quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Crônicas do Dia - Vamos errar com ódio ou com amor? - Zélia Duncan

Tentar corresponder às expectativas faz você virar uma frustração com duas pernas


Vamos errar. É sempre assim. Crescemos ouvindo mamãe dizer pra alguma amiga, ou em alguma conversa: “Não se preocupe em ser perfeita na educação de seus filhos, por mais que se esforce só uma coisa é certa, você vai errar!”. E isso é muito mais amplo do que poderíamos imaginar. Aos olhos e sentimentos alheios, estaremos sempre deixando algo a desejar. E tentar corresponder às expectativas faz você virar uma frustração com duas pernas, ou uma pessoa sem vontade própria.

Lembro uma passagem do clássico “Dom Quixote”, onde o herói vê um senhor batendo num empregado, então o defende e liberta, julgando ser a única coisa certa a se fazer. Pois tempos depois passa por esse empregado numa estrada, ele está chorando e alega que por culpa de Dom Quixote, ele agora não tinha mais comida, nem tinha pra onde ir. Isso me lembra o ditado: “Por que me odeias, se nunca te ajudei?”. Até a prerrogativa de cometer um ato que tem tudo pra ser bom e que vai fazer você se sentir uma pessoa generosa e solidária pode provocar ressentimento. Pode estar mostrando, de um jeito irremediável, o abismo entre você e o outro. Pode estar tocando numa ferida que você não conhece. Até pra fazer o bem, é preciso ter critério e sensibilidade. E o mais fino de todos os atos bons: controlar a vaidade. Ela é sorrateira, malandrinha. Ela exige crédito, confete, tapinha nas costas e pode botar tudo a perder.

Vivemos a era do selfie-elogio. Tanto nos cliques inofensivos que fazemos de nós mesmos, quanto nos reposts elogiosos do que recebemos e não resistimos à tentação de dividir com o universo. Fica parecendo um agradecimento, mas é, antes de mais nada, uma vontade louca de que todos saibam.

Isso chega a níveis inimagináveis, como selfie de bandido fugindo, ou dentro da cela lotada em Manaus, com facões e outros apetrechos nas mãos. Atrocidades acontecendo e o sujeito quer se registrar, incluir-se, assinar sua fisionomia, não importa de que jeito. O orgulho da autoria. Registram suas participações em estupros, expõem vítimas, deixam todo tipo de rastros, mas não resistem à tentação de serem protagonistas explícitos da desgraça toda que provocam. O psicopata de Campinas deixou seu manifesto, mostrou seu ódio às mulheres, seu fracasso como homem e pai, escolheu o dia, escolheu as vítimas com frieza. Deixou claro e escrito que mataria as vadias da família. Foram nove mulheres e três homens. Entre eles o filho, a quem dizia amar e proteger acima de tudo. O herói das trevas, que vem recebendo apoio de machistas compulsivos como ele na rede, estava sendo investigado por se relacionar impropriamente com seu filho de oito anos e já havia sido denunciado cinco vezes pela ex-mulher.

O discurso é muito parecido com tudo aquilo com que andamos convivendo ultimamente, em termos de ignorância e pensamento vazio. É basicamente o ódio, sendo cultuado como se fosse um deus, como se estivessem cumprindo ordens que vêm dele. Um deus que exige sacrifícios de seus seguidores, um deus que precisa de gosto de sangue na boca. Um deus que não vê o sol, que odeia a natureza das pessoas, principalmente das mulheres e, claro, só considera a si mesmo. Julga, condena e executa quem não é ele mesmo. Mas acontece que ele é feio, distorcido, deformado e misógino. Mas o Brasil está ali, sempre nas cabeças, quando o assunto é degradação. Estamos em quinto lugar em feminicídio. Sim, precisamos lidar com essa palavra terrível, porque ela é um fato cotidiano por aqui. O assassino de Campinas não era um louco, era um machista agudo. Ele está dentro de uma estatística de agressores, e eles são muitos. Os discursos são violentos, são todos bem parecidos e invadem até o Congresso, bem sabemos disso. Chamam a valiosa Lei Maria da Penha de lei vadia da Penha, que é como demonstram seu desprezo pelas mulheres que não se calam.

Deve ser dura a vida de um odiador. Um odiador sempre se sente incompreendido, o mundo está em dívida com ele, que tudo sabe, que tudo aponta. Odeia mulheres, gays, negros, pombos, praias cheias, decotes, depilação, grafite, arte. Odeia liberdade, especialmente a alheia. Deve ter um medo apavorante olhando pra ele no quarto escuro, ou dentro do travesseiro. Medo de tudo que o desafia, mas isso é o que ele mais odeia, esse é o gerador que alimenta todos os outros ódios que cospe todos os dias.

Vamos errar, todos nós. Mas o odiador é, ele mesmo, um erro, ele nunca vai alinhar sentimentos. Porque o sentimento, ao contrário do que parece, não está no coração. O coração é o irrigador apenas, pois o que sentimos e pensamos vem do mesmo lugar, do misterioso cérebro. É nele que devemos investir com amor nossos pensamentos. Porque quem erra com amor tem a chance de aprender e transformar o mundo, mas quem erra com ódio cego atira e mata.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/vamos-errar-com-odio-ou-com-amor-20734264#ixzz4WEyEO4ZP

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