terça-feira, 12 de julho de 2016

Resenhando - Carioquice Desvairada

RIO — Foram muitas as viagens de Mário de Andrade ao Rio. Em 1916, veio fazer o treinamento militar, em um bairro da Zona Oeste. Voltou à cidade para preparar um artigo sobre a arquitetura religiosa carioca, publicado na “Revista do Brasil’’, em 1920. Como poeta modernista, em 1921, veio ler poemas que iriam compor “Pauliceia desvairada’’, do ano seguinte. A viagem de 1923 inspirou os versos de “Carnaval carioca”. Nos anos 1930, houve as viagens de trabalho, como a de 1936, quando recebeu do ministro Capanema a incumbência de elaborar o projeto do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional.


O Rio foi o lugar escolhido para recomeçar a vida, depois da malograda experiência na chefia do Departamento de Cultura. Mário morou na cidade de meados de 1938 até março de 1941. Este período é o assunto do livro de Moacir Werneck de Castro, “Mário de Andrade — Exílio no Rio’’, lançado agora em nova edição. Depois do retorno a São Paulo, Mário voltou ao Rio outras vezes. Em 1942, para fazer a palestra comemorativa dos 20 anos da Semana de Arte Moderna, O Movimento Modernista.

“Mário de Andrade — Exílio no Rio’’, publicado pela primeira vez em 1989, tem importância sob vários aspectos. Contém mais de 20 cartas endereçadas por Mário ao autor, e, além disso, traz o depoimento de quem conviveu com o poeta naqueles anos difíceis. O plano inicial era a publicação das cartas. Com o estímulo de Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza, foi elaborada a apresentação/depoimento. Moacir adverte que não teve a pretensão de fazer um ensaio sobre Mário de Andrade. O livro também não é uma biografia completa, pois se ocupa de um período bem delimitado da vida. Naturalmente, para cercar o assunto, são fornecidas informações sobre o que sucedeu antes e depois do “exílio no Rio”. De todo modo, o livro foi a primeira abordagem biográfica de Mário de Andrade e sobram motivos para ser leitura obrigatória dos estudiosos. Os dados mais relevantes do período anterior relacionam-se, em grande parte, com a atuação do escritor na direção do Departamento de Cultura de São Paulo, de 1935 a 1937. Não poderia ser diferente: o afastamento forçado do cargo, por motivos políticos, motivou a ida para o Rio. Mário viveu esta experiência como um duro golpe no valor da sua vocação intelectual. As iniciativas à frente do Departamento ainda precisam ser devidamente avaliadas, especialmente a noção de expansão cultural, que norteou todo o projeto. Muito ganharia o debate atual sobre as relações entre o poder público e a cultura se isso pudesse acontecer.

Moacir avança algumas hipóteses para entender o estado depressivo do poeta no período do Rio. O cenário político era dos piores, com a ditadura interna e o risco da vitória da Alemanha nazista. O afastamento do ambiente familiar, especialmente da mãe, era difícil de suportar. Havia ainda a frustração com o relativo insucesso dos projetos cariocas. Moacir foi o primeiro a abordar a homossexualidade de Mário, mas introduz o assunto de maneira quase envergonhada. Vê a orientação sexual como um problema, e, mais ainda, isolado de um contexto mais amplo de conflitos do poeta. O recurso ao álcool como um paliativo também é mencionado. Pode-se acrescentar que a instabilidade emocional de Mário vinha de muito antes, tendo se agravado naquele momento.

INTERPRETAÇÕES DISCUTÍVEIS SOBRE POLÍTICA

“Mário de Andrade — Exílio no Rio’’ traz informações muito importantes, mas também propõe interpretações bastante discutíveis de alguns pontos da trajetória do escritor. Moacir é incapaz de perceber que a radicalização política das ideias de Mário, naquele momento, representou uma ruptura com tudo o que ele pensava anteriormente, sobretudo com o projeto na chefia do Departamento. Só o desespero explica o final autopunitivo da conferência O Movimento Modernista, de 1942, e o elogio à censura soviética na apresentação de um livro sobre Shostakovich. Além disso, o livro superestima o papel dos moços na vida de Mário nessa época. Mário tinha uma vocação pedagógica incontida, não sendo esse aspecto o mais interessante de sua personalidade; vivia ensinando. Dificilmente teria alguma coisa a aprender com os jovens católicos de Minas, com os universitários iniciantes de Clima e, tampouco, com o grupo do Rio, de que fazia parte o próprio Moacir, Carlos Lacerda, Lúcio Rangel e Murilo Miranda.

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Em um livro da importância de “Mário de Andrade — Exílio no Rio’’, alguns erros de detalhe poderiam ter sido corrigidos, fixando a data da publicação de “Macunaíma’’ em 1928, e dando a localização do Engenho Bom Jardim, que Mário visitou, no Rio Grande do Norte.

A reedição desse livro vem trazer, de novo, informações valiosas para os leitores de Mário de Andrade e deve estimular a discussão sobre uma das interpretações — aquela mais frequentemente adotada — da trajetória do principal escritor modernista. É de se esperar que desperte nos editores o interesse pela reedição de outros importantes estudos, como o imprescindível “História do Modernismo brasileiro: antecedentes da Semana de Arte Moderna’’, de Mário da Silva Brito.

*Eduardo Jardim é professor aposentado do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e autor, entre outros livros, de “Eu sou trezentos — Mário de Andrade: vida e obra” (Edições de Janeiro, 2015)



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/livros/livro-esmiuca-curto-intenso-exilio-de-mario-de-andrade-no-rio-19674177#ixzz4EEfT8whj

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