sábado, 5 de março de 2016

Você conhece a Missão Mário de Andrade ?



Missão Mário de Andrade: uma viagem pela cultura popular inspirada nas pesquisas do escritor

Roteiro por Pernambuco e Paraíba busca danças, cantos e rituais registrados em 1938 por equipe enviada pelo autor






Em 1938, o escritor Mário de Andrade, homenageado da Flip 2015, enviou uma equipe ao Nordeste e ao Norte para registrar cantos, danças e rituais que considerava ameaçados de extinção. Quase 80 anos depois, uma viagem por cidades de Pernambuco (Recife, Arcoverde e Tacaratu) e Paraíba (João Pessoa e Pombal) na rota daquela pesquisa mostra a resistência e a transformação das culturas populares no Brasil. Elas ainda convivem com ameaças identificadas por Mário em seu tempo, como o preconceito, as intervenções do poder público e a perseguição contra religiões de origem indígena e africana. Mas sobrevivem e se reinventam graças ao trabalho de artistas, ativistas e pesquisadores.

Em 10 de março de 1938, Senhorinha Freire viu um gravador pela primeira vez. Tinha 19 anos e vivia em Tacaratu, vilarejo no sertão de Pernambuco, a mais de 400 quilômetros do Recife. Estava na casa da tia quando uns senhores engomados, com jeito de que vinham de longe, perguntaram se ela gostava de cantar. Acompanhada de primos, vizinhos e amigos, mostrou aos forasteiros canções do dia a dia de Tacaratu, como “Mandei cortar capim”, que costumavam entoar enquanto faziam farinha, e “Oh roseira” (“Em cima daquela serra/ tem três pedras de amolar/ uma é minha, outra é tua/ outra é de nós namorar”).
O gravador que registrou a voz de Senhorinha, um modelo americano Presto estalando de novo, foi enviado por Mário de Andrade. Em 1938, o escritor paulista, autor homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) este ano, estava à frente do Departamento de Cultura de São Paulo e idealizou a Missão de Pesquisas Folclóricas. De fevereiro a julho daquele ano, a Missão passou por mais de 30 cidades em Pernambuco, Paraíba, Piauí, Ceará, Maranhão e Pará. Coordenada à distância por Mário e formada pelo arquiteto Luís Saia, pelo maestro austríaco Martin Braunwieser, pelo técnico de som Benedicto Pacheco e pelo ajudante Antonio Ladeira, a caravana fez as primeiras gravações conhecidas de músicas, danças, festas populares e rituais religiosos daquelas regiões, do coco ao bumba meu boi, de aboios a modinhas, de cerimônias indígenas a cantos de terreiros.
A Missão foi a resposta de Mário a uma de suas preocupações centrais na época. Depois de longas viagens na segunda metade dos anos 1920 por Norte e Nordeste, onde pesquisou formas musicais e dramáticas, o autor de “Macunaíma” voltou angustiado com a “plena, muito rápida decadência” da cultura popular. Dizia que ela estava em xeque diante da modernização do país, simbolizada pela chegada do rádio aos lares do interior. E via como ameaça maior uma ideia de “civilização” que ganhava espaço no Brasil: “A civilização criou um preconceito de cidade moderna e progressista, de boa educação civil. E como em Paris, Nova York e São Paulo não há danças dramáticas, Recife, João Pessoa e Natal perseguem os Maracatus, Cabocolinhos e Bois, na esperança de se dizerem policiadas, bem-educadinhas e atuais. Cocos viram besteira, Candomblé é crime, Pastoril ou Boi dá em briga. Da maneira como as coisas vão indo, a sentença é de morte.”
O trajeto da Missão foi encurtado por disputas políticas que provocaram a saída de Mário do Departamento, em maio de 1938. Mesmo assim, ela deixou um legado pioneiro de registros culturais: 1.299 fonogramas com um total de 33 horas de gravação; 856 objetos, entre instrumentos musicais, trajes, estátuas e outros itens; 21 cadernetas de campo, com cerca de cem páginas cada, repletas de notas sobre música, dança, arquitetura e costumes; mais de 600 fotografias e 15 filmes. Sons e imagens que Mário temia estarem condenados ao esquecimento.

Quase 80 anos depois, uma visita a cinco cidades na rota da Missão de Pesquisas Folclóricas — Recife, Tacaratu e Arcoverde, em Pernambuco, Pombal e João Pessoa, na Paraíba — mostra que, embora a “sentença de morte” temida por Mário não tenha se concretizado, a cultura popular ainda convive com ameaças como as identificadas por ele. A intolerância com religiões de origem indígena e africana é tão presente como em 1938, quando a caravana se deparou com tambores de terreiros apreendidos em delegacias. Preconceito, descaso e intervenções do poder público prejudicam festas populares. Com a modernização do trabalho no campo, cenas comuns nos registros da Missão, como cantorias de casas de farinha e aboios de vaqueiros, são mais raras hoje.
Em meio a esse cenário, porém, muitos cantos, danças e rituais registrados naquela época sobrevivem e se transformam graças a artistas, ativistas e pesquisadores que atualizam a memória da cultura brasileira.

