sábado, 4 de fevereiro de 2017

Lima Barreto: negro, escritor, rebelde


Passado esse 13 de maio, queremos nos contrapor à versão da “história oficial” da burguesia, que comemora um dia de festa em que, supostamente, mais uma vez os negros foram objetos, e não sujeitos, de sua própria história, quando uma “bondosa” princesa os libertou da escravidão. A verdadeira história, a que não se conta, é bem outra, e inclui séculos de lutas pela liberdade, com milhares de quilombos colocados em pé contra a tirania escravocrata, assassinatos individuais de senhores, fugas, entre mil outras formas de combate e resistência.


Em homenagem a essa heroica e ininterrupta luta, que segue até hoje contra um Estado racista, que todos os dias pelas mãos da polícia mata a juventude negra, que segue destinando os piores salários e empregos às mulheres negras, que mantém os negros segregados das universidades, etc., queremos lembrar um grande escritor negro, que apesar do imenso racismo que contra ele pesou, deixou uma contribuição fundamental à nossa literatura e ao combate do povo negro por sua liberdade: Afonso Henriques de Lima Barreto.
Lima Barreto, desde jovem perseguindo o sonho de ser escritor, afirmou “Eu quero ser escritor porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios, deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras”. Teve, por duas vezes sua candidatura recusada na Academia Brasileira de Letras, pois ali só entravam “doutores”, e jamais homens como Lima. Este havia ingressado como estudante na Escola Politécnica, mas devido às dificuldades financeiras não pôde concluir o curso. Essa sua luta pela sobrevivência, sempre agravada pelo racismo, que era a outra face da pobreza, nunca deixou de ser um obstáculo para que Lima realizasse seu sonho de ser um escritor. E, no entanto, ele o fez.
A escrita de Lima transpira a revolta contra a sociedade. Seu primeiro livro, “Memórias do Escrivão Isaías Caminha”, contém muitos elementos autobiográficos, e tem como personagem central um jovem negro que procura estabelecer sua carreira em um jornal carioca. A crítica ao racismo, bem como a outras ideologias dominantes da época, como o positivismo de Augusto Comte, inspirador da república dos marechais e inscrito até hoje no lema “ordem e progresso” da bandeira brasileira. Era evidente que tamanha mordacidade, dirigida justamente contra os valores da classe dominante, seria mais um motivo para excluir Lima de qualquer reconhecimento por parte da crítica.
E, assim, logo Lima foi considerado um “escritor menor”. Aí, é claro, a crítica da época revestia-se de um caráter ainda mais conservador em seus supostos critérios de julgamento, que, afeitos aos modelos parnasianos da véspera de tipos medíocres como o “príncipe dos poetas” Olavo Bilac, analisavam a forma, a “pureza gramatical” que conferia, segundo seu julgamento, a beleza da forma literária. Bilac e seus enfadonhos poemas sobre vasos e estátuas que o digam. O purismo gramatical e o racismo se misturavam em um só lodo na rejeição da crítica a Lima.
Contudo, não foi apenas em sua época que o “purismo das formas” foi um argumento de peso contra Lima e sua obra. Muito pior foi posteriormente um crítico como Antonio Candido, costumeiramente reconhecido por sua ênfase na relação entre literatura e sociedade, assumir uma posição francamente conservadora, na qual a crítica social de Lima é vista como um contraponto à produção estética “de qualidade”. Isso fica nítido quando Candido diz que:
Para Lima Barreto a literatura devia ter alguns requisitos indispensáveis. Antes de mais nada, ser sincera, (...) devia também dar destaque aos problemas humanos em geral e aos sociais em particular. (...) Esta concepção empenhada, quem sabe devida às circunstâncias da sua vida, nos leva a perguntar de que maneira as suas convicções e sentimentos se projetam na visão do homem e da sociedade, e em que medida afetam o teor da sua realização como escritor. Porque, se de um lado favoreceu nele a expressão escrita da personalidade, de outro pode ter contribuído para atrapalhar a realização plena do ficcionista. [1]
