sexta-feira, 13 de abril de 2018

Artigo de Opinião - Livros Livres

Na semana passada, os alunos da Universidade de Brasília (UNB) inscritos na disciplina “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil” começaram as aulas cercados de cuidados especiais. Providenciou-se uma sala afastada dos pontos de maior movimento do campus, ouvintes foram barrados e foi pedido que não se usasse gravador. Numa atitude no mínimo extravagante no que diz respeito ao princípio de autonomia universitária, o ministro da Educação, Mendonça Filho, chegou a pedir ao Ministério Público que apurasse se o professor Luís Felipe Miguel teria cometido “improbidade administrativa” ao levar para a sala, numa matéria não obrigatória de ciências sociais, a suposta “promoção de uma tese de um partido político”.


O ínclito Mendoncinha faz valer assim o vaticínio de Millôr Fernandes de que o Brasil tem um enorme passado pela frente. A marcha a ré, que o movimento Escola sem Partido também vem tentando engrenar, nos conduz a um caminho dos mais trilhados: o do bloqueio à livre circulação de ideias. Um movimento universal descrito em teoria e prática, aqui e alhures, em A batalha dos livros (Ateliê Editorial), de Lincoln Secco, e Aqueles que queimam livros (Ed. Âyiné), de George Steiner. O jovem historiador da esquerda brasileira e o exuberante intelectual nascido na França, conservador da melhor tradição humanista, unem-se na rejeição à intolerância manifestada pela sistemática perseguição ao que se publica e, também, a quem escreve e lê.

A acidentada trajetória das ideias socialistas no Brasil é mapeada por Lincoln Secco desde a primeira tradução para o português do Manifesto comunista, em 1873, até as discussões plurais dos dias que correm, pouco definidos entre uma esquerda plural, fragmentada e não raramente apartidária. Entre um marco e outro, o entrecho complexo das variadas estratégias editoriais do Partido Comunista, pontuadas pelos embates com sucessivos governos mais ou menos autoritários — e, também, pelas disputas e pelos rachas internos.

Mais interessante é acompanhar como as ideias são discutidas fora do circuito formal de doutrinação e de que modo leitores comuns são fisgados aleatoriamente por elas. Consta que o jovem Mário Pedrosa, por exemplo, foi “convertido” pela leitura de Romain Rolland nos anos 1920, mesma década em que a polícia carioca queimava livros de Bukharin e que as autoridades de Porto Alegre destruíam boa parte da primeira edição do Manifesto. Mesmo entre as lideranças comunistas, não havia consenso: Davino Francisco dos Santos, líder do partido que se tornaria colaborador da repressão na década de 1940, chegou a censurar um dos jovens militantes por sua “febre de leitura”.

Esses episódios falam da irredutível instância de liberdade representada pelo livro. Uma página, lembra George Steiner, pode “exaltar ou aviltar; seduzir ou enojar; estimular à virtude e à barbárie; acentuar a sensibilidade ou banalizá-la”. Vai nisso algo de mistério, mas nada da xaropada que implica o discurso sobre uma “magia da leitura”. Há, isso sim, a qualidade radicalmente terrena e humana da inteligência em ação, que, conforme lembra o autor de Linguagem e silêncio, pode ser provocada até mesmo por uma leitura episódica ou banal, já que “o cânone do essencial varia de um indivíduo para outro, de uma cultura para outra”.

A censura aberta ou o cerceamento do que se lê e publica são, portanto, inócuos por definição, como demonstra o fio que une as três breves conferências de Aqueles que queimam livros:

um livro “não é jamais impaciente” e sempre pode ressuscitar quando diante do leitor certo, na hora certa — momento emocionante que qualquer um já experimentou e que Steiner compara ao encontro amoroso transformador.

Não é por outro motivo, aliás, que o líder chinês Xi Jinping acaba de colocar no índex Admirável mundo novo, que Aldous Huxley lançou em 1932, e A revolução dos bichos e 1984, de George Orwell, publicados respectivamente em 1945 e 1949. Tantas décadas depois, correspondem ao sentido que George Steiner dá à ideia de subversão: “É o que diz não à barbárie, à estupidez, à banalização dos nossos trabalhos e dos nossos dias pela ética consumista do capitalismo tardio”.

Paulo Roberto Pires

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