sexta-feira, 19 de julho de 2019

Editorial - Revista Época

Um terço dos 700 mil brasileiros presos cumpre pena por tráfico de drogas. É um contingente que cresce em ritmo exponencial. A causa disso não está no aperfeiçoamento da competência policial e jurídica do país. Encontra-se, mais uma vez, na capacidade estrutural da sociedade brasileira de maximizar desigualdades.

Em tese, a legislação estabelece, desde 2006, que o usuário de drogas não deve ser punido com a cadeia — apenas com sanções alternativas, como a prestação de serviços à comunidade ou a participação em cursos educativos. Na prática, por falta de critérios objetivos na distinção entre usuário e traficante, que fica a cargo de policiais, promotores e juízes, grande parcela da população carcerária brasileira enquadrada como traficante é, na realidade, formada por consumidores de drogas ou microtraficantes, geralmente pobres.
O Brasil precisa reconhecer o fracasso da política de “guerra às drogas” — como batizada pelo presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan na década de 80 —, com foco na repressão e prisão. Em 40 anos, apesar dos bilhões gastos no combate ao tráfico de drogas, o consumo só aumentou.
Parte considerável do mundo já o fez. Em 30 dos 50 estados americanos, por meio de suas leis locais, o porte de drogas para uso recreativo ou medicinal foi descriminalizado. Portugal mudou sua política em 2001. Legalizou todas as drogas para consumo próprio, adotou parâmetros claros para distinguir usuário de traficante e deu ênfase ao tratamento de saúde dos dependentes. De lá para cá, obteve redução do número de mortes por uso de drogas. Em 2018, o Canadá seguiu o mesmo caminho. O Uruguai adotou a política mais radical do mundo. Legalizou não só o consumo, mas também o cultivo caseiro da maconha, e permitiu o comércio em redes de farmácias.

O Supremo Tribunal Federal analisará no mês que vem a constitucionalidade do artigo da lei de combate às drogas que impede a prisão de usuários. O histórico recente da mais alta Corte de Justiça mostra que ela tem adotado, em questões sociocomportamentais — como a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo ou do aborto de fetos anencéfalos —, posturas avançadas, à frente dos responsáveis pela elaboração das leis. A declaração da inconstitucionalidade da criminalização dos usuários de drogas, embora histórica, significará apenas um primeiro passo para a atualização da política brasileira para o setor.
A atual lei de drogas é injusta, pungente e ineficaz. A pressão para insistir no fracasso tem origem ampla e variada. A explosão no número das prisões por tráfico não o reduziu nem fez o consumo de entorpecentes cair. Ao contrário, ao prender pessoas sem ligação com o crime organizado em prisões controladas por organizações criminosas, alimenta-se uma engrenagem viciosa.
A par da questão legal e carcerária, é preciso investir tempo e dinheiro na abordagem pela ótica da saúde pública. Pesquisas recentes apontam que o usuário de maconha corre mais riscos de desenvolver doenças mentais, mais riscos de abusar de álcool e de drogas pesadas, mais riscos de sofrer acidentes de automóvel. Tais conclusões demonstram que o tema não é fácil, mas deixam claro que a questão é de saúde pública, não de polícia.
27 de maio de 2019 

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