Aos 96 anos, Senhorinha Freire vive hoje no Recife, em um pequeno prédio no bairro de Boa Viagem cercado de arranha-céus que projetam sombras sobre a praia. Numa segunda-feira de maio, sentada numa cadeira de balanço, ela se divertiu com as lembranças do encontro com a Missão, há 77 anos. Cantou de cor duas músicas gravadas naqueles dias de 1938, “Oh roseira” e “Mandei cortar capim”, e muitas outras ao longo de uma hora de conversa, marcando o ritmo com batidas suaves do pé direito enquanto sua filha Leninha a acompanhava no violão.
Nascida em Tacaratu, em 1918, Senhorinha mudou-se pouco depois da passagem dos emissários de Mário de Andrade. Ela foi redescoberta em 2004 pelo músico e pesquisador Carlos Sandroni, professor de Etnomusicologia na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele coordenava um projeto que refez parte do trajeto da Missão para o CD duplo “Responde a roda outra vez”, com novos registros de músicas tradicionais de Pernambuco e Paraíba. Senhorinha cantou duas músicas no CD, lançado em 2006, sua primeira gravação profissional depois de 1938.

A Tacaratu que a Missão visitou, entre 8 e 14 de março de 1938, era uma vila de ruas de terra aos pés da Serra do Cruzeiro, perto da divisa com Alagoas, Sergipe e Bahia, cercada de aldeias da etnia Pankararu. Em um sertão que era território de cangaceiros (Lampião e Maria Bonita seriam mortos quatro meses depois na cidade sergipana de Poço Redondo, a 150 quilômetros dali), o caminhão da equipe chegou escoltado por soldados do governo estadual. Ali tiveram um de seus períodos mais produtivos, gravando rituais indígenas, cocos e toadas, documentando a cultura local das casas de farinha e da fabricação de redes. Senhorinha recorda a passagem da Missão por Tacaratu como uma grande festa.
— Chamei minhas primas que gostavam de cantar, veio o povo que tocava zabumba, pífano… Tacaratu era uma cidade pequena com muita festa, dança e serenata. E assim eu levei minha vida, cantando e fazendo carnaval.
Senhorinha aprendeu a cantar com o pai, que costumava sentar na calçada com a filha no colo e tocar violão. Na juventude, ela fundou um bloco de carnaval em Tacaratu, que saía aos domingos com uma marchinha de sua autoria. Apaixonada por Vicente Celestino, Orlando Silva e Ângela Maria, transmitiu o amor pela música aos sete filhos, 15 netos, 14 bisnetos e dois trinetos. Sua filha Leninha, de 66 anos, apresentava-se em bares do Recife. Outra filha, Maria Wilma, de 64 anos, é cantora. Em um CD de músicas românticas lançado este ano, gravou uma das muitas letras compostas pela mãe: "O meu amor foi embora/ nem de mim se despediu/ fez de conta que esse amor/ entre nós nunca existiu/ volta meu amor...".



Hoje com cerca de 25 mil habitantes, Tacaratu mantém o casario colonial que, em 1938, chamou atenção do arquiteto Luís Saia, fotógrafo oficial da Missão. A Igreja de Nossa Senhora da Saúde continua dominando a praça central, cujo entorno ganhou ruas asfaltadas e um punhado de bares e lojas. A cultura da fabricação de redes, registrada pela Missão em fotografias e canções como “Mandei fazer uma rede”, ainda é um orgulho local. No distrito de Caraibeiras, teares manuais semelhantes aos rabiscados por Saia em sua caderneta de campo dividem espaço com a ruidosa maquinaria das fábricas têxteis. Mas casas de farinha, como aquelas onde se cantava “Mandei cortar capim”, são raras.

No bairro do Altinho, há uma casa de farinha feita de pedra e madeira, com pilão, ralador, cocho e tipiti. Perto dela moram parentes de Senhorinha Freire, como Teresinha do Nascimento, de 76 anos. Ela lembra que, quando era criança, costumava acordar com a cantoria dos mais velhos que passavam a madrugada fazendo farinha.
— Antigamente, a casa funcionava o mês todo. Hoje só na Semana Santa, para fazer beiju. Por aqui quase não se planta mais mandioca, só capim para gado — diz Teresinha.

Nascida dois anos depois da passagem da Missão, ela não reconhece a letra de “Mandei cortar capim”. Das canções que ouvia ali na infância, lembra-se de uma em especial: “Tava na peneira/ eu tava peneirando/ eu tava no namoro/ eu tava namorando”. Esse refrão popular ficou famoso na música “Farinhada”, composição do pernambucano Zé Dantas gravada em 1955 por Ivon Cury e, em 1982, por Luiz Gonzaga e Elba Ramalho.
Gênero musical mais registrado pela Missão em Tacaratu, o coco não é tão popular hoje na cidade, segundo o diretor e proprietário da única rádio local, Esio Torres. Instalada em um cômodo na casa de Torres, a Perfil FM tem programação das 4h à meia-noite, com “sertanejo, forró pé de serra, forró estilizado, flashback nacional, MPB e brega selecionado”, enumera o diretor.
— Os ouvintes quase não pedem as músicas mais tradicionais. Mas, quando pedem, tocamos sem preconceito.

