domingo, 3 de abril de 2016

Crônicas do Dia - Dois mundos - Cacá Diegues



Se não começarmos a domar nosso ódio por quem não pensa como nós, em breve estaremos nos matando em nome dos temas de nossa crise


Em qual dos dois mundos você desejaria viver hoje, no de Bruxelas ou no de Havana?

No primeiro, fanáticos suicidas matam 31 pessoas e ferem 270 outras, em nome de uma ideologia medieval que querem impor pela força ao resto do planeta. E escolhem para teatro de sua insensatez a capital política da Europa, onde, apesar de tudo, se tenta construir uma identidade a partir da diversidade natural entre os seres humanos. As explosões no aeroporto e no metrô de Bruxelas não visaram um inimigo cuja cara os assassinos já conheciam; mas anônimos que morreram em nome da propaganda da intolerância e do ódio, um sentimento tão em voga pelo mundo afora.

No outro mundo, o de Havana, os líderes de dois países inimigos há 55 anos se encontram em nome da esperança em construir convivência e colaboração na diferença. O gesto de Raúl Castro levantando o punho de Barack Obama, como no final de uma luta de boxe, é uma mensagem de paz, um recado de que a luta (a guerra) terminou. Uma imagem mais forte do que qualquer discurso que os dois poderiam ter feito diante das televisões de todo o planeta. “Vim enterrar o último vestígio da Guerra Fria nas Américas”, disse Obama, como num sonho pelo qual não esperávamos mais.

Castro e Obama não abriram mão do que são seus países. Os dois os defenderam com a veemência dos que acreditam no que estão dizendo. O que eles no fundo estavam nos afirmando, com palavras e gestos, é que duas sociedades tão distintas como a cubana e a americana, de uma distância até certo ponto inconciliável, não precisam se enfrentar em nome disso. Se as duas se relacionarem com sinceridade e tolerância, as verdades necessárias hão de se impor.

Para os assassinos de Bruxelas, essa relação é impossível. A única vitória desejada é a da morte do maior número possível de pessoas diferentes deles. O amor à sua própria morte, ao suicídio explosivo capaz de matar um maior número de gente, é resultado desse impasse impaciente — não vale a pena viver se todo mundo não for igual a mim, deve pensar cada um deles. Talvez seja esse o pior dos pecados. Muito mais diabólico do que não amar o próximo como a nós mesmos, é ser incapaz da simples convivência com o outro.

No Brasil, ainda estamos muito longe dessa intolerância assassina. Pelo menos, por enquanto. Mas se não começarmos a domar nosso ódio por quem não pensa como nós, controlar nossa inconformidade com a existência do outro, em breve estaremos nos matando em nome dos temas de nossa crise.

Entre nós, as eleições de 2014 marcaram profundamente um sentimento de ódio que não me lembro de ter sido tão forte antes. A arrogância dos vencedores e o rancor dos vencidos não foram apaziguados por nenhum gesto generoso de qualquer um dos dois lados em confronto. Ninguém se dispôs a levantar, mesmo que simbolicamente, o punho do outro.

O mundo inteiro vive hoje essa agonia de um novo parto político. Em livro recente, “Não estamos mais sozinhos no mundo”, o professor francês de Ciência Politica Bertrand Badier nos previne: “Do Sahel à Mesopotâmia, novas formas de conflito tendem a se desenvolver, a hegemonia americana vacila, o Urso russo se recolhe, os emergentes brincam de estraga-prazeres, os miseráveis fazem seu cortejo, e o planeta se asfixia na falta de atenção aos bens comuns da humanidade. E, no entanto, os esquemas, como os políticos, continuam os mesmos”.

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Há certos cinéfilos que se tornam, para o cinema, mais importantes do que cineastas, ensaístas ou críticos. José Carlos Avellar, que acaba de falecer, foi um deles. Sua importância para o cinema brasileiro não está apenas no que escreveu, no que fez ou ajudou a fazer, mas sobretudo em seu amor pelo cinema. Como André Bazin, outro cinéfilo seminal, Avellar sabia que seu papel não era o de servir numa bandeja de prata sua opinião sobre cada filme, mas iluminá-lo por dentro, com o que ele era.

Conheci-o há muitos anos, quando éramos ambos pós-adolescentes tentando inventar um cinema possível para o Brasil. Ele trabalhou na equipe de “Domingo”, o primeiro curta-metragem sonoro que realizei, na companhia de outros parceiros como Paulo Huchmacher, Affonso Beato, David Neves e Paulo Perdigão. Avellar falava pouco, mas estava sempre sorridente, como se a vida lhe fosse um prazer constante, discreto e delicado, alimentada pelo cinema que amava.

Viajando pelo mundo através dos grandes festivais, nos quais era sempre uma estrela de sabedoria cinematográfica, Avellar ajudou a divulgação de muito cineasta brasileiro e latino-americano em Berlim, Veneza, Cannes, Tóquio, Locarno, Guadalajara. Seu último posto entre nós foi à frente da programação do Instituto Moreira Salles, sempre atento, em busca do filme que tivesse pouca chance de passar pelo mercado. Para Avellar, era importante que todos vissem tudo, para entender o sentido e a grandeza do cinema.

Cacá Diegues é cineasta



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