Ao perder poetas como Ferreira Gullar, perdemos um pouco de ar
A perda de uma pessoa da envergadura histórica de Ferreira Gullar é mais um desses fatos tristes e velozes que vivemos sucessivamente nos últimos tempos. Não falar sobre eles, até porque as pautas trágicas não param de acontecer, faz com que a escrita semanal de uma coluna fique sempre defasada. Mesmo que muitos textos já tenham escrutinado a vasta trajetória do poeta, crítico, prosador, artista, dramaturgo, militante, polemista e outras frentes de ação, sua ausência ainda ecoa por aqui. Peço licença para mais uma homenagem.
Ao publicar um pequeno texto sobre sua morte no Facebook (e que cito apenas para comprovar a importância da obra de Gullar na vida de pessoas com os mais diferentes perfis), o baterista, artista, compositor, cantor, chef de cozinha e filósofo da vida Domenico Lancellotti fez o comentário certeiro a partir do famoso samba de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito: “Em Mangueira quando morre um poeta todos choram”. A ideia de que a morte de um poeta movimenta a emoção de toda uma comunidade é fundamental para a saúde de qualquer população.
Esse “pranto sem lenço” se transforma em saudação a uma obra poética incontornável como a de Gullar. Ela superou qualquer antipatia ideológica que seus textos nos últimos anos podem ter criado ao fim de sua vida. Por situar-se no espectro conservador do pensamento político e estético (principalmente do segundo), Gullar foi deslocado para um espaço que não iluminava mais sua trajetória. Ao morrer, a publicação de uma série de poemas de sua autoria nas redes sociais mostrou que, se não temos a sombra de uma Mangueira a nos cobrir dos excessos de chuva e sol na vida, ainda choramos quando poetas morrem.
Perder poetas é perder um pouco de ar. A sorte é que algo em nós é teimoso, algo em nós resiste por dentro da língua, algo em nós ainda se emociona com versos e vozes e ritmos, não importa o tempo e o espaço. Algo em nós simplesmente faz poesia para compartilhar com o mundo (lembrar do poema de Vinicius de Moraes, em que ele troca mangas frescas das praias da Ilha do Governador por versos de amor). Gullar, porém, marcou a história brasileira para além do poeta vertiginoso que nos deixou. Ele foi também um dos nomes e pensamentos decisivos no processo de modernização formalista da arte brasileira no final dos anos 1950. Ao lado de Mário Pedrosa, Lygia Clark, Haroldo e Augusto de Campos e muitos outros, Gullar lançou termos e obras que até hoje balizam os debates contemporâneos. Sua história na cisão dos movimentos concretos paulista e carioca e a fundação do grupo neoconcreto no Rio de Janeiro já foi escrita e reescrita algumas vezes não só pelos seus participantes diretos, mas também por algumas das melhores obras críticas do país. São eventos cujas perspectivas podem mudar substancialmente de acordo com quem as conta, mas em todas é inegável o papel central do poeta maranhense.
O fato é que, a partir de 1958, Gullar já estava bastante envolvido com as artes visuais. Ele passa a ter encontros cotidianos com os trabalhos desenvolvidos principalmente por Lygia Clark. Foi a partir daí que Gullar cunhou o termo “não objeto” para se referir a obras cuja materialidade não podia ser traduzida a partir do vocabulário da crítica ou da história da arte. Eram objetos sem uso prático e sem sentido explícito de arte (não eram telas, não eram esculturas ou relevos, não eram nem mesmo apropriações de objetos comuns deslocados para o uso artístico). Em um diálogo escrito em 1959, Gullar afirma que “sem nome, o objeto torna-se uma presença absurda, opaca, em que a percepção esbarra: sem nome, o objeto é impenetrável, inabordável, clara e insuportavelmente exterior ao sujeito”. Eis aí a diferença com o “não objeto”: sua opacidade é justamente o que o nomeia. Ainda citando Gullar, ele não é uma “apresentação” (isto é um...), mas uma “presentação” (isto é).
Escrevo essas linhas acima e penso em nós e tudo que se passou no Brasil e no mundo neste ano. As delações da Odebrecht colocam, na véspera do fim do ano, a camada final de perplexidade nas pessoas. Ao mesmo tempo que os fatos são “inabordáveis” em sua amplitude nefasta, eles são “Isto”. Os que têm respostas e teorias sobre o que ocorrerá com o país após essa mistura de justicialismos, sangue nos olhos, vinganças, delações, prisões, processos, desesperos, manobras e pressões econômicas, não redimem a perplexidade com o futuro. Perplexos estamos por não entender o que vem. Como se preparar para o que não se sabe? O que vem não se apresenta, porém se “presenta”. Essa massa de tristezas e impasses sobre a posteridade se precipita como um hiperobjeto, grande demais para desviarmos o olhar, porém com uma escala que nossos sentidos não conseguem decifrar. A perplexidade é irresistível em seu charme áspero, em seu medo grudento do que não sabemos. Se numa hora dessas poetas não salvam crises em curso, perdê-los também não ajuda. Afinal, são tempos de escritas em suspense e de palavras ao vento dentro da vida veloz.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/poesia-perplexa-20643389#ixzz4WF1gT03n
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