domingo, 25 de setembro de 2016

Resenhando - Feridas abertas



Filme sobre escravização de crianças negras nos anos 1930 remete à permanência do racismo no Brasil
Eduardo Seabra


Quando apresentaram pela primeira vez para Belisário Franca a proposta de contar o caso de exploração infantil ocorrido há quase um século na Fazenda Santa Albertina, a ideia era produzir um episódio para uma série de TV. Mas ao conversar pela primeira vez com o historiador Sidney Aguilar Filho, principal pesquisador do assunto, o diretor teve a certeza de que estava diante de algo mais forte e complexo. “Ali, naquele encontro, percebi que tinha uma história importante a ser contada, que se tratava de um longa-metragem, e sugeri a realização de um filme para o Sidney, que concordou”, conta Belisário. Depois de três anos de produção, ele faz chegar aos cinemas o documentário Menino 23.

O episódio, desconhecido até recentemente, ocorreu no Brasil dos anos 1930, quando 50 meninos negros foram retirados de um orfanato no Rio de Janeiro e levados para o interior de São Paulo, onde passaram a ser submetidos a trabalho escravo numa fazenda cujos proprietários eram simpatizantes do nazismo. Com base em imagens da época e apoio na opinião de especialistas, o filme relaciona a apreensão forçada dos órfãos às crenças de eugenia e “purificação” racial vigentes no início do século XX. Com idades entre 9 e 12 anos, os meninos eram obrigados a trabalhar sem remuneração, vigiados por capatazes e cachorros, recebiam castigos corporais e eram identificados por números. O então proprietário, Oswaldo Rocha Miranda, assim como dois de seus irmãos, eram membros da cúpula da Ação Integralista Brasileira, movimento nacionalista com forte inspiração nos fascismos europeus. Outro irmão, Sérgio, dono da fazenda vizinha, Cruzeiro do Sul, era adepto assumido do nazismo: o emblema da suástica era gravado em tijolos, marcado no gado e usado até na bandeira do time de futebol da fazenda.

Mas a maior força do filme é apresentar a trajetória de vida de três daquelas crianças, duas delas sobreviventes na época das filmagens: Aloysio Silva, morto em 2015, cujo número “23” dá título ao documentário, e Argemiro dos Santos. A história de José Alves de Almeida, conhecido como “Dois”, já falecido, é narrada por sua família. Uma das cenas mostra Aloysio revisitando o orfanato Romão de Mattos Duarte pela primeira vez desde criança, quando foi retirado de lá. O diretor conta que aquela gravação foi uma das mais impactantes: “Ver Seu Aloysio andando de novo naqueles corredores e se lembrando de uma infância roubada foi duro. Mas foi catártico, ao mesmo tempo. Acredito que ele pôde deixar sair muito da mágoa e da dor que guardou durante décadas”, conta Belisário Franca. Enquanto Aloysio cultivou seu ódio por toda a vida, Argemiro fez questão de apagar o passado – mantido por décadas em segredo de sua própria mulher e de seu filho. O caso de “Dois” foi diferente: “adotado” pela família dos fazendeiros, viu-se poupado da escravidão e teve outras oportunidades na vida, sem nunca deixar de ser tratado, no entanto, como um empregado. Corroído pela culpa e pela ambiguidade de sua condição, sucumbiu ao alcoolismo e morreu cedo.

Para o espectador fica evidente que o filme também diz respeito ao Brasil de hoje. “O país tem uma característica grave que é a negação da sua face violenta, que se manifesta de várias maneiras. Falar dessas histórias ocorridas na década de 1930 pode contribuir para entendermos quem somos nós. Afinal, somos também um Brasil historicamente racista e exploratório, e ter consciência disto é fundamental para uma mudança de comportamento e mentalidade na sociedade”, comenta o diretor.

O historiador Sidney Aguilar Filho tomou conhecimento do caso quando uma de suas alunas de ensino fundamental, parente de proprietários posteriores da fazenda, levou para a escola um tijolo marcado com a suástica. Ele iniciou uma pesquisa sobre o assunto que resultou em sua tese de doutorado, defendida em 2011 na Unicamp. O trabalho serviu de base para o roteiro de Menino 23. “O filme não é sobre o passado. Desde o final da escravidão, sobretudo ao longo das décadas de 1920 a 1940, estabeleceu-se o mito da democracia racial no Brasil, que só começou a ser desconstruído a partir da década de 1980. É somente nas duas últimas décadas que se começa a tomar alguma medida política de Estado para combater a questão. No meu modo de entender, muito tardiamente”, comenta o historiador. Ele se reconhece sensibilizado pela pesquisa: “Não dá para encarar dores e tragédias como as que eu encarei na vida deles e sair assobiando. A gente se mobiliza. Desde então passei a me engajar para formar profissionais na área de combate à violência na infância e a orientar pesquisas na área de exploração no trabalho. Sem dúvida, existia um historiador antes dessa pesquisa e um historiador depois dela. Não estamos isentos das tristezas, tragédias e alegrias que pesquisamos”.

Antes da estreia oficial, o filme vem sendo exibido e debatido em escolas, universidades e organizações da sociedade civil, em especial do movimento negro. Segundo a produtora de impacto do longa, Rossana Giesteira, o filme tem “uma vocação para provocar as pessoas” por abordar duas temáticas atuais: a exploração do trabalho infantil e a negação do racismo estrutural. “Decidimos realizar uma campanha de acesso e difusão do longa para exibi-lo antes ao público que é ativista das causas que ele levanta. Nosso objetivo é criar empatia e ressonância com esses ativistas para que eles ajudem a repassar a mensagem do filme após sua estreia no circuito comercial”, explica a produtora.

A pré-estreia nacional do filme Menino 23 acontece na 26ª edição do Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema, que ocorre entre 16 e 22 de junho em Fortaleza. A estreia no circuito comercial está marcada para o dia 7 de julho.

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