segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Artigo de Opinião - Consciência Negra e Religiosidade - Nei Lopes

Na década de 1880, o filósofo francês Louis Bergson elaborava e difundia o conceito de “força vital”, impulso criador que dá forma à vida no universo e consubstancia a evolução.


Quando Bergson elaborou essa teoria, o continente africano, depois de criar civilizações admiráveis em impérios como Gana, Mali, Songai etc., vivia tempos ruins. As potências europeias completavam sua obra de expropriação das riquezas locais e, sobretudo, de colonização do espírito e do saber africanos. Não obstante, o elã vital continuava pulsando no corpo e na mente de cada um dos sobreviventes da hecatombe instaurada com o tráfico negreiro, principal fator de empoderamento da Europa a partir do século XVII.

Mas a África sabia que o universo, como a Ciência depois confirmou, é resultado do constante movimento de forças que interagem por atração e repulsão, num processo dialético no qual todos os seres, animados e inanimados, naturais e espirituais, humanos e divinos, se inter-relacionam. E esta cosmovisão é hoje atestada por estudiosos insuspeitos, como boa parte dos autores da “História Geral da África”, publicada no Brasil em 2010.

Nessa obra, especialmente no artigo “Religião e evolução social” (volume 8), um teólogo cristão e dois historiadores, respectivamente T. Tshibangu, A. Ajayi e L. Sanneh, estabelecem que, na África contemporânea, a presença da religião tradicional vai muito além dos 20% das estatísticas oficiais; segundo eles, para grande número de cristãos e muçulmanos, os valores morais continuam a emanar, com maior ênfase, da antiga cosmologia, muito mais que das novas crenças. Essa presença se manifesta no respeito aos ancestrais, sempre lembrados e homenageados, pela crença na existência de forças boas e más e na possibilidade de acesso às divindades para potencializá-las ou neutralizá-las, quando necessário.

E dizem mais os autores citados: que, de modo geral, enquanto africanos formados à maneira ocidental desprezavam a religiosidade tradicional sem sequer conhecê-la, nas Américas, principalmente em Cuba, Haiti e Brasil, muitas pessoas com formação universitária, pelas razões explicadas, têm optado pela religiosidade tradicional africana, em detrimento do cristianismo e do islamismo, por exemplo.

Passados sete anos do importante evento editorial que foi a publicação em língua portuguesa da portentosa “História Geral da África”, passamos por mais uma celebração da Semana da Consciência Negra, que ocorre num delicado momento para a sociedade brasileira, permeado de ações que apontam para um grave retrocesso nas conquistas sociais garantidas gradativamente com a Constituição de 1998. Entre elas, figura a consagração do Estado brasileiro como uma entidade laica.

Lembramos que o processo que levou à partilha da África entre as potências europeias no fim do século XIX começou exatamente pela colonização do pensamento. Junto com os primeiros exploradores chegaram lá os missionários cristãos. Que continuaram a chegar com os escravocratas industriais, aos quais abençoaram e dos quais até se tornaram sócios. E que, sempre entendendo que suas concepções religiosas eram as únicas admissíveis, porque supostamente superiores, sacramentaram a exploração colonizadora e subdesenvolvimentista.

Assim, neste momento, cabe-nos esclarecer que a religiosidade de origem africana continua sendo um grande instrumental de resistência. E para entendê-la como tal, basta reinterpretar alguns conceitos, para, em vez de “espiritismo” ou “baixo espiritismo”, “curandeirismo” etc., mostrar o conjunto das práticas religiosas africanas nas Américas como um todo importante, de base filosófica bem assentada, e fontes inesgotáveis de paz, saúde, estabilidade e desenvolvimento. E, se ainda restar dúvida, vale a pena buscar saber por que a Unesco concedeu à tradição de Ifá, prática filosófica e religiosa nascida no oeste africano, entre os sábios iorubas da atual Nigéria, antes do século VII a. C., o status de “patrimônio imaterial” do povo ioruba e de seus inúmeros descendentes religiosos, nas Américas e em todo o mundo atual.

Nei Lopes é compositor e escritor

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