terça-feira, 12 de julho de 2016

Crônicas do Dia - Mortes em preto e branco - Dorrit Harazim

Johnson atirou apenas em policiais brancos. Mas acertou sem querer na sociedade americana como um todo


Composta em 1929 por Fats Waller e imortalizada na voz e no trompete de Louis Armstrong, “Black And Blue” termina com uma pergunta em aberto:

“How would it end?/ Ain't got a friend/ My only sin is in my skin/ What did I do to be so black and blue?”

(Em tradução livre, Como isso vai acabar?/ Não tenho amigos/ Meu único pecado é minha pele/ O que fiz para ser tão negro e triste?)

Esta semana, mais uma vez, o dolorido lamento cantado em jazz teve sua resposta concreta: termina em violência. Ela apenas foi diferente das vezes anteriores na diversidade dos alvos. As mortes desse último surto de desconexão racial na sociedade americana foram em preto e branco. “Nosso pior pesadelo se tornou realidade”, constatou o prefeito negro de Dallas, quando a cidade texana amanheceu banhada em horror e tragédia. Cinco policiais (brancos) tinham sido mortos por um franco-atirador (negro), e cinco estavam feridos, além de dois civis.

Era o saldo de uma marcha de protesto que começara ordeira no centro da cidade, contra dois assassinatos de negros cometidos em menos de 24 horas por policiais da Louisiana e do Minnesota. Os dois crimes haviam sido captados em vídeo — um deles transmitido ao vivo pelo Facebook — e gerado estupor nacional. Eram horrendos mesmo para o padrão de viés racial da polícia dos Estados Unidos, que já matou 123 negros só em 2016 (numero tímido se comparado ao de mortes de negros pela polícia do Rio, segundo dados recém-divulgados pela Human Rights Watch).

A tragédia em Dallas é particularmente desconcertante porque, pouco antes de começar a fuzilaria, a força policial que monitorava a marcha posara para selfies com os manifestantes e trocara apertos de mão. Chegou a pairar um raro ar de respeito mútuo. Segundo o diário “Dallas Morning News”, quando tiros não se sabia vindos de onde nem de quantas armas transformaram a centro da marcha numa ratoeira, os policiais protegeram exemplarmente a marcha, orientando-a em rotas de fuga.

Excetuando-se a paisagem do reluzente centro de Dallas, em nada semelhante aos morros cariocas, as cenas de guerra urbana lembraram os confrontos com o tráfico no Rio. Pelo tamanho do estrago, as autoridades de início suspeitaram que fossem vários os franco-atiradores em ação concertada.

Diante de cinco de seus companheiros de farda mortos, as forças da ordem foram procurar os autores do atentado nas fileiras dos que haviam protestado contra os abusos policiais. E erraram feio. Revertendo à contaminada lógica da polarização racial, o Departamento de Polícia de Dallas disparou a mensagem “Este é um dos suspeitos. Ajude-nos a pegá-lo” no Twitter, e anexou a foto de um negro em roupa de camuflagem com fuzil a tiracolo.

Não foi preciso ajuda externa. O próprio Mark Hughes, irmão do organizador da marcha, tratou de se apresentar às autoridades ao se saber suspeito de ser o matador de policiais. Corria alto risco, pois poderia ter levado um tiro antes de conseguir ter a identidade livre de suspeitas. Com nome e foto associados para sempre a um atentado nas redes sociais, talvez seja um perigo do qual não se livrará jamais de todo.

O rifle de Hughes tinha documentação e porte em ordem com as leis texanas e direito garantido pela famosa Segunda Emenda da Constituição americana. A arma nem carregada estava. Mas Mark Hughes é negro. E não deve ser membro da National Rifle Association (NRA), a principal defensora da sacrossanta Emenda. Precavido, seu irmão Cry ainda tratou de entregá-la aos policiais no meio da correria, para evitar confusão. Não adiantou.

“Estou devastado por dentro”, desabafou seu irmão Cory, “Fomos às ruas para dar voz a quem não tem e acabamos nos tornando suspeitos e vilões. Então pergunto: por quê?” Ele conhece a resposta, embutida na estrofe cantada por Satchmo — meu único pecado é a minha pele.

Até a noite de sexta feira, as investigações apontavam o autor do crime como um “lobo solitário”. Sem cúmplices, sem ficha criminal, sem vínculos com qualquer grupo terrorista. Identificado como Micah Xavier Johnson, 25 anos, veterano do Exército com um ano de serviço no Afeganistão, ele teria elaborado e executado sozinho o refinado plano de ataque que desnorteou durante horas toda uma força policial bem aparelhada.

Enquanto estava emboscado, e antes de ser morto por um robô-bomba, o matador teria dito que agiu movido pelo ódio. Ódio aos brancos. Ódio aos policiais. Em sua casa foi encontrado robusto arsenal de armas e material para fabricar bombas.

Johnson atirou apenas em policiais brancos. Mas acertou sem querer na sociedade americana como um todo. Às vésperas das convenções partidárias que vão referendar as candidaturas dos candidatos à sucessão presidencial, dá calafrios imaginar uma eventual vitória do incendiário Donald Trump.

Também há pouca garantia de que a democrata Hillary Clinton consiga enfrentar o processo de reconciliação nacional. O verão americano de 2016 promete ser quente. O presidente negro Barack Obama começa a fazer falta desde já.

Dorrit Harazim é jornalista

Diferentemente do que dizia a primeira versão deste texto, Louis Armstrong tocava trompete, e não saxofone. A atual versão está corrigida.



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