Candido, diferente dos críticos da época, não se aferra à gramática, mas a uma contraposição, igualmente conservadora e arbitrária, entre vida e ficção, engajamento social e realização estética. Podemos responder essa crítica nas palavras do próprio Lima:
Percebi que tem de estilo a noção corrente entre Leigos e... literatos, isto é, uma forma excepcional de escrever, rica de vocábulos, cheia de ênfase e arrebiques, e não como se o deve entender com o único critério justo e seguro: uma maneira permanente de dizer, de se exprimir o escritor, de acordo com o que quer comunicar e transmitir. [2]
Na verdade, a consideração da linguagem de Lima como um “problema” em sua literatura é antes de tudo uma concepção política, pois se trata de diminuir e menosprezar a forma de comunicação popular, a oralidade, adotadas intencionalmente por Lima, em relação à gramática dos “eruditos”. Nesse sentido, Lima foi um precursor dos modernistas, que buscaram intencionalmente na oralidade e na língua popular a renovação estética de sua literatura. Ainda que em Lima tal movimento não tivesse um caráter tão explicitamente político, ele subjaz à sua escolha estética, como fica claro no trecho acima. Alceu Amoroso Lima, um crítico mais honesto quanto a suas concepções, fez sua autocrítica quanto à leitura de Lima posteriormente:
Aquele “desleixo” que eu criticava em 1919, no estilo de Lima Barreto, não era aliás uma ignorância da linguagem culta, nem muito menos qualquer tipo de esnobismo, e sim o sinal espontâneo do homem das massas, dos pingentes dos subúrbios, do povo-povo, sem qualquer preocupação de exotismo lingüístico, mas típico de suas origens populares e de sua predileção natural. [3]
A verdade é que Lima Barreto era uma figura bastante contraditória quanto às suas concepções estéticas, mas, sem dúvida, estava muito avançado quanto à crítica brasileira da época. Defendia um conceito de “literatura militante”. Em suas palavras: “A começar por Anatole France, a grande literatura tem sido militante. (...) Eles [os livros de Anatole France] nada têm de contemplativos, de plásticos, de incolores. Todas, ou quase todas as suas obras, se não visam a propaganda de um credo social, têm por mira um escopo sociológico. Militam. Isto em geral dentro daquele preceito de Guyau que achava na obra de arte o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo entendimento dos homens.” [4]
Assim, Lima defendia que a literatura era grande pela articulação de sua forma ao conteúdo social do qual trata, aquilo que tem a dizer. Contra a literatura de “perfumaria”, por uma literatura que aborde as questões sociais, que traga ideias, concepções de mundo. Seu conceito de militante, no entanto, não era o de uma literatura politicamente engajada em luta contra as injustiças sociais, como poderia parecer. Isso fica claro quando ele afirma que: “Em vez de estarmos aí a cantar cavalheiros de fidalguia suspeita e damas de uma aristocracia de armazém por atacado, porque moram em Botafogo ou Laranjeiras, devemos mostrar nas nossas obras que um negro, um índio, um português ou um italiano se podem entender e se podem amar, no interesse comum de todos nós” [5]
Essa concepção de criar o amor e a solidariedade ao escrever a literatura, contudo, é parte dessas contradições que frequentemente encontramos nas páginas de Lima. Um escritor apaixonado e comprometido com o que pensava, em suas páginas as suas críticas sociais raramente deixariam um leitor ver nelas esse “amor, no interesse comum de todos nós”. O que, sim, transparece é o ódio a uma sociedade hipócrita e racista.
Seu mais célebre romance, “O triste fim de Policarpo Quaresma”, mostra que a concepção romântica que transparece em seu artigo não se expressa da mesma forma em sua literatura. Quaresma, patriota fanático, é o protagonistas que Lima utiliza para ridicularizar esse sentimento tão “nobre”, que, enfim, se volta inúmeras vezes contra Quaresma. Em meio aos combates entre a classe dominante, Quaresma é apenas um ingênuo útil aos interesses alheios, com seu nacionalismo obtuso o levando a ser manipulado uma e outra vez. E, ainda que seja este o tema central do livro, Lima aborda outras questões sociais fundamentais, de forma que outros autores de sua época não ousavam, como a questão do papel das mulheres na sociedade, nesse caso por meio da afilhada de Quaresma, Olga.
