Entre a Terra do Nunca e a Cidade de Deus, a clássica obra de Jorge Amado retrata a infância dura dos meninos marginalizados pelas ruas de Salvador.
Imagine seus filhos, sem a sua ausência, perdidos no mundo, ainda muito pequenos, a perambular pelas ruas de uma grande cidade, sem qualquer espécie de proteção social oferecida pelo estado, marginalizados por conta das condições de pobreza em que vivem.
Quantas são as crianças que ainda hoje, no Brasil do século XXI, vivem à cata de restos, de migalhas, de esmolas, a mendigar nos sinais ou a praticar pequenos (ou grandes) delitos no centro velho ou nas áreas antigas e abandonadas pelo poder público em metrópoles brasileiras?
A vida nas ruas ensina os caminhos da sobrevivência e eles passam, necessariamente, pelo embrutecimento, solidão, dor, fome, doença e tudo o que pudermos imaginar a castigar os homens e mulheres, velhos ou crianças, que vivem ao relento.
A condição de pobreza e abandono é algo que oprime, machuca e, acima de tudo, ofende a dignidade humana.
Era assim em Salvador na época dos “capitães da areia” do célebre romance de Jorge Amado, é assim hoje, em Salvador e em muitas outras cidades brasileiras, com aspectos que tornam ainda pior esta situação, como as drogas, a virulência do estado, a insensibilidade das pessoas, a velocidade da vida, a globalização e sua fome voraz por capital.
A trajetória de Jorge Amado na política o colocou a esquerda e, de sua sensibilidade como homem, escritor e adepto de ideias socialistas surgiram obras que questionam a forma como o mundo se organiza, quanto ao modo como o comando vil e gélido do dinheiro torna as pessoas distantes umas das outras e, assim sendo, ainda que próximas dos dramas cotidianos que afligem os desesperançados, fecham seus olhos e dispersam rapidamente, muitas vezes assustados, amedrontados diante da miséria e do aparente perigo que as ronda.
Pedro Bala, Sem-Pernas, Professor, Gato, João Grande, Dora e todos os personagens deste clássico da literatura brasileira são personagens que mexem com o leitor, o obrigam a necessariamente se colocar em seus lugares, ao relento, numa infância doída, na luta pela vida sem grandes sonhos, alimentados pelo que era possível conseguir, agindo fora da lei, enganando as pessoas, apanhando dos policiais...
Seu abrigo escondido, num cais tomado pela areia, abandonado pelos estivadores por já não captar o movimento das embarcações não é idílico, ainda que nos faça lembrar da Terra do Nunca, de Peter Pan, personagem da célebre obra de J. M. Barrie, que como os “capitães de areia”, também ganhou as telas do cinema.
Enquanto na obra inglesa a infância é algo que não se quer abandonar nunca, liderados pelo menino que não quer crescer jamais, na Bahia de Pedro Bala, líder inconteste dos “capitães de areia”, o futuro é incerto no que oferece e, talvez até mesmo, quanto a se acontecerá, mas é algo que talvez lhes ofereça algo um pouco melhor, já que meninos ainda, tem a vida em seu lado mais pesado e sombrio de homens adultos, pobres e marginalizados.
Os sonhos existem entre eles. Pirulito quer ser padre. Volta Seca admira Lampião e quer ser cangaceiro, se juntando a seu bando. Professor tem talento para as artes e gosta de ler, quem sabe não possa se tornar um artista quando adulto. A pequena Dora, ainda menina, já é algo mais, um tanto quanto mãe de todos os meninos que moram no trapiche, meio que irmã de todas, a cuidar de cada um deles, a sonhada esposa de Pedro Bala ou de Professor. E Pedro, o que será? Seguirá os passos de seu pai, conforme lhe contaram os estivadores, para se tornar também um homem das docas, um líder entre eles, capaz de dar sua vida pelos companheiros de labuta?
Ainda que suavizada a dureza do cotidiano pelas letras sensíveis do grande escritor baiano Jorge Amado, a inocência dos meninos e da menina Dora vão aos poucos se perdendo. A bebida, o sexo, o cigarro, a malandragem e tudo o que pertence ao mundo dos adultos entra em seus caminhos de forma muito precoce, a lhes ceifar as crianças que neles existem. Não acontece tal transição de forma inclemente, pois que entre eles prevalece a solidariedade e o companheirismo, assim como o apoio de alguns adultos, como o padre José Pedro, o estivador João de Adrão, o pescador e capoeirista Querido-de-Deus ou a mãe de santo Don’Aninha.
A crítica social é marca forte neste romance de Jorge Amado e, certamente, nos faz lembrar de obra recente, “Cidade de Deus”, escrita por Paulo Lins, que igualmente foca em meninos marginalizados que entram para o crime e que ganhou o mundo pela força do cinema de Fernando Meirelles. O cenário, nesta obra mais recente e igualmente clássica, passa a ser o Rio de Janeiro, a diferença reside no fato de que no novo cenário, a violência é maior, os meninos se tornam homens, as drogas imperam, a violência ganha contornos mais trágicos e pungentes, não há a pena suave de Amado a sublimar ligeiramente o quadro social trágico que se impõe aos olhos dos leitores.
Obra obrigatória que desnuda o Brasil e a Bahia de todos os santos na amargura de meninos de rua que se tornam homens da noite para o dia e assumem o crime como sua forma de sobreviver ante o descaso da sociedade, das autoridades e falta de perspectivas para quem é pobre e sem família. “Capitães da Areia” é um tapa na cara, um soco no estômago, um golpe virulento naqueles que vivem a margem de todo o resto, daqueles que padecem, dos que morrem por dormir ao relento ou por não terem um pedaço de pão que os sustente...
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