terça-feira, 28 de junho de 2016

Crônicas do Dia - 'Bye bye, ue' - Arnaldo Bloch

A ameaça mais nefasta não é econômica. É de que o tal efeito cascata desague num mar de fascismo, sob um céu europeu pleno de nuvens nacionalistas de ultradireita


O título não sugere que a União Europeia vai acabar. Ou sugere? Não reparem. Escrevo às duas da manhã de quinta para sexta, no calor da vitória do Brexit no plebiscito pela saída ou não do Reino Unido do bloco europeu. Estou influenciado pelas palavras do líder do partido Ukip, de extrema-direita, Nigel Farage, que urrou para as câmeras, ao melhor estilo alemão anos 1930/40:

“É a vitória das pessoas decentes”.

A frase deixa com a pecha de “indecentes” todos os que votaram pela permanência. Um recado indireto aos ingleses “impuros”, aos descendentes de imigrantes, a hordas de trabalhistas, aos que acreditam em integração, em conjugação das diferenças.

Claro que isso não está no centro das preocupações. Nos próximos dias, os debates, os noticiários, as pessoas em geral, estarão mais preocupadas com o impacto econômico. Com os efeitos no PIB inglês, na corrente de comércio europeia e global; com as reações das bolsas e as cotações das moedas, a começar pelas relações entre libra, dólar e euro; com um mundo que, desse ponto de vista, teme-se que jamais será o mesmo.

Quando se fala em efeito cascata, sugerindo que outros membros da comunidade podem vir a assumir posturas independentistas num cenário de euroceticismo crescente (e a ideia do fim da União Europeia aparece no horizonte), são, também, os vetores econômico e social que logo se invocam.

Mas a grande avalanche, a ameaça mais nefasta (que não está dissociada do cenário financeiro, mas não depende só dele), não é econômica. É a de que o tal efeito cascata desague num mar de fascismo, sob um céu europeu pleno de nuvens nacionalistas de ultradireita, xenofobia, antissemitismo, islamofobia, homofobia — e suas alianças com o asséptico nazismo contemporâneo que avança nos parlamentos e nos quadros do estado. E, circunstancialmente, certos setores de uma esquerda que vê no terror sem ideologia um afã libertário.

Leitores podem dizer que se trata, aqui, da visão sombria de um judeu. Talvez tenham razão. Um judeu que vê como irmãos todos aqueles que são perseguidos, sejam eles refugiados da Síria, sejam muçulmanos mais partidários da acepção da palavra Islã que aponta para sua raiz (slm de salam, paz) do que para seu significado de superfície (submissão).

Um judeu que chora por todo avanço de pensamentos monolíticos, inclusive quando vêm do seio de sua própria comunidade, contrariando os ideais profundos de liberdade e igualdade que fundamentam o simbólico elo do povo de Moisés. Quem pertence a um povo perseguido, quem viveu uma diáspora, como a judaica ou a africana, não tem direito de pressentir uma escalada de intolerância sem estremecer.

O aspecto econômico, por mais agudo que sejam as consequências, pode vir a ser diluído a médio e longo prazos num continente que, apesar da crise que vive e da falência de parte de seus modelos de justiça social outrora vitoriosos, ainda tem, nos países do topo da pirâmide (erguida na base de seus impérios coloniais), riqueza suficiente para se reequilibrar, seja qual for o futuro do bloco remanescente ou do agora independente Reino Unido, que vai lutar com fibra para atravessar o novo período, negociar futuras condições e estabelecer suas estratégias.

O que não se dilui tão cedo, uma vez suas bases firmemente fundamentadas, é uma Europa na qual volte a frutificar a ideia de que as identidades nacionais se sobrepõem a valores humanistas, e que a luta por uma imaginária “soberania étnica e cultural” num mundo cada vez mais cosmopolita e, podem torcer o nariz à vontade, mul-ti-cul-tu-ral, justifica a volta a uma barbárie isolacionista que, cedo ou tarde, se converte em expansionismo e, via de regra, em guerra.

De resto, se a gente prestar atenção, a cultura insular do “Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte” não é bem afeita à integração. Até no terreno do anedótico, qualquer turista é capaz de constatar que, ali, tudo é, ou procura ser, diferente, das mãos trocadas nas ruas às bitolas dos trens; do banco do motorista à direita a uma comida praticamente incomunicável com as demais cozinhas europeias; do humor negro; dos táxis bojudos; da pose blasé que procura se opor aos “bicos” franceses, que eles chamam de sapos por incluírem em sua culinária mil vezes mais rica as repugnantes coxas de rã.

Traços que toda pessoa de espírito aberto aprendeu a admirar justamente por seu contorno de forte personalidade e seu impulso de independência a uma “cara” europeia que eventualmente se quer impor. Muita gente que hoje ama Londres (que nada tem a ver com as cidades frias, vazias de gente e plenas de carneiros praianos do País de Gales, parceiro da Inglaterra no voto pela saída da UE) a ama por causa de seu fascinante cosmopolitismo e da variedade de atmosferas de seus diversos bairros; de sua modernidade arquitetônica; de seus museus e galerias. Resta saber se o novo Reino Unido “livre” preservará essa acepção mais nobre da liberdade, que conquistou em seu próprio seio.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/bye-bye-ue-19576726#ixzz4CuoBhDe9

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