segunda-feira, 20 de março de 2017

Crônicas do Dia - Cota - Antonio Tabet

‘Ministros’ do Supremo recorrem a escala de cores para definir como classificar os brasileiros na aplicação das cotas raciais

Ulysses, ministro do Supremo, entra na sala do colega, Sérgio, que já o esperava.

— O que houve, Sérgio?

— Bom... como você deve ter lido, o negócio das cotas nas universidades tá dando problema de novo.


— O que houve agora?

— Aqueles merdas de sempre.

— Sociedade civil?

— Sociedade civil.

— Esses bostas.

— Sempre eles. Querem que a gente determine de novo, que a gente classifique de novo, que a gente documente de novo...

— Tudo de novo?

— Tudo de novo.

— Por que, hein?

— Porque precisa saber quem é preto e quem é branco. Tem preto que é preto, preto que não quer ser preto, branco que acha que é preto e ainda tem os tais dos albinos pra esculhambar tudo.

— E aí?

— Aí que eu resolvi usar a escala Pantone dessa vez.

— Escala quem?

— Escala Pantone. É que a filha da ministra Do Carmo faz design na PUC e tem um livretinho com tudo que é cor separada por número, letra e o cacete. É até bonitinho o negócio.

Sérgio pega o telefone e fala com a secretária.

— Dona Solange, a senhora pode trazer aquela escala Pantone aqui? Isso. Aquele livrinho das cores. Obrigado.

— Mas Sérgio... acho desnecessário. Preto é preto e branco é branco.

— Você sabe que não é bem assim, Ulysses. O Pelé, por exemplo. É preto. Seu Jorge? Preto. Mas aí a gente cai para um terreno mais nebuloso. O senador Romário é o quê? E o Neymar ? A Preta Gil mesmo às vezes eu olho e acho que é meio cinza.

Solange, a secretária, entra na sala com um bloquinho.

— Seu Sérgio, eu não achei a escala que o senhor falou, mas achei aquele bloquinho da Suvinil que a gente usou pra pintar o gabinete. Tem umas cores também.

Sérgio coloca os óculos, observa o bloquinho, parece satisfeito e agradece, Solange sai da sala e os ministros começam a examinar a tabela de cores.

— Ulysses, batendo aqui com o que a gente tinha antes, podemos então fechar que de “Tarde de Outono” pra baixo é preto e pra cima é branco?

— Peraí. “Pra baixo” é mais escuro? Tem que ver isso aí pra não dar problema.

— Pra baixo aqui a gente já cai em “Crepúsculo” e “Cuia de Chimarrão" que eu, sinceramente, acho ofensivo.

— Quer saber? Isso é uma grande palhaçada, Sérgio. Isso não é questão de cor. É questão social. Quer ver? Você joga golfe, certo?

— Certo.

— Muito bem. E pelo que eu tô vendo aqui, o Tiger Woods é... deixa eu ver nesse bloquinho... cor de “Beijo Baiano”. Agora eu pergunto: ele precisa economizar na mensalidade? Não. Não precisa. Ele precisou de pistolão? Não. Nem ele, nem o Barack Obama, nem a Oprah, nem o Michael Jordan. É meritocracia, pô!

— Então você acha que a gente deve estabelecer cota baseada em renda e não em cor de pele?

— Evidente!

— Pensando bem, você tem razão.

De repente, José, o único ministro negro do STF, abre a porta.

— Gente, desculpe o atraso. Bastou eu trocar de carro pra ser parado em cinco blitzes vindo pra cá.

— Cinco?!? — perguntam os dois.

— Cinco! Na primeira, ainda levei um tapa na cara de um policial achando que eu era bandido. Acreditam?

— Mas você não disse que era ministro do STF? — Perguntou Sérgio.

— Disse. Mas aí ele riu e me deu outro. Essa violência tá demais, né?

Ulysses e Sérgio ficam constrangidos. Sérgio fecha o bloquinho e pergunta encerrando a conversa com Ulysses.

— Vamos de “Tarde de Outono” então?

— Por mim, ok.

José não entende.

— “Tarde de outono”? Do que vocês estavam falando?

Sérgio e Ulysses se entreolham.

— Desse clima louco, né, Ulysses?

— Brasília, né, Sérgio? Muito seca.



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