A referência atual de coco na região é a comunidade rural de Olho d’Água do Bruno, a dez quilômetros do centro de Tacaratu. Ali, em roçados de casas baixas, vive a maioria dos integrantes do grupo Coco do Tebei, que pratica uma versão particular do gênero. Em vez das tradicionais bandas com ganzá, surdo, pandeiro e triângulo, eles se apresentam com cinco casais de dançarinos e quatro cantoras, sem instrumentos, marcando o ritmo só com a pisada. O significado da palavra “tebei” é misterioso até para os integrantes, que imaginam ser relacionado ao som da pisada.
— É coisa muito antiga, vem dos nossos bisavós — diz o agricultor José Lira, de 55 anos, líder do grupo.
Naquele tempo, quando um morador de Olho d’Água do Bruno construía uma casa, chamava os vizinhos para uma festa que durava a noite toda. Enquanto os casais dançavam o tebei, iam aplainando com suas pisadas o chão de terra batida. Antonia Germana Barbosa, de 70 anos, aprendeu essa técnica com os avós, conheceu o marido em uma dessas festas, e lamenta que seus seis filhos não se interessem pela dança.
— Eles não querem saber de tebei, só de sanfona — diz Antonia.
Em 2008, o Coco do Tebei gravou o CD “Eu tiro o couro do dançador”, que trouxe reconhecimento para o grupo para além de Tacaratu. Apresentaram-se em Recife, João Pessoa e São Paulo e passaram a ser chamados para falar sobre a dança nas escolas locais. Nos últimos anos, porém, não têm feito shows. Numa noite de sexta-feira, em maio, o grupo se reuniu em clima festivo. Molharam a terra antes de dançar, para assentar a poeira, e mostraram a pisada peculiar do tebei. Nos intervalos, divertiam-se cantando repentes intrincados e clássicos da dupla sertaneja Milionário e José Rico, com brindes ao segundo, morto em março.
No fim da estada em Tacaratu, a Missão se concentrou na aldeia pankararu de Brejo dos Padres, a maior da região, gravando e filmando músicas e cerimônias. A imagem dos índios pankararus cobertos dos pés à cabeça com os trajes rituais de praiás, feitos de caroá e pano, tornou-se um dos emblemas do trabalho da Missão e das pesquisas de Mário de Andrade. Foi o primeiro registro audiovisual desse tipo de cerimônia no Brasil.

As cerimônias dos pankararus ainda acontecem regularmente nas aldeias da região, onde vivem hoje cerca de cinco mil pessoas. Numa tarde de quinta-feira em maio, um grupo de parentes e amigos se reuniu em um terreiro na aldeia Agreste, a cinco quilômetros do centro de Tacaratu, para celebrar o pagamento de uma promessa feita pelo agricultor Osvaldo Artur de Sá, de 43 anos. Ele trabalhava como porteiro em São Paulo, onde há uma comunidade pankararu com cerca de 1.500 pessoas, mas depois da morte do pai, no ano passado, decidiu retornar à terra natal. Fez uma promessa aos praiás pedindo dinheiro para voltar. Pouco depois, os patrões, antes irredutíveis, aceitaram demiti-lo pagando os encargos trabalhistas.
A cerimônia reuniu 20 praiás, que representam entidades sagradas conhecidas pelos pankararus como Encantados. A identidade dos que usam os trajes rituais é mantida em segredo. Eles dançam em rodas, tocando maracás e pífanos, enquanto os cantadores se revezam sob a sombra de uma árvore, mantendo o ritmo com melodias ligeiras e rascantes. Quando seus passos curtos levantam poeira do terreiro, os praiás parecem levitar.
— Abaixo de Deus, eu confio nesses homens. Me sinto abençoado e protegido — diz Osvaldo, que pagou a promessa oferecendo um almoço aos presentes (carneiro, arroz e pirão servidos em cumbucas de barro) e dançando com os praiás.
Depois do ritual, começa a parte festiva da cerimônia, conhecida como toré, quando todos podem entrar na roda, até visitantes. A estrutura é semelhante às descrições feitas pela Missão. “Isto realmente ainda é algo original”, escreveu Braunwieser em seu diário.
Quando o cantador Vicente de Oliveira, de 70 anos, ouve a gravação de 1938, chega a pensar que uma das vozes é de sua irmã. Depois reconhece ali uma toré antiga. Ele descreve a sensação de cantar no ritual, que naquela quinta-feira durou quatro horas, como “um choque no coração”. E diz que é impossível transmitir o significado das músicas. O que talvez explique a desorientação do maestro austríaco, encarregado de transcrever letras e partituras na Missão: “As canções vêm da boca da cantora de forma muito insegura e variável. Tive a impressão de que cantava o que queria”, anotou Braunwieser.
— Se alguém disser que consegue escrever o que o cantador canta, é mentira. É uma coisa que eles cantam pra gente no sonho — diz Vicente.
Naquela semana de maio, os pankararus estavam envolvidos em uma grande campanha de vacinação nas aldeias. Dias depois, diante de notícias sobre mudanças na política de saúde indígena em Pernambuco, cerca de 400 índios de todo o estado protestaram no Recife, bloqueando a Avenida Agamenon Magalhães, uma das principais da cidade. Cinquenta pankararus viajaram mais de 400 quilômetros para estar ali. Só liberaram a via quando conseguiram o compromisso do governo de manter os programas em curso.



