terça-feira, 7 de junho de 2016

Crônicas do Dia - Carta para X. - Maria Ribeiro

Somos todas Genis, e teu nome vai voltar pra você ainda mais bonito


Cara X.,


Estranho não poder dizer seu nome, tão bonito. De uma música que eu adoro, do Edu Lobo e do Chico. Não sei se você conhece. Se é o seu tipo de música (como se a gente só tivesse um tipo de música e não fosse mudando de acordo com o tempo...). Ainda mais você, que só tem dezesseis. Se bem que não é “só”.


Dezesseis pode ser muito. Pra mim foi.


Na tua idade eu gostava de Bob Marley e tinha falta de ar. Achava que era asma, mas, como também doía o peito, vi que não era só isso. Nenhum remédio dava jeito, e piorava muito nos finais de semana. Meu pediatra, em nosso derradeiro encontro, receitou Valium — um calmante um tanto forte e hoje praticamente “de época” —, mas, como meu irmão foi totalmente contra, acabei voltando pra um Tylenol, que dava sono.


Sem química e sem ar, passei a frequentar um grupo de jovens de uma igreja ali na Gávea. Pra ver se passava a tristeza. A gente rezava cantando e dançando, tipo um baile funk só que com Jesus. Devia ter feito análise, mas meu pai não deixou. A irmã dele se matou com trinta e poucos anos, então ele não podia ouvir as expressões “angústia” e “terapia”.


Mas hoje eu faço, duas vezes por semana. Você também tá fazendo, não é? A minha é freudiana (eu acho). Não pergunto pra minha analista essa coisa de linha porque ela vai falar que isso não importa. Mas eu acho que importa, sim. Porque o Freud escreveu muito sobre sexualidade, e a minha não era lá das mais plenas: muita aula de religião nunca dá certo... Você tá na escola? Em que ano? Tem uma matéria de que goste mais?


Demorei pra querer crescer. Pra achar bom ser mulher. Porque na minha casa — de classe média alta e supostamente feliz — não era. Meu pai, a quem eu amava profundamente, mandava. Minha mãe — que hoje é casada com uma cara incrível, preciso dizer — obedecia, e todo mundo era meio propriedade dele, numa violência naturalizada e inconsciente. Homem grita, homem manda, homem decide.


Você tem um filho, não é? Eu também. Dois, na verdade. Tenho dois filhos homens. E um neto, Caetano. Sim, meu filho Bento, de seis anos, tem um boneco a quem chama de filho, de quem cuida diariamente, o que inacreditavelmente ainda gera surpresa tanto na escola — ainda omissa nas questões de gênero — como na rua, pelo simples fato dele ser menino.


Temos uma responsabilidade muito grande, cara X. Porque a gente vive neste país onde o Bolsonaro diz o que bem entende sobre estupro e tortura e não vai preso. Onde o secretário executivo de governo do Rio relativiza o episódio de agressão no qual esteve envolvido sete anos atrás perguntando “quem nunca perdeu o controle numa discussão?”.


Onde Alexandre Frota, que já disse na televisão, entre risos, ter estuprado uma mãe de santo — não vou classificá-lo como ator pornô porque respeito a categoria —, é recebido com honrarias pelo ministro da Educação, Mendonça Filho. Onde o ministério do presidente interino Michel Temer — aquele que mantém sua jovem mulher no lar, e que, assim como faziam os coronéis, deu seu nome ao filho macho — é todo composto por homens, e digo “homens” com profundo incômodo, como se o referido elenco ferisse a palavra.


Não tá fácil. E você só tem dezesseis. Mas olha: depois dos vinte melhora consideravelmente. Arrisco dizer que aos trinta fica quase bom. E até lá tem muita coisa que ajuda, se você quiser depois te faço uma lista de livros e filmes que fazem a maior companhia, “Thelma e Louise” (Ridley Scott) pode ser o primeiro.


Neste fim de semana, aliás, vi um filme — tudo bem que cheio de clichês — chamado “A garota do livro”. Você costuma ir ao cinema? A direção, da americana Marya Cohn, é óbvia e no limite do cafona, mas a trajetória da protagonista é bonita e afirmativa, uma mulher que precisa rever um trauma pra se recolocar no mundo. É um filme sobre abuso e invisibilidade, feminista como deve ser este ano de 2016.


Porque, a despeito da nebulosidade — até pra você — que ainda cerca o teu estupro, e da espetacularização da notícia (por favor, não dê mais entrevistas), estamos diante de uma antiga tragédia brasileira: a ausência de um programa de planejamento familiar, de uma escola forte e uma política que discuta o acesso ao aborto para meninas de baixa renda, já que as ricas o fazem com segurança e clandestinamente. Ser mãe aos treze já te torna vítima, cara X. A proteção que agora o Estado diz te oferecer está mais do que atrasada. Mas não foi pra isso que eu quis te escrever, e sim por causa da música do Chico. Não vai ficar assim, companheira. Somos todas Genis, e teu nome vai voltar pra você ainda mais bonito.


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PS: Escrevi esta carta ouvindo o disco da Elza Soares, “A mulher do fim do mundo”. “Cadê meu celular?/ Eu vou ligar prum oito zero/ Vou entregar teu nome/ E explicar meu endereço/ Aqui você não entra mais.” O álbum é todo uma obra-prima, e devia ser ouvido em salas de aula.




Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/carta-para-x-19411859#ixzz4Ax9X1mVc 


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