quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Um pouco de Lima Barreto e o Rio de Janeiro

TEXTOS DE CYRO DE MATTOS E LIMA BARRETO

O mulato Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1881. Viera ao mundo numa data aziaga para os espíritos supersticiosos, uma sexta-feira, dia de Nossa Senhora dos Mártires. E o que se chama destino trama contra ele cedo, a começar pela perda da mãe, seis anos depois de ter nascido. Parte do espírito rebelde e a cor de mulato têm raízes na figura do pai, João Henriques, um simples tipógrafo, filho de uma antiga escrava com um madeireiro português. O pai não lhe reconhece a paternidade.


A cor de mulato instala-se na alma como algo que fortemente atormenta, fator negativo que, estimulado pelo meio social, vai acompanhá-lo até o fim da vida, causando obstáculos. Gera dramas ligados a uma sociedade opressiva de que ele pretende vingar-se.

A imagem reinante do Brasil literário em fins do século dezenove e início do vinte era a de uma fragilidade no estado de espírito de nossos escritores. Nossa literatura possuía um corpo eclético formado pelo cruzamento e entrecruzamento de várias correntes estéticas, tendências ou estilos. Vivia-se no Rio com o sonho da França. E a Literatura, forma ampla de conhecimento da vida, era concebida por alguns como o sorriso da sociedade. Ninguém podia ser chamado de culto se não falasse nos heróis gregos e no cerco de Tróia. Como parte do contexto que primava pelo elogio à cultura de fora, com os valores formais da arte tradicional sem conteúdo nacional, aparece uma figura peculiar de escritor, a do boêmio, tipo pitoresco que se dava ao prazer de contar anedotas, fazer trocadilhos, nas portas de café e confeitarias.
A sedução de Paris, as agremiações literárias, o hábito dos saraus artísticos, a mania de conferências e o uso das letras na escrita sonora, em seu poder verbal pobre de significado e percepção do drama humano, que teve em Coelho Neto um expoente, testemunham um Brasil Literário vivendo um clima de ócio cultural e inutilidade criativa.

O criador de Policarpo Quaresma emerge dessa ambiência cultural moldada em atitudes importadas da Europa, reclamava o Brasil dentro do Brasil, querendo ter o direito de se fazer ouvir aos que não cuidavam de se interessar pelas coisas verdadeiras de nossa realidade. Munido de um estilo liberto do complexo colonial, brasileiro na maneira de ver, sentir e narrar as coisas nossas tomadas emprestadas ao cotidiano, Lima Barreto vai buscar suas personagens nos subúrbios do Rio de Janeiro, lá onde gravitam funcionários públicos, pequenos negociantes, médicos com pequena clínica, tenentes de diferentes milícias e seresteiros.

Magistral caricaturista, memorialista dos bons, Lima Barreto é o escritor brasileiro que mais olhou a si mesmo na arte de escrever. Refletiu-se tanto em várias de suas personagens que se transformou forçosamente numa personagem, convertendo o seu “alter ego” em solidão, solidariedade e humor, transpostos de modo pungente em suas criações. Em Recordações do escrivão Isaías Caminha aborda a vida de um rapazinho do interior, tentando se situar como gente no meio social que lhe é hostil. Em Isaías Caminha há situações que ofendem com os preconceitos de cor e classe, da mesma maneira que ocorreu com o escritor em seu calvário. Numa época que vinha há pouco tempo da Abolição, sem que os sonhos dos negros fossem realizados, permanecendo na sociedade fortes marcas do preconceito racial, Isaías Caminha trará na pele o estigma da cor de mulato, causa do fracasso para adaptar-se e vencer no meio social.

Lima Barreto é um dos grandes romancistas da cidade do Rio de Janeiro, ao lado dos precursores Manuel Antônio de Almeida e Machado de Assis, possuindo a cidade no último o ponto literário mais elevado. No fim da vida passava por decepções e desapontamentos constantes, doía saber que não tinha a estima dos contemporâneos. Não parecia um ser humano, mas uma coisa qualquer, algo ambulante com a sensação de que falhara como escritor e na ascensão social. Não conseguira o canudo doutoral nem ascendera na burocracia. Carregava ainda o fardo de que falhara sob o ponto de vista sentimental. Passara a idade de ter o amor, fugira dele para não se envolver com outro sofrimento e não fosse prejudicado na sua missão de glória. Vivera sem o amor de uma mulher, amante ou esposa, sem o amor de mãe, falecida quando tinha seis anos. A vida passava assim para ele com os dias de um calendário triste. As sombras do destino cercavam-no por todos os lados, dizendo-lhe que era um excluído e sem amor vivera.

