A relação entre épocas de crise e dramaturgia de escape
Neste vasto mundo acinzentado, intolerante, polarizado, violento, nada mais alentador que um choque de cores, música, diversidade, afeto. Assim é “La La Land”, o musical que arrebatou o coração de Hollywood. E o meu também. O longa do talentoso Damien Chazelle, diretor também do ótimo “Whiplash” (2014), é rota de fuga para o país – e o planeta – que, não faz uma semana, inaugurou a Era Donald Trump. Vencedor de sete Globos de Ouro, indicado em 14 categorias do Oscar 2017, o filme é a ração de alegria a nos alimentar nos tempos nublados da vida real. Por 128 minutos, é possível viajar para um cenário onde a música flui e o sol brilha. Na Los Angeles da tela não chove.
Foi Lázaro Ramos que, num bate-papo, tempos atrás, chamou a atenção para a correlação entre épocas de crise e dramaturgia de escape. Quando a barra pesa, tramas rurais, romances inocentes, belas paisagens costumam tomar o lugar dos enredos encharcados de brutalidade, carregados de falta de caráter das novelas urbanas. Nos Estados Unidos, não há de ser diferente. Ou seria mero acaso a era de ouro dos musicais hollywoodianos estender-se pelas décadas de 1930 a 1950, que atravessaram da Grande Depressão à Segunda Guerra Mundial?
“La la land” traz para o século XXI o ambiente de música, ternura e aventura do cinema do passado. Com pitadas de contemporaneidade. O figurino remete aos anos 1950, mas os personagens usam telefone celular e notebook. A mocinha Mia Dolan, encarnada por Emma Stone, circula num Toyota Prius, o carro híbrido há anos entre os mais vendidos na Califórnia, enquanto o Sebastian Wilder de Ryan Gosling dirige um Buick Riviera 1982 conversível, ouvindo jazz em fita cassete. Os números de dança — sapateado, inclusive — remetem aos clássicos de outras eras, mas a explosão de vermelhos, azuis, verdes e amarelos nas roupas e a diversidade do elenco de bailarinos (negros, brancos, latinos, asiáticos, magros, gordos, jovens, idosos) estão ali a ensinar que o mundo de hoje nada tem de monocromático ou homogêneo. Para bom entendedor...
Eu mesma, quando entrei no cinema no início da noite da última segunda-feira, buscava uma trégua do cotidiano de tiros que fuzilam menininhas de 2 anos no playground, do pesar pela vida ceifada do juiz essencial, da revisão (para baixo) do crescimento brasileiro pelo Cavaleiro do Apocalipse de codinome FMI, da incompetência explícita de um Estado mergulhado numa crise aguda do sistema carcerário. Sem falar do discurso de posse do novo presidente dos EUA, pontuado de intolerância nas propostas civis e de arrogância nas econômicas. E dos atos iniciais de Trump, a caminho de aplicar na maior economia do planeta uma velha receita latino-americana, a substituição de importações, conforme sublinharam em artigo no site The Economic Times Rogerio Studart, ex-diretor-executivo do Banco Mundial, e Stephan Richter, editor-chefe da revista on-line The Globalist.
“Conforme descobriram os países de mercados emergentes, notadamente o Brasil na década de 1960, basear-se em tal abordagem geralmente só aumenta os custos para os consumidores e usuários finais industriais, ao mesmo tempo em que faz pouco para melhorar a produtividade de uma nação... A abordagem ‘patriótica’ de Trump é, assim, uma receita de um futuro medíocre para o setor manufatureiro dos EUA”, escreveram.
“La la land” é flerte revigorante com o passado romântico; portanto, indispensável ao presente massacrante. Na tela, há sol e temperatura amena nas quatro estações. Vista do alto, com pôr do sol cor de rosa a emoldurar a paisagem, Los Angeles é inofensiva, acolhedora, confiável. Talvez influenciado por essa atmosfera, o casal Michelle e Barack Obama tenha partido de férias para a Califórnia, após entregarem aos novos inquilinos as chaves do endereço mais importante de Washington.
O filme contém a velha esperança de fazer sucesso na City of Stars, título da candidata a melhor canção no Oscar deste ano: Mia é uma garçonete aspirante a atriz; Sebastian, um pianista obcecado por jazz. Há a eterna esperança de encontrar o grande amor, aquele que faz rir, cantar e sapatear na rua, na chuva, na fazenda. Há a homenagem aos grandes musicais, astros, diretores; os cinéfilos vão enxergar. “La la land” também comporta todo aquele jazz, estilo que carrega a criatividade, o improviso, a dor, a melancolia ancestrais. Piano e nightclubs estão no filme para lembrar o quanto de lirismo cabe nos momentos mais duros. E como a música da alma não pode ser soterrada por tapas e samba — perdoemo-los, eles não sabem de nós, do nosso jazz.
“La la land” é feito de esperança e melancolia. É, ao mesmo tempo, repleto de fé no sonho e salpicado de tristeza pelo caminho não tomado, pelo fracasso à espreita. Dá a ideia do quão colorida e leve a vida teria sido se fizéssemos uma escolha, em vez de outra. É comfort food para a alma. Ajuda muito.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/rota-de-fuga-20826112#ixzz4XkO3Lw6D
Nenhum comentário:
Postar um comentário