terça-feira, 28 de junho de 2016

Crônicas do Dia - Volta ao lar - Cora Rónai

O Islã não tem exclusividade no discurso contra os homossexuais


Homofobia, religião, terrorismo, armas de guerra. Poucas tragédias reuniram ingredientes tão explosivos quanto o massacre de Orlando; poucas deram tanta oportunidade às pessoas para descarregar nas redes sociais os seus medos, as suas angústias e, sobretudo, os seus preconceitos. No dia seguinte à carnificina, compartilhei um excelente artigo de Raul Juste Lores, publicado na “Folha de S.Paulo”, em que ele alertava para o fato de que não é só no Islã, e entre terroristas, que se devem procurar os homófobos, mas também entre membros bem estabelecidos do establishment ocidental; a quantidade de comentários sem noção foi tão grande que tirei o artigo do ar. Estava passando o fim de semana com os netos que quase nunca vejo, e não podia me dar ao luxo de ficar a tarde toda no computador, capinando a área. Ao acessar o Facebook mais tarde, observei, apenas na minha linha do tempo, mais três amigos, donos de páginas movimentadas, comentando o grau de ferocidade geral. Um deles, como eu, também preferiu apagar o que havia postado: bater palma para maluco dançar não tem nenhuma graça.

Nunca vamos saber o que levou o assassino de Orlando a acabar com a vida de tanta gente inocente, mas não é difícil apontar, acima de tudo, uma mente quebrada, mergulhada no ódio e na religião. O Islã não tem exclusividade no discurso contra os homossexuais; a maioria das religiões se iguala nessa patologia social. É verdade que poucas têm servido com tal intensidade à barbárie, mas a homofobia explícita de muitos dos nossos políticos e pastores é igualmente obscurantista. Estamos em 2016, ou, segundo o calendário judaico, 5776; para os chineses estamos em 4714, o antigo calendário coreano marca 4349 e, na Índia, o mais antigo de uns 30 diferentes calendários já está em 5118; a revolução agrícola do neolítico aconteceu há mais de 12 mil anos. Quantos milhares de anos ainda vão se passar até nos aceitarmos como somos, e deixarmos para trás os preconceitos?

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Não é possível colar uma etiqueta única no monstro de Orlando — e uso essa palavra, “monstro”, muito consciente do quão confortável ela é, ao dissociar o assassino de nós outros, humanos. Ele foi ao mesmo tempo homófobo e terrorista, e lamentavelmente conseguiu se armar num grau que não deveria ser permitido a ninguém, ainda mais alguém que, como ele, já estivera sob a mira do FBI. A facilidade com que se adquirem armas pesadas nos Estados Unidos é absurda, assim como é absurda a ausência de qualquer mecanismo que acenda uma luz vermelha no sistema quando um possível suspeito vai às compras.

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De novo escrevo a bordo de um avião. Passei três dias em São Francisco, a cidade americana do meu coração, e de lá segui para Austin, no Texas, onde fica o meu coração americano: lá moram meu filho, minha nora e os meus três netos mais velhos. Acompanhei a vida deles por outros três dias, e agora volto para casa, cheia de saudade.

Assim que cheguei, fui a uma apresentação da academia de balé da Alicia, a mais nova, no auditório de uma das inúmeras escolas públicas da cidade. Um auditório grande, eficiente, com excelentes instalações de som e de luz, banheiros impecáveis. Entre a área em que vive a minha família e o auditório, passamos por várias outras escolas, cada qual com instalações melhores.

Joe, o do meio, toca contrabaixo na orquestra da escola, que é ótima. Na semana que vem vai fazer concurso para uma outra, que reúne a melhor garotada das muitas escolas de Austin; depois, vai se candidatar à all state, que junta meninos e meninas de todo o estado do Texas.

Emilia, a mais velha, está sondando universidades no país inteiro para decidir onde vai estudar. Deve fazer em breve uma prova parecida com o nosso Enem. Pretende tirar a melhor nota possível para conseguir bolsa para a universidade que quiser.

O meu lado de avó fica cheio de orgulho dos netos, e de alegria ao ver que eles têm tantas possibilidades. O meu lado de brasileira pensa nas nossas escolas dilapidadas e universidades sucateadas, e morre de depressão.

Obviamente a realidade do sistema escolar americano não é bem a das escolas dos subúrbios de Austin. Há uma crise séria no sistema, sobretudo nas cidades, onde há escolas tão abandonadas quanto as nossas. Nelas estudam os jovens negros e hispânicos, justamente aqueles que mais precisariam de atenção para romper um padrão de segregação escandaloso. Esse assunto está em pauta no país há anos, e está longe de ter solução.

Mas a parte do sistema que funciona tem um grau de excelência com que sequer sonhamos no Brasil — ela é a única saída possível para recuperar o todo.

Sem educação não há educação.

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Fiquei comovida quando vi fotos do Cristo iluminado com as cores da França e da Bélgica depois dos atentados de Paris e de Bruxelas circulando pelo mundo todo. Senti falta de fotos do Cristo iluminado com as cores do arco-íris ou, no mínimo, com as cores dos Estados Unidos.

Faltou luz desta vez? Ou faltou amor?



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/volta-ao-lar-19513105#ixzz4CvgD36Fw

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