Quando a Missão passou por Arcoverde, em 15 e 16 de março de 1938, a cidade pernambucana, a 250 quilômetros do Recife, ainda se chamava Barão do Rio Branco, mas a família de Severina Lopes já vivia ali. Numa área então predominantemente rural, os pesquisadores registraram cantos de vaqueiros, como aboios e toadas, e cocos, gênero pelo qual Arcoverde e a família Lopes se tornaram conhecidas.

Hoje uma cidade de 72 mil habitantes conhecida como “Portal do Sertão”, Arcoverde em quase nada lembra seu passado rural. No centro, em meio ao trânsito pesado, carros de som e camelôs tocam forró e arrocha no volume máximo. Cartazes nos muros anunciam o Brega Night no Coliseu de Arcoverde (com Harry Estigado e Banda Sedutora) e um show do cantor Pablo, destacando em letras garrafais o nome de seu estilo ultrarromântico: sofrência.
A três quilômetros do centro, no bairro Cohab I, a fachada da casa de Severina Lopes, de 80 anos, anuncia que ali fica a sede do grupo Samba de Coco Irmãs Lopes e do Museu Ivo Lopes, nome de seu irmão, um dos mestres do coco de Arcoverde, morto em 1986. Segundo Severina, a história da família na cidade começou com a chegada de seus avós, em 1916. Ela planeja uma grande comemoração para marcar o centenário dessa data no ano que vem. Nas paredes, fotos de família se misturam a objetos ligados à tradição do coco, como um ganzá de lata, material mais usado antes do alumínio atual. Os pais dela, Joventina e Laurentino Lopes, já cantavam o coco, e Ivo Lopes teve grande influência na cena local a partir dos anos 60, à frente do grupo A Caravana. Numa das fotos, ele aparece entregando o título de cidadão honorário de Arcoverde a Luiz Gonzaga em 1974.





Hoje, a tradição da família é representada pelo grupo liderado por Severina e sua irmã Josefa, de 82 anos. Em 2014, o Samba de Coco Irmãs Lopes lançou o primeiro CD, “Anda a roda”. Uma das músicas, “Cho cho chorosa”, é inspirada numa toada gravada pela Missão em Arcoverde, em 1938. O grupo é completado pelos netos de Severina, Werner e Amanda, de 18 e 20 anos, e outros jovens formados em oficinas na casa-museu, onde se respira o coco: até o papagaio Lourival se balança no poleiro e responde quando ouve alguém cantar.
— De velhinha no grupo só tem eu e minha irmã. Tem até uns madurinhos, mas a maioria é verdinho — diz Severina.




A tradição local é sustentada também por outros grupos, como o Raízes de Arcoverde, fundado em 1992 pelo reverenciado mestre Lula Calixto, morto em 1999, e mantido até hoje por sua família, e o Trupé de Arcoverde, criado há seis anos pelo cantador Ciço Gomes, de 60 anos, que já acompanhou Ivo Lopes e Lula Calixto. Ao lado da família Lopes, eles ajudaram a dar cara própria ao coco de Arcoverde, marcado por uma batida de surdo repicada e pelo trupé, dança feita com pesados tamancos de madeira que amplificam o som da pisada. Nos últimos anos, grupos locais mostraram esses traços em shows por todo o país e no exterior.

Quando não está na estrada, o Trupé de Arcoverde costuma tocar na frente da casa de Ciço Gomes para um público que enche a rua. Em 2013, o grupo lançou o CD “Vamo pra lá, vamo pra cá, não deixa o coco parar”. Os figurinos coloridos são feitos pela mulher do cantador, Maria, e os músicos são quase todos seus parentes ou afilhados.
— Coco não se aprende na escola. Eu já vim aprendido! Meus filhos e netos também, está no sangue — diz Ciço, que lembra o tempo em que havia preconceito contra o gênero que hoje dá fama a Arcoverde. — Diziam que coco era coisa de macumbeiro. Nossa história é africana, sim. Somos descendentes de africanos. E hoje podemos dizer com orgulho que o coco chegou ao mundo todo.

O coco foi responsável “por uma das comoções mais formidáveis da minha vida”, escreveu Mário de Andrade em janeiro de 1929, durante sua viagem pelo Nordeste . Ouviu vários cantadores, mas ficou assombrado com o potiguar Chico Antônio, que conheceu em um engenho nos arredores de Natal. Depois desse encontro, chegou a planejar um livro sobre o coco, “Na pancada do ganzá”, nunca concluído. Mas deixou impressões sobre o cantador em obras póstumas, como “O turista aprendiz” e “Os cocos”, e fez dele personagem do romance inacabado “Café”, lançado este mês por Nova Fronteira e IEB/USP. Nesses textos, Mário escreve que, quando Chico Antônio canta, “em pleno sonho, não se sabe mais se é música, se é esporte, se é heroísmo”, e conclui que ele vale “uma dúzia de Carusos”.
Do cenário rural encontrado pela Missão, restaram as fazendas no entorno de Arcoverde. Morador do povoado de Caraíbas, o vaqueiro José Carlos Ferreira de Morais, de 55 anos, reconhece nos sons gravados em 1938 aboios parecidos com os que seu pai cantava enquanto conduzia o gado. Carlos escreve toadas, outro gênero registrado pelos pesquisadores na antiga Barão do Rio Branco. Divide suas composições em três tipos: toadas festivas, religiosas e culturais, como “Povo da roça” (“O pobre vive no mundo/ Só Deus sabe como é/ Quando compra uma roupa/ Falta o calçado no pé”). Mas desde a morte do pai, há quatro anos, parou de compor.
— Hoje não tem tanto aboio quanto antigamente. Muitas fazendas acabaram. E pra toada ninguém dá valor. Quem passa e vê a gente cantando acha que é coisa de bêbado. E olha que eu não bebo — diz Carlos, que numa toada antiga indica por que largou a boemia e abraçou a religião: “o jogo deixa a gente liso/ sem nenhum tostão/ bebida só dá desgosto/ prejuízo e confusão”.

