segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Crônicas do Dia - Dez milhões de Zumbis

Quando um dependente para de tomar a droga, cada músculo, cada nervo, cada articulação doem. Insuportavelmente.

03/11/2017 

Nelson Motta, O Globo

Viver nos Estados Unidos dói. Até Trump está sentindo e, como não pode prender todo mundo, decretou estado de emergência de saúde pública para enfrentar a “crise dos opiáceos” que assola o país, com mais de seis milhões de dependentes de analgésicos tarja preta à base de ópio.

São drogas muito potentes, ótimas contra a dor, mas, se usadas abusivamente, exigem doses cada vez mais fortes até o usuário se tornar dependente. Substituída pelos opiáceos, a hipófise para de produzir endorfina, o hormônio analgésico natural que nos permite viver sem dor.

É cruel. Como o corpo não produz mais endorfina, quando um dependente para de tomar a droga, cada músculo, cada nervo, cada articulação doem. Insuportavelmente. E só o que pode tirar a dor é... um analgésico, justamente a origem do problema. Não há o que fazer, a não ser gritar, chorar e aguentar o tranco, até a vontade passar, ou voltar à droga e começar tudo de novo. E morrer.

Os efeitos colaterais são dramáticos: como os analgésicos e as receitas médicas fajutas, mesmo em um país de fiscalização rigorosa, foram se tornando cada vez mais caros, mui
tos dependentes passaram a consumir a heroína vendida mais barato nas ruas, derivada do ópio que provoca efeitos — e consequências — semelhantes. Hoje, quatro milhões de americanos são dependentes de heroína.

Balanço macabro: 65 mil mortes por overdose no ano passado. Vítimas mais ilustres de opiáceos: Michael Jackson e Prince, que não compravam as drogas, contratavam os médicos que as prescreviam e aplicavam.

Parece uma metáfora dos Estados Unidos de hoje, com dez milhões de zumbis (um Portugal, uma Cuba) não em busca de prazeres fugazes na noite, como os consumidores de metanfetamina e outras drogas sintéticas, mas apenas para não sentir dor e dormir.

Enquanto isso, mais de 20 estados liberaram o consumo medicinal da maconha, por seus efeitos calmantes e analgésicos, sem problemas na criminalidade ou na saúde pública. Não, a maconha não é a porta de entrada para drogas mais pesadas: a maioria dos dependentes de analgésicos e de heroína entra pela porta do álcool e da cocaína.

Nelson Mota é Jornalista

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