BRASÍLIA - Desde que a lista suja do trabalho escravo deixou de ser publicada pelo governo, que vem empenhando esforços na Justiça para postergar sua divulgação, o número de trabalhadores resgatados caiu 61%. Em 2014, último ano em que o cadastro de empregadores flagrados foi divulgado, houve 175 operações que retiraram 1.752 pessoas da condição análoga à escravidão, contra 672 vítimas alcançadas nas 110 fiscalizações realizadas em 2016, cujos dados ainda não foram publicados pelo Ministério do Trabalho como é praxe.
Embora o número de trabalhadores resgatados venha oscilando com tendência de diminuição nos últimos dez anos, os dados de 2015 (143 operações com 817 pessoas resgatadas) e principalmente os de 2016 trazem uma queda significativa. O Ministério do Trabalho atribui o resultado do ano passado a uma longa greve de auditores fiscais do Trabalho e a impasses burocráticos provocados pela junção e depois separação da pasta com a Previdência Social, “provocando a falta de repasse de recursos”.
Para setores específicos do próprio governo ligados aos direitos humanos, entidades da sociedade civil e demais atores que atuam com o tema, os dados apontam para um esvaziamento da política de combate ao trabalho escravo no país. Coordenador da campanha contra o problema promovida pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), frei Xavier Plassat diz que apenas questões pontuais não explicam a redução nas fiscalizações e que há uma “má vontade” do governo Temer:
— Pode haver elementos do contexto, como a greve de fiscais, os eventos nacionais que ocuparam a Polícia Federal, mas temos problemas estruturais que vêm de anos, como a redução das equipes de fiscalização. Agora, com a nova administração, vemos uma má vontade do governo em fortalecer essa iniciativa que é elogiada internacionalmente, que nunca sofreu ideologização, que começou lá com Fernando Henrique Cardoso.
Carlos Silva, presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), também não nega que o movimento grevista impactou nos números da fiscalização de 2016, mas assinala o peso do desmonte contínuo da atividade de inspeção. Segundo ele, existe hoje um déficit 1.200 cargos de auditores vagos e só 2.460 profissionais na ativa, o que levaria a “um estrangulamento” do trabalho.
— Ao não contratar para os cargos que ficaram vagos, ao não dar prioridade orçamentária, o governo vai enfraquecendo a política. E aí as estatísticas caem, levando muitas vezes a uma conclusão equivocada de que o problema diminuiu. Mas se tem algo que podemos dizer com absoluta certeza é que não há motivo para comemorar. A queda dos números sinaliza problemas, e não avanços — avalia Silva.
O procurador Tiago Muniz Cavalcanti, coordenador nacional de erradicação do trabalho escravo do Ministério Público do Trabalho, observa que o número de equipes móveis de fiscalização do trabalho escravo chegou a dez em 2005 e hoje se resume a quatro, embora auditores não ligados às divisões especializadas integrem operações se necessário. No cenário atual, diz ele, é impossível atender às denúncias que não param de chegar:
— Recebemos muitas denúncias, de vários canais disponíveis, e fazemos escolhas trágicas porque não temos equipes em quantidade suficiente. Mas, além disso, o contexto atual é muito preocupante, de desmonte de direitos sociais, com as reformas Trabalhista e Previdenciária, por exemplo, que incentivarão a escravidão no futuro.
Governo alega insegurança jurídica
Cavalcanti cita ainda o imbróglio jurídico e político em torno da lista suja do trabalho escravo, cuja divulgação foi suspensa por liminar do STF em 2014 a pedido de empregadores do ramo da construção civil. A decisão caiu em meados de 2016. Mas, em vez de voltar a publicar a relação de empregadores flagrados submetendo funcionários a condição análoga à escravidão, o governo, já na gestão Temer, acionou a Justiça para postergar a divulgação, alegando insegurança jurídica às empresas e danos à economia.
— São atitudes do governo que sinalizam um retrocesso muito grande — diz Cavalcanti.
Para Carlos Silva, o argumento do governo de que a lista suja pode representar uma “injustiça contra os empregadores” é uma desculpa sem fundamento. Ele afirma que “ninguém entra no cadastro do dia para a noite.”
— Quem está lá sabe que é escravagista, sim. O fato de as empresas que entram na lista suja ficarem com restrição para receber empréstimos bancários é o que tem levado o governo à decisão de não publicar o cadastro — diz Silva.
O ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, vem defendendo que é preciso avaliar os critérios atuais de inclusão de empresas na lista suja para não “combater uma injustiça com outra injustiça”. Ele instalou no início deste mês um grupo de trabalho para discutir novas regras, ocasião em que assinalou a importância do “amplo direito de defesa no devido processo legal”.
Em nota, o Ministério do Trabalho afirmou que não publicou os dados de 2016 no site, como é costume, porque o relatório “está sendo finalizado” para divulgação “em breve”. A pasta ressaltou ainda que apesar da greve e de impasses burocráticos que resultaram em “falta de repasse de recursos” em 2016, “todas as denúncias urgentes foram atendidas pelas equipes de fiscalização”.
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