Inaugurada em 1912, no centro de Arcoverde, a estação ferroviária onde a Missão pegou o trem de volta para Recife está desativada desde os anos 1980. Em 2001, um grupo de artistas se instalou nos galpões abandonados e criou a Estação da Cultura, com atividades de teatro, dança, música, artesanato e artes plásticas, que se tornou o primeiro Ponto de Cultura certificado pelo governo federal, em 2004. Mas um incêndio em 2013 interrompeu as atividades no local.
Em meados de maio, os artistas da Estação trabalhavam em novas obras de restauração. Um dos ocupantes dos galpões é o Boi Maracatu, grupo de bumba meu boi fundado em 2004 e tricampeão do carnaval de Pernambuco. O diretor da agremiação, Everaldo Marques, de 38 anos, é também presidente da Liga Cultural dos Bois de Arcoverde, criada em 2010 reunindo os 22 grupos da cidade.
O Boi Maracatu dá contornos atuais à estrutura clássica do auto, em que um casal tenta ressuscitar um boi morto chamando diversos personagens para dançar com o animal. As figuras tradicionais do padre e do soldado, por exemplo, aparecem nas apresentações do grupo como referências a abusos da Igreja e à violência policial no Brasil, explica Everaldo.
— Na origem do bumba meu boi, os escravos desfilavam em frente ao engenho zombando dos senhores. Queremos manter esse espírito de zombaria — diz Everaldo, que vê relações entre seu trabalho e o da Missão. — A gente entende a importância da tradição quando vê que outras pessoas lutaram antes pelo que você luta hoje.

No fim de maio, o governador de Pernambuco, Paulo Câmara (PSB), sancionou a Lei 15.516, que estabelece novas regras para as artes de rua. O texto determina que apresentações ao ar livre — de teatro, dança, música, capoeira, “manifestações folclóricas” e até mímicos e estátuas vivas — só podem ser realizadas até 22 horas e proíbe “terminantemente” a presença de crianças e adolescentes de até 14 anos, como muitas das que formam o elenco do Boi Maracatu. Artistas de todo o estado criticaram a medida e têm protestado por sua revogação.
Se a lei estivesse em vigor em 1938, a Missão não teria feito alguns de seus registros mais célebres, como maracatus do Recife que tocavam madrugada adentro ou crianças fantasiadas nas festas da Paraíba. Em 1929, Mário não teria feito essa nota em seu diário depois de uma caminhada noturna pela orla de João Pessoa: “Passeio, lua cheia, a Praia de Tambaú maravilhosa, onde surpreendo crianças bailando coco. Estupendo.”

Em janeiro de 1929, Mário de Andrade esteve em Catolé do Rocha, no sertão da Paraíba. Numa cidade “desfalcada” pela miséria, ficou desconcertado com o canto de uma pedinte que transmitia “uma dor magnífica, mesquinha, triste mesmo”, anotou na época. A canção o marcou tanto que, 11 anos depois, em 1940, ele escolheu cantá-la para o linguista americano Lorenzo Turner, que o visitou enquanto fazia pesquisas no Rio. Revelada em abril deste ano, a gravação em que Mário reproduz com seu sotaque paulista os versos da pedinte paraibana (“Deus lhe pague a santa esmola/ Deus lhe leve no andor/ Acompanhado de anjo/ Acirculado de flor”) é o único registro conhecido da voz do autor.
Em sua passagem por Pombal, apenas 50 quilômetros ao sul de Catolé do Rocha e a 400 de João Pessoa, a Missão recolheu muitos cantos de pedintes semelhantes aos que impressionaram Mário na década anterior. Mas também encontrou uma rica cultura de violeiros, que gravaram toadas, modinhas e chulas. E se deparou com a forte presença dos Congos, dança dramática ligada à cultura negra e à história da escravidão no Brasil.
Pombal hoje não exibe a miséria que Mário e a Missão viram no sertão paraibano. Com uma economia que gira em torno do comércio, e 4.606 famílias atendidas pelo programa Bolsa Família (o equivalente a cerca de 15 mil dos 35 mil moradores), é uma movimentada cidade às margens da BR-427. Mas municípios próximos, como Lastro e São José da Lagoa Tapada, estão entre os que apresentam os piores Índices de Desenvolvimento Humano do país.

