quinta-feira, 26 de maio de 2016

Artigo de Opinião - Livros que devoram - Gabriel Perissé

Devorei, em cerca de uma hora, Os livros que devoraram meu pai (Editora Leya, 2011), do escritor português Afonso Cruz. O narrador, ainda menino, não sabia que seu pai, leitor compulsivo, havia sumido no meio de uma leitura. Na família, durante muito tempo, dizia-se que o pai morrera por causa de um enfarte. Mas enfarte é que não foi. E nem morte foi.


Foi de fato uma outra história. A verdadeira história é que um livro devorou o pai, inteirinho, da cabeça aos pés. Não sobrou nada para contar história. O pai entrou de tal modo no relato que acabou sendo engolido.

O menino estava ainda na barriga da mãe quando o pai, de tão concentrado, "adentrou um livro". Estava "enfiado na literatura". A explicação é a seguinte:

Podemos adentrar um livro [...]. É um processo tão simples quanto nos debruçarmos em uma varanda, só que muito menos perigoso, apesar de ser uma queda de vários andares. Sim, porque a leitura das coisas pode ter muitos andares.

O nome do pai engolido é Vivaldo Bonfim. Bom sobrenome para quem gosta de ler tudo até a última página. O fim de todo bom leitor é ir até o âmago da história. Ler até fartar-se. E deixar que o livro devorador, por sua vez, saboreie o leitor voraz.


Filho de leitor...

Filho de leitor... leitor será. Aos doze anos, o menino descobre a verdadeira história. O pai entrou no labirinto da leitura e agora ninguém mais poderá interrompê-lo. Nós somos feitos de histórias.

O filho, Elias Bonfim, é levado pela avó ao sótão onde o pai guardava a biblioteca. Toda biblioteca é um caminho sem fim e sem volta. Todas as histórias têm um final feliz, se este final levar a outras tantas histórias, onde o tempo não tem pressa. A última página pode ser a primeira de outra história, que abre a porta para outras histórias, que levam a outros personagens, que vão pulando de livro em livro.

Além da leitura das entrelinhas existe a leitura dos entrelivros. Elias descobre que os personagens estão mais vivos do que nunca. Todos os livros estão vivos. Morto é quem não lê. Ou melhor, descobrimos que todos nós somos personagens de histórias que conversam entre si. Há os personagens de papel e letras, e há os personagens de carne e osso.

Elias lia com interesse, um a um, os livros deixados pelo pai, aprendendo a perder-se na leitura. Essa era a única forma legítima e legível de encontrar o pai. Esta é a única forma de nos encontrarmos na leitura. Ler perdidamente. Sair de nós mesmos. Dialogar com Borges, Calvino, Orwell, Gogol, Dante, Homero, Dostoiévski, Stevenson, mas também, de modo especial, com as suas criaturas.

Ler é um crime sem castigo. A recompensa e a liberdade estão garantidas. É esta uma convicção que precisaria ser fomentada em todas as escolas. Em todos os cursos e em todas as disciplinas. Todos os professores deveriam se perder dentro dos livros, para encontrarem novas saídas didáticas.

Assim como os personagens de Ray Bradbury (em Fahrenheit 451) devoravam livros com a memória, também nós podemos nos identificar com várias histórias, e, mais ainda, fazer com que as histórias se entrelacem: existem muitas formas de entrar e sair nesses universos paralelos.


A aventura da leitura

Ler é perigoso. Porque nos torna conscientes de nossa própria história.

Há uma surpresa final no livro. Uma surpresa que nos devora e nos faz pensar em novas histórias dentro de outras histórias. O protagonista, vivendo ele mesmo seus próprios dramas, nos faz ver que toda leitura conduz ao autoconhecimento. Nós somos aquilo que lemos e, ao ler, lemos aquilo que somos.

O bom perigo da leitura consiste nisso: na consciência mais clara de que estamos conjugando o verbo "escreviver".

No labirinto interno de cada um, vemos circularem os personagens que estão nos livros. Dentro de mim estão o sr. Hyde e Raskolnikov, estão Edward Prendick e Montag, estão Beatriz e Ulisses, e a lista não tem fim, e ganha nomes brasileiros: Iracema, Macabéa, Brás Cubas, Capitu, Policarpo Quaresma, Macunaíma, Ana Terra, Fabiano, Paulo Honório, Augusto Matraga, Riobaldo...

Há quem faça anotações nas margens do livro. Grandes leitores adotaram esse costume. Trata-se de escrever ao lado do escritor, ou simultaneamente, interferindo, acrescentando, contradizendo, colaborando.

O pai de Elias anotava nas partes brancas das páginas comentários e indicações que lhe ocorriam enquanto circulava dentro das histórias. E Elias, escrevendo essa narrativa sobre os livros que devoravam seu pai (é claro que o autor Afonso Cruz foi devorado pelo seu personagem), está produzindo suas próprias histórias a partir de outras mil.

A pergunta que persegue Elias é uma só. E mostra que incentivar alguém a ler (em especial um adolescente) não condiz com a artificial obrigação ou com insistentes cobranças. A pergunta é: "Conseguirei fazer como meu pai, e entrar no mundo dos livros?".

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