O criador de grandes personagens, o amanuense Isaias Caminha, o cético Gonzaga de Sá, o major Policarpo Quaresma, a pobre e rejeitada Clara dos Anjos, vai se agarrar à literatura no fim da vida com todas as forças que pudesse reunir e ao álcool que lhe acarretaria a morte.

Precursor dos temas alinhados na Semana da Arte Moderna de 22 em São Paulo, Lima Barreto deixou um legado que explora a vida em sua problemática social. Faturou seu modelo literário como testemunho de prospecção social no magma nacional, que seria retomado mais tarde no romance regionalista nordestino de 30.

Solitário, sem o reconhecimento literário que merecia ter em sua época, faleceu aos 41 anos de idade.




A QUESTÃO DOS TELEFONES
Crônica de Lima Barreto publicada em 1921

Andam sempre os jornais com uma birra, uma briga por causa do serviço telefônico desta cidade. Implicam sempre com a Light, mas creio que esta poderosa companhia é simplesmente pseudônimo de uma outra que tem um nome alemão.
Das muitas inutilidades que, para mim, está cheia esta vida, o telefone é uma delas. Passam-se anos e anos que não ponho um fone ao ouvido; e, de resto quando me atrevo a servir-me de um desses aparelhos, desisto logo. Entre as razões está a que não compreendo absolutamente a numeração das moças do telefone. Se digo seis qualquer coisa, a telefonista imediatamente me corrige: meia dúzia qualquer coisa. Não quero expor a minha sabedoria em elementos de aritmética; mas meia-dúzia é uma coisa, pois nunca vi, dizer meia dúzia vinte e sete e sim seiscentos e vinte e sete.
Esta é uma das minhas quizílias com o telefone. Uma outra é a tal história: “está em ligação”; e há mais.
De forma que muito me surpreende esse interesse dos jornais por esse negócio de telefones.
Observei, porém, que as moças gostam muito de falar no aparelho.
Não se entra numa casa de negócio de qualquer ordem que não se encontre uma dama a falar ao fone:

– Minha senhora, faz favor?
– Sete meia dúzia três, Vila.
– ?
– Sim, minha senhora.

Durante cinco minutos a dama troca com a invisível Alice frases ternas e dá risadinhas. Perguntei a um negociante da minha amizade:

– Que querem essas moças tanto com o telefone?
– Não sei. Há dias que é um nunca acabar... Formam uma fileira que nem em bilheteria de teatro em dia de espetáculo... Na semana passada, quase perdi um negócio urgente e do meu interesse, porque tive de esperar que mais de vinte “freguesas” dessas, dessem o seu recadinho ao aparelho... Levaram, todas, cerca de meia hora ou mais.
– Então é por isso que os jornais tanto nos atazanam com essa questão do telefone, de Líght? Servem as senhoras ...
– Qual o que! fez o negociante.
– Então, porque é?
– A questão é o preço do aluguel dos aparelhos e essas meninas são freguesas de graça que, às vezes até, nada compram na casa.

Fica, para mim, ainda insolúvel essa questão de telefone.



Augusto Malta, bonde no Largo da Carioca, 1904



Augusto Malta, Estação das Barcas (existente até hoje na Praça Quinze), 1920

Augusto Malta, Rua da Ajuda (que ligava o Largo da Ajuda, atual Cinelândia, à Rua São José, margeando o Morro do Castelo, no que é hoje trecho da Av. Rio Branco), 1903





Marc Ferrez, Revolta da Armada, 1893 - A Revolta serve de pano de fundo para a terceira parte de Triste fim de Policarpo Quaresma. No seu capítulo 2 escreve o autor: "Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da cidade... Quando se anunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do Passeio Público se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo em que era do tom apreciá-las no velho jardim de Dom Luís de Vasconcelos, vendo o astro solitário pratear a água e encher o céu. Alugavam-se binóculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de teatro: “Queimou Santa Cruz! Agora é o ‘Aquidabã’! Lá vai!” E dessa maneira a revolta ia, familiarmente, entrando nos hábitos e nos costumes da cidade."



http://literaturaeriodejaneiro.blogspot.com.br/2008/05/lima-barreto.html






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