A cerimônia dos Congos registrada em 1938 ainda acontece, praticamente da mesma forma, todo mês de outubro, na Festa do Rosário, que atrai centenas de visitantes a Pombal. O ritual é realizado pela Irmandade do Rosário, tradicional confraria negra que existe em várias partes do país pelo menos desde o século XVII, quando funcionava como congregação religiosa e associação de auxílio mútuo entre escravos. Seus integrantes eram adeptos do culto católico a Nossa Senhora do Rosário, levado à África por missionários portugueses. No Brasil, mesmo em tempos de escravidão, as Irmandades do Rosário de cada local costumavam promover cerimônias para coroar reis negros, que muitas vezes tinham papel político real nas comunidades de escravos.
A dança dos Congos é a encenação festiva dessa espécie de corte africana no exílio, com personagens como o rei, o secretário, o embaixador e os súditos. Usando trajes azuis, vermelhos e brancos, calças largas e chapéus em forma de cone, os 11 participantes cantam, dançam e tocam maracás, acompanhados por violão e sanfona. O que torna o grupo de Pombal singular é a mescla de cenas dramáticas, com diálogos entre o rei e outros personagens, e trechos musicais, com passos ora lentos, ora vigorosos. Nas letras, entre alusões a Nossa Senhora do Rosário e ao rei negro, surgem evocações da África: “Meus pretinhos dos Congos/ Donde vem nossa hora/ De embarcar pra Aruanda/ Vamos pra Angola”.

O grupo tem estandartes com as fotos dos Congos feitas por Luís Saia em 1938. Numa delas, Geraldo de Sousa Santos, de 53 anos, aponta o tio, Francisco de Sousa, que o ensinou a dançar. Geraldo fez o mesmo por seus dois filhos, Geraldo Santos Filho e Michel Platini Santos, de 29 e 27 anos. A faixa etária dos integrantes vai dos 88 anos de João Raimundo dos Santos, rei da Irmandade do Rosário, aos 8 anos de Jadson Santos Cesario.
— Estamos preservando as tradições negras de Pombal — diz o rei dos Congos, Miguel Ferreira, de 45 anos. — Quando a gente canta as palavras africanas, mesmo as que quase ninguém entende mais, sente a importância dessa herança e pensa por quantas gerações isso terá passado.
A festa anual acontece em torno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construção de estilo barroco erguida em 1721. Os Congos são acompanhados por outros grupos locais, como o Reisado e os Pontões, também ligados à Irmandade do Rosário, cuja existência em Pombal é documentada desde 1888, mas que provavelmente já funcionava ali durante a escravidão.
— Com o trabalho da Irmandade, hoje o negro é mais respeitado, apesar de a gente saber que muita gente tenta diminuir isso. Se alguém nos repudia, mas é abraçado pelo nosso trabalho, o preconceito vai sendo mudado — diz o secretário da Irmandade do Rosário de Pombal, Edmilson Neri, de 53 anos.

Desde o início, a viagem da Missão foi marcada pelo espectro da intolerância religiosa. Em 16 de fevereiro, três dias depois da chegada ao Recife, Luís Saia enviou uma carta a Mário de Andrade dando notícias sobre líderes ultraconservadores (“turma católica ariana e erradíssima”) que pressionavam pelo fechamento de terreiros de candomblé na cidade. Mário já conhecia essas perseguições. Em dezembro de 1928, ele fechou o corpo num terreiro na periferia de Natal. Em meio ao misto de fascínio e desconfiança que a cerimônia despertou nele, não deixou de notar que ela acontecia “no fundo da casa, bem protegida da polícia”.
Em João Pessoa, tanto Mário, em 1929, quanto a Missão, em 1938, visitaram terreiros de jurema, religião de origem indígena que tem raízes históricas na Paraíba e forte presença no Nordeste e em outras partes do país. Essas casas se concentravam no bairro de Torrelândia, então uma área de ruas de terra e construções de sapê, madeira e palha. Ali a Missão visitou três vezes o terreiro de Luiz Gonzaga Ângelo, onde foram realizadas as primeiras filmagens conhecidas dos rituais de jurema, com a bebida feita a partir da árvore de mesmo nome, considerada sagrada. Em volta de uma mesa branca, os participantes tocaram maracás e cantaram pontos evocando as entidades, ora ajoelhados, ora dançando em roda ou num movimento que Saia descreveu em sua caderneta como “parado que nem bêbado”.

