfrentamento policial-jurídico-político eclipsou agendas essenciais do país, como se todos os problemas fossem se dissolver assim que o impasse sobre a Presidência da República chegar ao fim. Conflito tem de sobra, já progresso...

Com ou sem Dilma, o Brasil terá novo governo em não muito tempo. De olho no Planalto, o vice Michel Temer (PMDB) já estaria, com um grupo de conselheiros, arregimentando possíveis ministros e se ocupando da agenda econômica. A prioridade, tudo indica, será a recuperação da atividade, nocauteada pelo desajuste fiscal, pelo desemprego galopante, por dois anos seguidos de recessão e inflação além do limite superior da meta. Também a atual presidente — bem como o titular da Fazenda, Nelson Barbosa — tem falado repetidas vezes em medidas de estímulo ao crescimento, controle dos gastos públicos e reforma da Previdência.

Além da política e da economia, o Brasil tem um punhado de mazelas intocadas a superar. Foram elas que, junto com os escândalos de corrupção, ajudaram a empurrar o atual governo para a impopularidade recorde, explicitada inclusive por eleitores da presidente e cidadãos contrários ao impeachment. Como os donos do poder não tocam no assunto, será preciso que a sociedade civil tome as rédeas do debate social, sob pena de perder, além da esperança, o bonde da transformação.

Ainda nesta semana, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) informaram no Atlas da Violência 2016 que 59.627 pessoas foram assassinadas no país em 2014, 10% do total mundial. O Brasil está no ranking das 12 maiores taxas de homicídio do planeta (29,1 óbitos por cem mil habitantes). Saiu do patamar de 48 mil-50 mil mortes por ano, no período 2004-2007, para 50 mil-53 mil, em 2008-2011. Agora, avança para a marca indesejável dos 60 mil. As vítimas são, sobretudo, jovens negros, mas a morte de mulheres também cresceu. Um pacto nacional contra essa escalada é necessário e urgente.

Há promessas não cumpridas de demarcação de terras indígenas, de titularidade de territórios quilombolas, de redução do déficit habitacional urbano, de incentivo a fontes renováveis de energia, de gestão eficiente dos recursos hídricos, de proteção e respeito ao meio ambiente. Há uma crise sem tamanho na saúde, com epidemia de doenças causadas pelo mosquito Aedes aegypti e uma geração de recém-nascidos com microcefalia. Há metade do país sem saneamento básico e demanda urgente por investimentos em infraestrutura. A união das duas agendas poderia aliviar o cenário nefasto de desocupação na construção civil.

Há que se tirar do papel os compromissos de combate à intolerância religiosa, ao racismo e aos crimes de ódio contra LGBTs. É preciso garantir os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e enterrar projetos de leis que os restringem. É fundamental assegurar que a crise econômica não interrompa o ciclo escolar de crianças, adolescentes e jovens adultos; a ameaça é real. A Operação Lava-Jato é, sem dúvida, oportunidade para o Brasil confrontar e dar fim à corrupção endêmica, dobrar a aposta na democracia. É agenda fundamental, inadiável. Mas não é única.



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