sexta-feira, 1 de abril de 2016

Crônicas do Dia - Fuga para Cuba - Arnaldo Bloch

Fuga para Cuba

Quem diria que, em plena pós-globalização, iríamos olhar para Havana numa semana especialmente horrível e nos sentir num Éden em meio ao inferno


A atualidade é sempre surpreendente, nem que seja por contraste. Não que as notícias sejam novas a cada vez. Ao contrário, a maior parte, pela própria natureza do processo civilizacional, é alguma velharia que se repete em ciclos, com nova roupagem, ou com o mesmo e surrado jeans. Quando ocorre algo de fato extraordinário — o voto feminino, o casamento gay, a liberação da maconha, o presidente americano negro, o operário presidente no Brasil — aí sim nota-se, e anota-se, imediatamente, que algo saiu da curva.

O que não é nenhuma garantia de que as coisas, no futuro próximo, não voltem à curva e fiquem girando em círculos até que haja nova oportunidade. Pois é da essência humana, e de sua pluralidade, frequentemente destruir aquilo que se levou um tempão para construir, sejam as evoluções de costumes e os avanços civis, sejam monumentos, estátuas ou cidades inteiras.

Notícias boas, como se sabe, são as mais raras em ocorrência e também, aparentemente, as que menos interessam à maioria dos leitores. E quando a coisa anda braba mesmo, tudo converge para o ruim.

É o que ocorre numa semana (Santa) em que, não bastasse a batida punk dos “escândalos em série”, da crise entre poderes, da guerra de brasileiros&brasileiras contra brasileiras&brasileiros — vemos, mais uma vez, o Estado islâmico flagelar o coração da Europa, indefesa, impotente.

Nesse cenário desolador sem perspectiva imediata (nem a médio prazo) de melhora, eis que surge, em Cuba, um ponto de fuga, a tal surpresa, para as mentes (pelo menos aquelas cansadas de guerra, e exceto as que passam os dias clicando no botão de atualizar e postar, sedentas de mais sangue).

Não que exista qualquer ilusão quanto a haver algum santo espírito abençoado sacramentando a robusta união entre os povos com a visita de Obama a Havana e seu encontro com Raúl Castro. Há várias questões espinhosas a serem resolvidas. Cuba não é livre, o congresso americano é o que é, e a normalização das relações diplomáticas e do comércio entre os dois países desagrada partidários de diferentes causas, com entraves ideológicos e afetivos.

Mas ver o presidente americano com sua família, mesmo sob chuva, passeando na calçada histórica da cidade embargada, é de embargar os olhos viciados em prantos de dor e raiva, com uma lágrima doce: a “água mais pura da fonte” a que Vitor Martins se refere em “Guarde nos olhos”, parceria com Ivan Lins em “Nos dias de hoje”, álbum que é um dos mais bonitos libelos de resistência poética aos anos de chumbo.

Pois quem diria que, em plena pós-globalização, décadas passadas da queda do muro, com o velho comandante Fidel recolhido à espera do fim, iríamos olhar para Havana numa semana especialmente horrível e captar, nas imagens (mais que nos detalhes e nas falas) um efeito hipnótico, quase um elã revolucionário après-la-lettre, e nos sentir num spa no Éden em meio ao inferno mundial. No caso, “revolucionário” seria o simples fato de, em algum lugar da teia informacional, estar ocorrendo, e sendo transmitido, um diálogo, e não uma explosão com corpos mutilados (Bruxelas) ou, para citar nosso quintal, uma batalha sem limites entre irmãos, permeada de ódio, vaidade e hipocrisia, tanto no terreno institucional quanto na esfera dos debates que ocorrem nos bares e nas redes.

As coisas andam tão indignas, as imposturas se multiplicam a uma taxa tão aviltante, e há tão pouco desejo de pacificação dos ânimos e de construção coletiva, que ver dois chefes de estados tradicionalmente adversários apertarem as mãos, elevarem os braços, sorrirem (ainda que parcialmente constrangidos), é quase como assistir ao cessar-fogo de uma grande guerra.

Com a diferença de que, fora da Ilha, onde ocorrem esses eventos tão localizados, a guerra, difusa, corre solta, sem qualquer possibilidade de diplomacia.

A vontade é de fugir para Cuba. Não esta Cuba ainda tão conflagrada e castigada por suas contradições, que rende sempre uma boa visita. Mas uma Cuba arquetípica, que, carregada de toda sua história, simboliza uma janela ainda aberta para a sensatez.

É interessante, e óbvio, ser Obama a patrocinar este momento. Há quem diga que foi um mau presidente, na gestão interna, e, tanto à direita quanto à esquerda, há os detratores das decisões que tomou na política externa. Mas, independentemente dos resultados de suas ações, é ele o único líder que, do primeiro ao último ano de seu governo, esteve sempre a sinalizar com a possibilidade de fugir ao pior.

Foi ele quem disse que Guantánamo é uma vergonha. Que investiu em saúde pública. Que atacou o lobby das armas que sangra a alma americana. Talvez a sua ida a Cuba seja como uma conclamação para que todos fujamos para “lá”: para uma Cuba que existe em todos nós, lugar onde a gente se desarma, e conversa, em paz.



Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/fuga-para-cuba-18955563#ixzz44cWpxM3s 

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