Torrelândia hoje se chama Torre e é um bairro comercial vizinho ao centro de João Pessoa. Das mais de 20 casas de jurema, candomblé e umbanda que já existiram ali, restou apenas uma. Grande parte dos terreiros da capital paraibana fica agora no bairro da Mangabeira, a 12 quilômetros do centro. É ali que funciona a casa de Eriberto Carvalho Ribeiro, de 41 anos, o Pai Beto de Xangô, presidente da Federação Cultural Paraibana de Umbanda, Candomblé e Jurema.
Pai Beto é um dos líderes na luta contra a perseguição religiosa na Paraíba. Um dos palcos desse confronto é a cidade de Alhandra, considerada o berço da jurema, 50 quilômetros ao sul de João Pessoa. Nos últimos anos, conta Pai Beto, líderes evangélicos locais passaram a perseguir praticantes da jurema, pedindo o fechamento de terreiros e incentivando a destruição das árvores sagradas. A Federação reagiu com passeatas e protestos, até conseguir em 2009 uma vitória simbólica: o tombamento do Sítio do Acais, tradicional casa que estava abandonada há anos. Foi o primeiro terreiro preservado como patrimônio histórico na Paraíba.
A casa de Pai Beto no bairro da Mangabeira abriga rituais de jurema e umbanda. Numa tarde de terça-feira em maio, tambores e maracás descansavam perto de uma parede com imagens de entidades do chão ao teto. Enquanto fumava um cachimbo com preparado de jurema, alfazema e alecrim, ele demonstrou o ritual de comunicação com as entidades, soprando o fornilho para expelir uma coluna de fumaça vertical pela piteira (“telefone sem fio”, ele brinca).
Ao ouvir pontos gravados pela Missão em João Pessoa, em 1938, emocionou-se com a letra de um deles: “No pé da jurema/ tem uma flor”. É uma referência, ele explica, ao fato de que os juremeiros, para driblar a perseguição, enterravam seus mestres em segredo e marcavam o local da sepultura plantando uma árvore sagrada.
— Nem sempre a letra dos pontos significa o que parece. É preciso conhecer para entender — diz Pai Beto, para quem a ignorância está na raiz da perseguição ainda enfrentada pelas religiões de origem africana e indígena no Brasil. — Hoje a intolerância é mais dissimulada, mas continua forte. Você sente isso quando chega a um órgão público e vê uma Bíblia na mesa, mas não se respeitam outras religiões.

As religiões de origem africana e indígena não eram as únicas vítimas de perseguição em João Pessoa na primeira metade do século XX. Festas populares também sofriam intervenções de governantes e da polícia.
Em 1929, Mário se encantou com as tribos carnavalescas da cidade, que em suas danças encenavam uma luta de índios contra invasores assassinos. Depois de assistir ao ensaio de uma delas, a Tribo Africanos, no bairro de Cruz das Armas, saiu abismado com a “formidável coreografia bruta” que despertava “um frenesi dionisíaco espantoso”. E revoltou-se quando soube que o grupo era obrigado a pagar taxas até para ensaiar: “em nome dum conceito mesmo idiotissimamente nacional de Civilização, as Prefeituras e Chefaturas de Polícia fazem o impossível pra eles não saírem, cobrando diz-que até duzentos mil réis a licença. Será possível!”
A Tribo Africanos continua a existir. Fundada em 1918, é a mais antiga agremiação do carnaval de João Pessoa e já conquistou mais de 50 títulos nos desfiles de rua. Quando a Missão registrou suas danças, em 1938, o grupo era sediado em Torrelândia. Hoje fica no bairro do Cristo Redentor, na periferia da cidade.

A sede da tribo é um barracão nos fundos da casa de Heraldo Alves Santiago, de 78 anos. Conhecido como Pindoba, ele é o presidente há 20 anos, quando decidiu resgatar o grupo depois de um período sem desfiles, nos anos 1980. Em sua casa ficam guardados os instrumentos e as fantasias, como cocares gigantes que podem chegar a medir oito metros e pesar 50 quilos. O presidente reclama da falta de apoio do governo às tribos. Segundo ele, o prêmio de R$ 7,5 mil pelo título não cobre nem o valor de um dos cocares gigantes, que exigem cerca de 3.500 penas de pavão cada um.
Pindoba desfila nas tribos carnavalescas desde 1945, quando tinha 8 anos, e diz que muita coisa mudou desde então. As agremiações cresceram, passando de 40 para até 200 integrantes. As fantasias, que já foram pinturas de corpo feitas com banha e pó de carvão, agora são de palha e estopa. A cena que mais chamou a atenção de Mário — na qual os índios vão sendo mortos um a um até que o cacique ressuscita para salvar a tribo dos invasores, e o feiticeiro traz os outros de volta da morte dando baforadas em seu cachimbo — tornou-se mais longa e teatral, com cada integrante caprichando na sua vez de morrer. Mas a essência continua a mesma: o ritmo.
— Antes a batida era mais quente, hoje é um pouco mais lenta. Mas sempre é um toque que dá vontade de a pessoa se mexer — diz Pindoba.

Esse ritmo é sustentado por ganzás, bumbos e uma gaita, como é conhecida a pequena flauta de quatro furos que é uma das marcas da tribo. A melodia sinuosa da gaita, com variações irregulares a cada repetição, dá o tom envolvente do som dos Africanos. Em 1929, Mário quase enlouqueceu tentando transcrever essas frases numa partitura. Desistiu quando percebeu que era melhor se deixar levar pela “fantasia improvisatória” do gaiteiro.
No ano que vem, os Africanos vão ter um novo gaiteiro. George Silva, de 27 anos, começou a ter aulas com o gaiteiro mais velho, que se aposentou este ano. Numa noite de maio, no barracão da casa de Pindoba, enquanto o grupo mostrava cenas da apresentação, George misturou na melodia tradicional fragmentos de músicas como “Asa branca”, de Luiz Gonzaga, e “Eu só quero um xodó”, de Dominguinhos e Anastácia, que nunca fizeram parte do repertório das tribos de João Pessoa. O novo gaiteiro quer incluí-las no desfile:
— É pra mudar um pouco.

