“Menina eu te conheço não sei de onde/Mas por incrível que pareça sei o seu nome/Menina/Não sei se foi no bonde de Santa Teresa...”
(Geraldo Azevedo)
Amenina da canção de Geraldo Azevedo não anda mais no bonde de Santa Teresa, porque o bonde praticamente já não existe. Pois é, compositor, conseguiram a proeza de quase matar a poesia que viajava nos trilhos deste encantado pedaço do Rio de Janeiro. O bonde elétrico, saudado por Machado de Assis há 120 anos — “agora é que Santa Teresa vai ficar à moda” —, é hoje um arremedo de sistema de transporte, que fere a alma dos moradores do bairro e, por extensão, de todos os cariocas.
Durante anos e anos, o bonde regeu a vida de Santa Teresa. Nos áureos tempos, era possível acertar o relógio por sua passagem pelas paradas. Ao longo do tempo, sofreu alterações e encurtamento de trajetos, mas não deixou de ser o transporte preferencial dos moradores e o mais adaptado às curvas e ladeiras do bairro.
Por mais de um século, serviu não só a quem vive em Santa Teresa, mas aos que a visitam e, principalmente, aos poetas que nele se inspiraram para seus versos e canções. As tentativas de destruí-lo foram muitas. Houve uma época em que inventaram um bonde fechado, que impedia a contemplação das casas, da paisagem do bairro e de respirar o ar da montanha, sentir seus cheiros, sonhar. O cobrador, que antes andava com destreza pelos estribos recolhendo as passagens e com maços de notas habilmente trançados entre os dedos, foi confinado a uma roleta, sentado, e morreu de tristeza. Ideia de jerico, abandonada pela insensatez e pelos protestos.
Sem sucesso nas empreitadas para eliminá-lo ou inviabilizá-lo de olho em aspiradas privatizações — sempre rentáveis para quem as faz e duvidosas para os usuários —, as autoridades foram deixando o bonde de lado. Promoveram um processo de sucateamento por abandono e falta de peças de reposição, que culminou com o trágico acidente de agosto de 2011, que deixou seis mortos, 57 feridos e uma cicatriz indelével no bairro.
Após o desastre, vieram as ideias mirabolantes. Ao invés de recuperarem o sistema nos dois ramais que atendiam a maior parte do bairro — Dois Irmãos e Paula Matos —, inventaram de recuperar os trilhos até a Rua do Riachuelo, interrompidos desde as trágicas chuvas de 1966, e prometer, pela enésima vez, levar a linha até o Silvestre, onde poderia se conectar com o trem do Corcovado.
Nada mal pensar grande, se não soubéssemos como andam as obras públicas e suas evoluções e paralisações ao sabor do humor dos governantes de plantão. Com estardalhaço, inauguraram a linha até a Lapa — desnecessária, já que a estação Carioca, de onde partem os bondes, está a poucos passos dali —, desativada pouco depois pelo afundamento de trecho da Rua Francisco Muratori. Da linha para o Silvestre, nem se ouve mais falar.
Durante quatro anos, tempo que superou em muito os prazos previstos, construiu-se, não sem reparos (e muitos aditivos), apenas o trecho de 900 metros que vai da estação Carioca ao Largo dos Guimarães, atendendo a menos de um terço do bairro. Quando a situação financeira do governo do estado já se anunciava periclitante, foram esburacando as ruas até o Vista Alegre, um pouco mais acima, até interromperem totalmente as obras, sem perspectiva de retomada.
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Não bastasse privar os moradores de seu meio de transporte, o governo do Rio criou, no apagar das luzes de 2016, uma medida que, acredito, esbarra na inconstitucionalidade e ofende a todos os cariocas. Elevou a tarifa do bonde, que circula apenas até as 16h, para inacreditáveis R$ 20, no eterno propósito de transformá-lo em veículo para turistas, e disfarçou a medida, propondo aos moradores de Santa Teresa se cadastrarem para não pagar a passagem. Claro que quase ninguém foi se registrar e legitimar o absurdo que violenta o bom senso. Seria o equivalente a propor que o Maracanã — privatizado e abandonado — tivesse um preço para os moradores da Tijuca e outro para os demais habitantes da cidade.
O que as autoridades ignoram é uma característica essencial dos moradores de Santa Teresa, além de seu amor profundo pelo bairro: a capacidade de resistência. Ela vem desde os tamoios e quilombolas, que ali se refugiaram, e prossegue nas lutas constantes pela manutenção da ambiência única do bairro. As vitórias costumam levar tempo, mas vai chegar a hora em que a menina voltará a andar de bonde, e todos os cariocas, sem distinção, poderão conhecê-la embarcados no mais charmoso sistema de transportes da cidade.
Mair Pena Neto é jornalista
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/opiniao/a-menina-ja-nao-anda-no-bonde-20837584#ixzz4XkVYmJ1t
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