Nem bem assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal, com todas as mesuras devidas a uma vida ilibada, a mineira Cármen Lúcia está no olho do furacão político que sacudiu o Brasil. O furacão destelhou o STF e espalhou estilhaços, ferindo de morte a esperança popular num Judiciário isento, equilibrado e imune a pressões de réus. Também decepcionou quem acreditava na força de Cármen Lúcia.
“Ou a democracia ou a guerra”, afirmou Cármen. As intenções de Cármen são dignas de elogio, na defesa da harmonia dos Poderes, mas o inferno está cheio de gente com boas intenções. A “madre superiora”, assim apelidada por sua profissão de fé católica, repetiu que deseja “pacificar o país”. Mas não consegue pacificar nem seus ministros, que agora se ofendem publicamente de loucos e indecentes. Gilmar Mendes, no exterior, defendeu o impeachment do colega Marco Aurélio Mello. Ora, Cármen, como fica o comando do STF diante do motim de um presidente do Senado e de Suas Excelências?
É ilusória e forçada a paz arquitetada entre os Três Poderes, poupando Renan Calheiros, investigado em 12 processos e já declarado réu por peculato (desvio de dinheiro público) pelo próprio STF. No fim, estamos assistindo a um desfile de onipotência e arrogância – do Judiciário, do Legislativo e do Executivo. Acham que podem fatiar sonhos, manipular expectativas, distorcer votos, tudo em nome de uma “segurança jurídica” que eles mesmos torpedeiam.
Acontece que o Brasil mudou. Está assistindo menos a novelas e mais ao seriado versão brasileira de House of cards. Os julgamentos transmitidos ao vivo pela televisão abrem argumentos e debates à população – não conseguimos acompanhar todos os bastidores, as conspirações e as alianças oportunistas de adversários que se odeiam. Mas há, sim, e isso é positivo, um interesse pela realpolitik, num Brasil que detestava o assunto até pouco tempo atrás. As redes sociais contribuem, histericamente muitas vezes, para ampliar a discussão. E isso é bom. Educa. Conscientiza.
Por isso, qualquer pessoa instruída que tenha acompanhado o julgamento do plenário do STF sabe que o desfecho foi uma farsa, destinada a acomodar interesses. Qualquer defensor de uma Justiça igual para todos, ou da moralização do serviço público, deve ter concordado com as intervenções do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e do ministro Marco Aurélio Mello. Ambos exigiam o afastamento de Renan do cargo. É insustentável a visão de que alguém pode servir para ser presidente do Senado, mas não para substituir o presidente da República. Não adianta, Cármen, dizer que seu voto foi para “baixar a poeira” no conflito entre o Legislativo e o Judiciário. Levantou um vendaval com a sociedade.
“Nenhuma democracia merece isso”, disse um risonho e aliviado Renan, referindo-se à liminar de Mello que tentou afastá-lo do cargo. Tão excitado e agradecido estava Renan no dia seguinte ao julgamento que realizou três sessões seguidas no Senado e homenageou Jorge Viana, seu substituto cordial, como “uma instituição suprapartidária, não um petista”. Renan ainda declarou, sem pensar, que “decisão do STF não se comenta, se cumpre”. Logo ele, que desobedeceu a uma decisão judicial de um ministro do Supremo e se escondeu do oficial de justiça para não receber notificação. “O que passou não volta mais”, disse Renan, comemorando a decisão “patriótica” do STF. Nenhuma democracia merece ter Renan na presidência do Senado.
É exigir muito da população que engula a decisão do STF. Mesmo levando em conta que Cármen e seus discípulos decidiram apostar numa estabilidade provisória, para que se aprovem o ajuste fiscal e a reforma da Previdência antes de fechar o ano de 2016. Todos sabem que Cármen levou ao presidente Michel Temer um pedido para que Renan não votasse o projeto contra abuso de autoridade de procuradores e juízes. Antes dos últimos episódios dessa temporada, Renan estava “irredutível”, segundo Temer. Agora, o alagoano é só paz e amor. O morde e assopra invadiu Brasília.
Mas, claro, não houve pacto, não houve acordão! Você acredita? São fatias de pizzas, parecidas com a assada pelo ministro Ricardo Lewandowski, Renan e a senadora Kátia Abreu, que manteve os direitos políticos de Dilma no processo de impeachment. A meia-sola institucional – como disse Mello – virou moda.
É com esse raciocínio que a reforma da Previdência resolve poupar militares, policiais e bombeiros. É política a decisão de permitir às Forças Armadas acumular pensões e aposentadorias – um rombo de R$ 32,5 bilhões. Mas quem se importa com a crise da Previdência e com o fim dos privilégios de certas castas? Esta semana consagrou a máxima de que uns são mais iguais que outros. Cármen e Temer, durmam com um barulho desses. Uma hora, ele chega aí.
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