sábado, 2 de julho de 2016

Debret, pensador do Brasil

Uma nova edição de “Viagem pitoresca e histórica ao Brasil” revela faceta sociológica do francês, que refletiu sobre a nação mestiça que nascia nos trópicos


RUAN DE SOUSA GABRIEL

Em 1831, depois de 15 anos no Brasil, o pintor francês Jean-Baptiste Debret (1768-1848) voltou a Paris levando na bagagem as aquarelas nas quais retratara a nação mestiça que se formava nos trópicos. Debret fora retratista oficial da corte portuguesa exilada no Rio de Janeiro e, nas horas mortas, pintava as cenas e os personagens que encontrava pela rua. Cada aquarela continha, também, comentários sobre os costumes brasileiros e informações sobre a cena retratada. As aquarelas e os textos foram reunidos em três tomos publicados entre 1834 e 1839 com o título Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. Quase ninguém comprou. A razão do fracasso foi justamente o teor sociológico da obra. Debret não pintara o Brasil exótico que os europeus estavam acostumados a encontrar nos relatos de aventureiros. O que Debret oferecia era o retrato de um país que posava de corte europeia nos trópicos, mas era sustentado pelo suor de escravos africanos e habitado por indígenas orgulhosos de suas culturas.



O livro também não causou boa impressão por aqui. Debret ofereceu o segundo tomo de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil à Biblioteca Imperial, no Rio de Janeiro, mas o modo como o pintor retratara a sina dos escravos incomodou a comissão de admissão, que rejeitou a obra. Duas imagens incomodaram os bibliotecários. Mercado da Rua do Valongo mostra negros esqueléticos no “bazar onde se vendem homens” (palavras de Debret). E Feitores castigando negros retrata um escravo de mãos amarradas, posição fetal, que apanha de um capataz enquanto, ao fundo, outro é chicoteado. “As duas tiras de couro da ponta do chicote arrancam, no primeiro golpe, a epiderme, tornando o castigo mais doloroso”, escreveu Debret. Os bibliotecários não só recusaram a obra, como também desqualificaram o pintor: se os escravos de Debret pareciam esqueléticos era porque ele não levava jeito com o pincel. O Brasil se recusava a olhar para si mesmo.


Viagem pitoresca e histórica ao Brasil só foi publicado no país em 1940 e voltou brevemente às livrarias nos anos 1980. A obra permaneceu fora de catálogo até o último dia 18, quando foi lançada uma reedição capitaneada pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Os três tomos – Casta selvagem, Atividade do colono brasileiro e História política e religiosa, estado das belas-artes – foram reunidos num único volume, organizado pelo filósofo francês Jacques Leenhardt, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. A obra mostra um Debret político, um intérprete arguto das contradições brasileiras que não se limitou a pintar as aquarelas que ilustram nossos livros escolares. “Eu me propus a seguir, nesta obra, um plano ditado pela lógica: acompanhar a ‘marcha progressiva da civilização no Brasil’”, escreveu o pintor francês.


Debret era jacobino, acompanhara de perto a Revolução Francesa e convertera-se em partidário de Napoleão Bonaparte – o general empregava pintores neoclássicos. Em 1816, após a queda de Napoleão, aportou no Rio de Janeiro como membro da Missão Artística Francesa importada por Dom João VI para fundar a Academia Imperial de Belas-Artes. Debret não se contentou com a rotina de retratista da família real e se perdeu pelas ruas do Rio de Janeiro a pintar indígenas, escravos e colonos indolentes. “Debret encarou o Brasil como um sociólogo”, diz Leenhardt. “Ele sabia que assistia a uma sociedade em transformação e seu objetivo era retratar a construção da nação brasileira.” Debret recusava as concepções europeias sobre os indígenas. O índio não era nem o “bom selvagem” idealizado por Jean-Jacques Rousseau nem o nativo furioso devorador de portugueses. O francês destacou a “corajosa e tinhosa” resistência dos indígenas à brutalidade do colonizador. “Debret pinta os camacãs-mongoiós como uma aristocracia vencida, mas ainda orgulhosa das liberdades que lhe foram arrancadas pelos colonos portugueses”, afirma Leenhardt.

Família de um chefe Camacã se preparando para uma fsta (Foto: Jean-Baptiste Debret / Acervo da Fundação Biblioteca Nacional/Divisão de Iconografia)
Família de um chefe camacã se preparando para uma festa. Debret valorizou a cultura indígena em suas aquarelas (Foto: Jean-Baptiste Debret/Acervo da Fundação Biblioteca Nacional/Divisão de Iconografia)
Foi nos corpos escravizados que Debret viu a pedra fundamental da nação brasileira. Os africanos eram a sustentação econômica da Colônia e a eles é dedicado o segundo tomo, Atividade do colono brasileiro. Apesar do título, Debret reconhecia que, na verdade, os colonos (brasileiros ou portugueses) pouco trabalhavam. Ativos eram os escravos. “Tudo assente, pois, neste país, no escravo negro; na roça, ele rega com seu suor as plantações do agricultor; na cidade, comerciante fá-lo carregar pesados fardos”, escreveu. “Debret se espanta que o negro seja considerado inferior quando é ele quem trabalha no Brasil”, diz Leenhardt. O elogio ao trabalho e a condenação da preguiça portuguesa são doce herança jacobina. O pintor fora professor da Escola Politécnica de Paris e acreditava que o avanço civilizatório se dá por meio do trabalho e do desenvolvimento técnico.


O que unia povos tão diferentes, porém, era a violência. Para Debret, o Brasil só abandonaria o atraso colonial e se transformaria numa nação quando todos os seus povos estivessem unidos não pela força do arbítrio, mas pelo império da lei. Um regime constitucional, imaginava o pintor, reduziria os abismos que separavam as diferentes camadas da população. O francês retratou essas convicções políticas no Teatro Real por ocasião da coroação de Dom Pedro I, em 1822. Debret pintou uma alegoria da Constituição, rodeada de representantes de todos os estratos sociais – com exceção do clero e da nobreza (coincidentemente, as classes que haviam sido alijadas do poder pela Revolução Francesa). Afirmava, assim, que a coesão social dependia das leis, e não do imperador, a quem cabia cumpri-las.

A descoberta do Debret sociólogo, no século XX, se deu graças ao encontro do Brasil com suas raízes mestiças, a partir do movimento iniciado pelos modernistas de 1922. Na década seguinte, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre publicou Casa-grande & senzala e conferiu um papel irrefutável à cultura africana na formação da identidade nacional. Mas foi o aristocrata paulista Paulo Prado quem impediu que Debret continuasse a ser apenas uma gravura num livro de história. Em 1940, ele encomendou uma tradução de Viagem pitoresca e histórica ao Brasil ao antropólogo Sérgio Milliet.



Debret chegou ao Brasil separado da mulher e desolado pela morte do filho. A dura realidade da Colônia o deprimiu. Ele pintou a melancolia tropical num autorretrato em que aparece cabisbaixo, bebendo sozinho numa taverna. Debret retornou a Paris, mas os trópicos continuaram tristes, atormentados por uma velha questão: qual caminho tomar rumo à modernidade? É uma questão pitoresca e histórica que já aparecia nas aquarelas do francês. A arte e as reflexões do pintor sociólogo ainda propiciam questionamentos sobre que tipo de nação queremos ser.

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