Essas e outras obras revelam um autor incrível, mas que, por sua cor e classe, foi uma e outra vez relegado ao título de “menor”. Lima sentia e ressentia-se disso, e era agudamente consciente dos motivos de sua exclusão e do tratamento de suas obras pela crítica, como se nota, por exemplo, nesse trecho de “Recordações do Escrivão Isaías Caminha”:
“Os livros nas redações têm a mais desgraçada sorte se não são recomendados e apadrinhados convenientemente. Ao receber-se um, lê-se-lhe o título e o nome do autor. Se é de autor consagrado e da facção do jornal, o crítico apressa-se em repetir aquelas frases vagas, muito bordadas, aqueles elogios em cliché que nada dizem da obra e dos seus intuitos; se é de outro, consagrado mas com antipatias na redação, o cliché é outro, elogioso sempre mas não afetuoso nem entusiástico. Há casos em que absolutamente não se diz uma palavra do livro.” [6]
Esse peso do racismo institucional, do conservadorismo literário e do “esquecimento” de quem opta por criticar sem mediações às instituições políticas, acadêmicas e jornalísticas, Lima o sentiria até sua morte, em 1922, e, sua obra, ainda depois. Contudo, lutou incessantemente para manter sua produção, ora excelente, ora, nem tanto...
Algumas de suas melhores passagens continuam bastante ocultas, pois fazem parte do rico repertório de suas crônicas e artigos jornalísticos, nos quais encontramos temas como, por exemplo, a defesa da revolução bolchevique (conhecidos no Brasil, na época, como “maximalistas”, por um desses batismos arbitrários de algum jornalista que, infelizmente, acaba se consagrando). Enquanto a intelectualidade da época caluniava covardemente a revolução operária e camponesa e o recém estabelecido governo soviético, Lima demonstrou grande coragem e lucidez ao defender publicamente em suas páginas a revolução russa. Seu artigo “No ajuste de contas”, de 1918, ficou conhecido como “manifesto maximalista”, pela sua enérgica defesa da revolução. Ele chega a propor quatro pontos de mudanças políticas e sociais para o Brasil inspirados na revolução:
“a) a supressão da dívida interna, isto é, cessar de vez, o pagamento de juros de apólices, com o qual gastamos anualmente cerca de cinquenta mil contos; b) confiscação dos bens das ordens religiosas, sobretudo as militantes; c) extinção do direito de testar; as fortunas, por morte dos seus detentores, voltavam para a comunhão; d) estabelecimento do divórcio completo (os juristas têm um nome latino para isto) e sumário, mesmo que um dos cônjuges alegasse amor por terceiro ou terceira. (...) A muitos leitores parecerão absurdas essas idéias; não pretendo convencer desde já todos, espero que o tempo e o raciocínio irão despertar neles simpatia por elas e a convicção de sua utilidade social. Apelo para todos aqueles que não têm a superstição da lei, dos códigos, (…); quanto a tais chacais e hienas a serviço dos burgueses, eu tomo a liberdade de dizer-lhes que, tarde ou cedo, sem eles ou com eles, há de se fazer uma reforma social contra o ‘Direito’ de que são sacerdotes, pois o seu deus já está morto no coração da massa humana e só falta enterrá-lo (…) Iremos, porém, devagar e por partes; e, logo acabada esta guerra que é o maior crime da humanidade, (…) nós, os brasileiros, devemos iniciar a nossa Revolução Social, com essas quatro medidas que expus. Será a primeira parte; as outras, depois." [7]
Apenas essas linhas seriam suficientes para que Lima fosse completamente marginalizado da “elite literária” brasileira. Ele foi um autor negro, que nunca esqueceu sua classe, sua cor, sua origem. Produziu sua obra contra todas as adversidades que se colocaram em seu caminho, e mesmo tendo sido internado em um manicômio, tendo sofrido de alcoolismo, tendo morrido jovem, com apenas 41 anos, ele deixou-nos uma obra fundamental, um marco da literatura brasileira. Nesse 13 de maio, que também é o aniversário de 134 anos de Lima Barreto, resgatamos sua memória.

http://www.esquerdadiario.com.br/Lima-Barreto-negro-escritor-rebelde

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