domingo, 25 de setembro de 2016

Crônicas do Dia - Cuidado, meu bem, há perigo na esquina ... - Zélia Duncan

Na vida, a ficção é implacável e não valoriza um final feliz


Acordei no meio de um pensamento, como se nem tivesse fechado os olhos durante a noite. Meio oca. Pensava nos que amo, no que me é caro e me mantém com vontade de levantar, correr, cantar, escrever. Acordei meio passada, com ressaca de realidade, sem lembrar do sonho que eu quis tanto ter. “Não temos tempo de temer a morte.” Mas e quando ela nos ataca pelas costas e ocupa cada minuto dos nossos pensamentos por alguns dias? Não tenho mesmo tempo nem condições de cuidar de todos e tudo que amo o tempo todo. Vontade de dar uma ordem: tratem de ficar estupidamente atentos, vocês que eu amo, tratem de não morrer de jeito nenhum! Muito menos cedo demais, distraídos demais, felizes demais.

Ninguém devia morrer quando está tão feliz. Ninguém devia morrer no auge do vigor da vida, sendo fonte de tantas coisas boas e de que precisamos tanto pra amortecer essas horas todas inexplicáveis, onde somos tão exigidos, onde tudo quer nos empurrar para um individualismo desenfreado e competitivo.

Domingos Montagner era palhaço de circo, sua carreira nasceu num picadeiro literal. Um cara que tinha um rosto já tão familiar. Uma beleza essencialmente masculina, tinha uma doçura bem resolvida, uma energia de quem trabalhou pra ter o que tinha e, principalmente, pra ser o que era. Um exemplo bom de se olhar. E vamos combinar que não estamos podendo dispensar nenhum homem assim, que nos conforte com sua arte e seu caráter. É uma tristeza que dá choque, que nos faz por um momento descrentes, de tão cientes do perigo. Faz lembrar que somos este instante e que o próximo já não nos pertence, muito menos o anterior.

Trabalhar num circo é acreditar no recomeço, é ter esperança na estrada, é se candidatar a bilheteiro, palhaço e equilibrista. No meu imaginário não havia nada, mas havia o circo. E o palhaço, seu símbolo máximo, com toda a melancolia que significa e carrega, vive para caçar sorrisos e nunca desistir da missão. Mesmo quando todos já desistiram dessa alegria naïf e inútil, ele se veste, se maquia, se adia, mas vai, vai atentar o riso. E tem sempre alguém pra encontrar. Alguém que não se leve tão a sério, alguém que se largue e se jogue nessa dança de achar graça. Alguma alma simples, que se aprofunde naquele instante sem pensar. Alguma criança salva-vidas.

Nós amávamos Domingos Montagner. Descobrimos o quanto, há uma semana. Acordamos sem ele, acordamos pensando na morte, na finitude, na rapidez dos dias, nas besteiras inúteis, que nos tomam um tempo tão precioso. É assim quando perdemos pra sempre alguém. Pra sempre é tempo demais… Começamos então a listar tudo o que temos perdido. Viramos um inventário de desimportâncias, que dura o tempo do nosso luto. Caímos num abismo, numa queda livre de memórias e desejos por realizar. Sabemos que tudo vai acabar, mas não podemos ter essa noção tão perto de nós, seria insuportável, é insuportável. Hoje acordei assim, olhando pra tudo, a partir de cada finitude. Meus cachorros, o café na xícara, a notícia do jornal, o gato do vizinho, o dia que vai virar noite. Pra que mesmo? Dá vontade só de abraçar meu grande amor, disparar telefonemas, mensagens de carinho, renovação de votos de amizade e risadas. Lembrar que sinto saudade de quem tá longe. Saber quando vamos nos ver. Dizer que me importo, que tudo me importa.

Numa certa altura da novela, Santo sofre um atentado e desaparece no rio. A vida não imitou a arte, não, porque a arte devolveu o personagem para os nossos braços. Na vida, a ficção é implacável e não necessariamente valoriza um final feliz. A realidade tragou nosso homem bonito, nosso personagem cheio de bons valores, nosso ator de talento inestimável. O pai de três meninos, o marido, o colega superquerido de tanta gente. Viver é melhor que sonhar? Hoje, ninguém vai me convencer disso, e eu sei que o amor é uma coisa boa. “Mas também sei que qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa!”

Sabe-se muito sobre águas, correntezas, rios. Porém o mais certo, o mais presente nas nossas existências, e principalmente na natureza, é o mistério. Ninguém sabia que o velho Chico era assim, possessivo. Se negou a se despedir de Domingos. Egoísta, quis Domingos só pra ele. Deixou a despedida pra nós. A gente que se vire. Podíamos nos vingar, chorando todos juntos às suas margens, até salgá-lo de vez! Mas o que nos resta mesmo é viver a falta até o fundo, num redemoinho constante de perguntas, cujas respostas um dia vão nos levar daqui também. E, entre uma dúvida e outra, uma tristeza e outra, fazer de tudo pelos momentos mais felizes, a vida mais justa, um mundo mais bonito e gentil. Um mundo mais Domingos, que tal?



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