Em livro, ela reflete sobre relação do escritor com a cidade a partir de crônicas e diários
RIO - “O Rio de Janeiro das crônicas de Lima Barreto é a cidade dos contrastes, das revoltas, das ruínas sob o vento do progresso”, escreve a crítica literária Beatriz Resende, “mas é também a expressão de uma paixão tão forte que a outras, mais humanas, não deixa espaço”. Essa relação ambígua do escritor carioca com sua cidade natal é o pano de fundo do livro “Lima Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos” (Ed. Autêntica), no qual Beatriz analisa as crônicas e os diários íntimos do autor. O livro será lançado hoje, às 19h, na Travessa do Leblon, em debate com o crítico Renato Cordeiro Gomes.
Por muito tempo, as crônicas e os diários ficaram em segundo plano em relação a seus romances, como “Recordações do escrivão Isaías Caminha” (1909) e “Triste fim de Policarpo Quaresma” (1911). Mas foi neles que Beatriz buscou os registros fragmentados do amor de Lima pelo Rio, como nos comentários sobre alguns de seus lugares preferidos, do subúrbio de Todos os Santos à Rua do Ouvidor e à praia do Leme. Nelas encontrou também a denúncia vigorosa dos preconceitos e segregações da Belle Époque carioca. Em uma crônica sobre o governo de Carlos Sampaio, que entre 1920 e 1922 promoveu intervenções como a demolição do Morro do Castelo e a construção da Avenida Beira-Mar, Lima escreve: “Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-lo em duas cidades: uma será a europeia e a outra, indígena”.
‘Ele não era um marginal, mas estava à margem da sociedade. Isso dava a ele uma grande liberdade. Nas crônicas, ele fala o tempo todo da discriminação ostensiva contra negros e mulatos, mas também dos operários e das mulheres’
Crítica literária
— O olhar de Lima Barreto sobre o Rio é sempre político. Ele já falava da “cidade partida”, registrando as diferenças entre subúrbio, Centro e Botafogo. Foi o primeiro cronista da linha férrea, gostava de perambular e atravessava a cidade, gastando sapato. Por isso, as grandes reformas da época aparecem em seus romances e crônicas não só pelo lado urbanístico, mas pelo impacto no cotidiano da cidade — diz Beatriz, professora da UFRJ.
Versão ampliada da tese de doutorado da autora, esgotada há anos, o livro se beneficia da atenção despertada pelos lados cronista e memorialista de Lima Barreto nos últimos tempos. Em 2004, foram lançados os dois volumes de “Toda crônica” (2004), compilação dos artigos de imprensa do escritor organizada pela própria Beatriz e por Rachel Valença. Em 2010, foi publicada uma edição conjunta de “Diário do hospício”, com as anotações de Lima sobre seu período de internação no hospício da Praia Vermelha entre 1919 e 1920, e “Cemitério dos vivos”, romance inacabado do autor sobre essa experiência.
Para Beatriz, Lima Barreto retoma a tradição da crônica em tom coloquial, fundada por Machado de Assis. Preterido pela elite literária de seu tempo, ele se sente injustiçado, por um lado, mas também “completamente livre e feliz, podendo falar sem rebuços sobre tudo que julgar contra os interesses do país”, escreve. Assim, usa as crônicas para expressar seu olhar sobre os excluídos da sociedade brasileira da época, como os negros, as mulheres e os anarquistas: “O governo só protege aos que não precisam: aos pequenos, aos fracos, aos oprimidos, ele oprime mais”:
— Ele não era um marginal, mas estava à margem da sociedade, da grande imprensa e das grandes editoras. Isso dava a ele uma grande liberdade. Nas crônicas, ele fala o tempo todo da discriminação ostensiva contra negros e mulatos, mas também dos operários e das mulheres.
NO HOSPÍCIO, A SALVAÇÃO PELA ESCRITA
Esse olhar sobre os excluídos ganha contornos radicais quando Lima é internado no Hospício Nacional de Alienados, no Natal de 1919, depois de uma crise de alcoolismo. Nos três meses que passa na instituição, encontra bêbados, doentes, maltrapilhos e outros marginalizados pela cidade que se quer moderna e renovada. Reage por meio da escrita: ainda internado, chega a anunciar em entrevista que está coletando histórias “interessantíssimas” para um livro que narraria “as cenas mais jocosas e as mais dolorosas que se passam dentro dessas paredes inexpugnáveis”. O romance planejado, “Cemitério dos vivos”, jamais foi concluído, mas a experiência ficou registrada em “Diário do hospício”.
— Lendo o diário, fica evidente a habilidade de cronista de Lima Barreto. Depois de uns dias no hospício, quando passa a bebedeira, ele começa a narrar a situação, a fazer um trabalho de campo sobre a estrutura do hospício, seus dirigentes, médicos e pacientes. É a salvação pela escrita — diz Beatriz.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/livros/critica-beatriz-resende-analisa-olhar-de-lima-barreto-sobre-rio-19363172#ixzz4VUCcQP5p
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