segunda-feira, 20 de março de 2017

Crônicas do Dia - Temer, Trump e as mulheres

Os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos têm em comum a seleção de uma equipe singular pela exclusão da mulher

12/03/2017 - 
Dorrit Harazim, O Globo


Os dois presidentes não dispensam uma gravata. Donald Trump ostenta a dele como farol do que alardeia ser seu irresistível macho power. Ele as prefere escarlates. As gravatas de Michel Temer, recatadas também fora “do lar”, compõem a armadura do homem público aferrado aos marcadores sociais de sua geração. São dois chefes de Estado septuagenários. Recasados há mais de uma década com mulheres bem mais jovens, conseguem mantê-las encasteladas da imprensa, dosam sua exposição pública, e tentam blindá-las contra a voracidade das mídias sociais.

Trump e Temer têm tudo para nutrir um genuíno desprezo mútuo pelo estilo do outro. Mas eles têm em comum a seleção de uma equipe singular pela exclusão de mulheres: até agora são apenas duas as nomeadas pela Casa Branca e pelo Palácio do Planalto.

Na quarta-feira 8 de março, também tiveram em comum as respectivas declarações em homenagem ao Dia da Mulher. À primeira vista o brasileiro cometeu uma cascata constrangedora de “gafes”: assegurou os compatriotas de sua “convicção do quanto a mulher faz pela casa”, do quanto ela é “capaz de indicar os desajustes de preços em supermercados”, e garantiu melhores perspectivas do ingresso da mulher no mercado de trabalho, “além de cuidar dos afazeres domésticos”.

Em comparação, Trump, de quem podia se esperar o pior dadas as barbaridades que proferira durante a campanha (“Consigo agarrar qualquer mulher pela xoxota” foi a mais famosa), soou normal. Homenageou o fundamental papel feminino nos Estados Unidos e no mundo, e garantiu ter “um respeito tremendo pelas mulheres e pelos vários papéis que elas desempenham, vitais para nossa sociedade e economia”. O americano foi apenas mais bem assessorado.

Como escreveu a colunista Míriam Leitão, Temer não cometeu uma ”gafe” de momento, que tentou corrigir no dia seguinte por um texto menos pré-diluviano. O presidente do Brasil não se expressou mal. Sua visão do papel da mulher foi sincera, genuína, é aquela mesmo — arcaica, à margem das questões de gênero. Isto, em 2017.

Trump, por seu lado, apesar da penca de citações escabrosas contra mulheres e dos relatos cabeludos que afloraram durante a campanha, convive com o crescimento da força de trabalho feminino — do braçal ao executivo — desde que nasceu até se tornar o empresário bilionário que é hoje. Ainda assim, chegou a presidente dos Estados Unidos falando de mulher como carne e referindo-se a muitas delas publicamente como lixo. Isto, em 2017.

Semanas atrás a professora de Clássicos de Cambridge e da Royal Academy of Arts, Mary Beard, deu uma instigante palestra no British Museum londrino. Após fazer um rico histórico das raízes da separação real, cultural ou imaginária entre poder e mulher na civilização ocidental, ela propôs uma reflexão mais profunda sobre o próprio conceito de poder. Devemos procurar dissociá-lo da noção de elite.

Independentemente dos avanços já alcançados, o nosso modelo de pessoa em posição de poder continua a ser um só: masculino. Nem mesmo um garimpo no Google em centenas de páginas de cartunistas conseguiu resultado diferente: a mulher poderosa sempre está traçada com jeitão de homem. Simplesmente ainda não conseguimos formar outra imagem.

Também no mundo real, pensa Beard, não devem ser apenas conforto e praticidade que levam líderes políticas como Angela Merkel e Hillary Clinton (ou Dilma Rousseff) a optar por confortáveis jaquetas e calças compridas. O figurino as insere melhor no jogo do poder, no qual, como já dizia Elizabeth I, é preciso ter “coração e estômago de um rei”.

Vale lembrar que Donald Trump, em sua primeira semana como presidente e antes de saber que sigilos vazam na Casa Branca, estabeleceu normas de trabalho seguidas com rigor pela equipe: para os homens, terno bem cortado e gravata; para as mulheres, “trajes femininos”.

Beard nos convida a repensar o que é poder, a redefini-lo, ao invés de continuar a tabular os progressos femininos apenas pela métrica convencional. Se a proporção de parlamentares mulheres refletisse as políticas de gênero de um país, por exemplo, o Parlamento de Ruanda não teria o dobro da representação feminina da Grã-Bretanha (60% a 30%). O poder tabulado na conquista de cobiçados “tetos de vidro”, ou em número de CEOs e assentos no topo dos poderes Executivo e Legislativo seria apenas a sua forma mais visível — e mais elitista, estreita, associada a prestígio e individualidade.

Nesses termos, sustenta a professora, é mais fácil perpetuar as mulheres, enquanto gênero, excluídas da estrutura social codificada como masculina.

Uma forma de repensar o poder seria desmembrá-lo do prestígio público a que está historicamente acoplado. Concebê-lo como atributo, não como posse, como uma força colaborativa paralela à sua forma convencional. “O que tenho em mente”, diz Beard, “é a habilidade de ser eficaz e de ter o direito de ser levada a sério também em conjunto. Este é um tipo de poder que tantas mulheres sentem não ter — mas querem ter ”.

Ela cita como exemplo o movimento político mais influente nos Estados Unidos da era pré-Trump, o Black Lives Matter, fundado por três americanas cujo nome ninguém perguntou.

Considerando-se que, pela última avaliação do Fórum Econômico Mundial, o Brasil levará 95 anos para alcançar plena igualdade de gênero, qualquer visão fora da curva merece atenção. E urgência. O Brasil não precisa de um presidente que lhe diga o quanto a mulher faz pela casa, pelo lar. Precisa de um país onde as mulheres mostram ao presidente a sociedade da qual são parceiras iguais.

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