Depois de ter participação central na primeira fase do modernismo, em 1922, quando ajudou a organizar a Semana de Arte Moderna em São Paulo e lançou os poemas de “Pauliceia desvairada”, Mário de Andrade dedicou a segunda metade da década de 1920 a duas longas viagens pelo Brasil. A primeira, de maio a agosto de 1927, levou-o “pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por Marajó até dizer chega”, escreveu na época. A segunda, de novembro de 1928 a fevereiro de 1929, concentrou-se no Nordeste, com passagens por Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Paraíba.
Nessas viagens, além de recolher histórias e expressões que alimentariam livros como o volume de poemas “Clã do Jabuti” (1927) e o romance “Macunaíma” (1928), Mário tinha outro plano: registrar canções, danças, festas e rituais tradicionais que considerava ameaçados de extinção. No diário e nas crônicas de jornal que escreveu durante as viagens, reunidos postumamente em “O turista aprendiz” (1976), ele anota com entusiasmo cocos, toadas, maracatus, bois-bumbás, caboclinhos, cantos de origem indígena e africana. Mas na última crônica enviada de João Pessoa, em 5 de fevereiro de 1929, pouco antes de embarcar de volta para São Paulo, lamenta: “Tudo vai se acabando agora que o Brasil principia…”
— Mário achava que o discurso modernista sobre a arte brasileira ficaria esvaziado sem o conhecimento da realidade do país, por isso fez suas viagens — diz Flávia Camargo Toni, professora do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP e especialista na obra do autor. — Não era folclorismo nem nacionalismo ideológico, e sim um impulso de preservação da memória cultural em tempos de destruição. Como toda a geração que viveu entre as duas guerras, ele testemunhou o poder que o homem tinha de arrasar tudo. A ideia de Mário era conhecer para preservar e preservar para entender o Brasil.

Nos anos seguintes, em São Paulo, Mário trabalhou intensamente com o material recolhido nas viagens. Publicou artigos, fez conferências sobre as culturas do Norte e do Nordeste e planejou livros sobre o tema. Em 1935, ao ser convidado para fundar e dirigir o Departamento de Cultura da capital paulista, encontrou a oportunidade para pôr em prática seus planos mais ambiciosos de registrar essas manifestações. Idealizou a Missão de Pesquisas Folclóricas, que embarcou para o Nordeste em fevereiro de 1938, formada pelo arquiteto Luís Saia, pelo músico austríaco Martin Braunwieser, pelo técnico de som Benedicto Pacheco e pelo ajudante Antonio Ladeira. Mário não estava no navio, mas realizava um antigo sonho.
O GRAVADOR MAIS MODERNO DO MUNDO VAI AO SERTÃO
A Missão de Pesquisas Folclóricas foi a ponta de lança de um amplo projeto desenvolvido por Mário de Andrade no Departamento de Cultura de São Paulo. Em 1935, criou a Discoteca Pública Municipal, primeiro órgão do gênero no país. Com a função de preservar discos, partituras e gravações, era chefiada por Oneyda Alvarenga (1911-1984), que hoje dá nome à Discoteca. O Departamento ganhou ainda uma orquestra, um corpo de baile e a Sociedade de Etnografia e Folclore.

A ideia original da Missão estava no anteprojeto que Mário concebeu para a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1936. Como o anteprojeto foi rejeitado pelo governo federal, Mário encampou a ideia no Departamento. Convenceu a prefeitura a comprar um gravador americano Presto, na época o mais avançado do mundo, e outros materiais para registro sonoro, fotográfico e cinematográfico. Os integrantes da Missão tiveram aulas de etnografia e folclore com Dina Dreyfus, mulher do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que era professor na recém-criada Universidade de São Paulo e desenvolvia seu trabalho de campo pioneiro com povos indígenas do Brasil.
Foi, portanto, com metodologia e equipamentos alinhados ao que havia de mais moderno que a Missão desembarcou no Recife, em 13 de fevereiro de 1938. Chefe do grupo, Luís Saia levava uma carta de apresentação de Mário, solicitando, “de quantos brasileiros este documento lerem, a assistência, o conselho e a acolhida jamais recusada pela generosidade nacional”.
Contando com a ajuda de amigos de Mário no Recife, como o poeta Ascenso Ferreira e o musicólogo Valdemar de Oliveira, os pesquisadores acompanharam o carnaval, gravaram cantos de padeiros e carregadores de piano e visitaram terreiros de candomblé, que enfrentavam severa perseguição das autoridades — alguns tambores apreendidos pela polícia foram doados à Missão. Depois, seguiram para cidades que Mário jamais visitara: Barão do Rio Branco (hoje Arcoverde) e Tacaratu, no sertão, onde visitaram também aldeias pankararus.

Na Paraíba, a Missão fez seu trabalho mais intenso. Entre 24 de março e 30 de maio, percorreu, além de João Pessoa, 11 cidades, como Pombal, Patos, Alagoa Grande e Itabaiana. Lá registraram muitas manifestações ligadas à herança africana e indígena na região, como os Congos de Pombal, os cocos do quilombo de Caiana dos Crioulos e cerimônias em terreiros de jurema no bairro de Torrelândia, na capital paraibana.
No trajeto, os pesquisadores eram recebidos com fanfarra pela imprensa local. O “Jornal do Commercio” do Recife celebrou a “colheita de motivos sertanejos” que seria “revelada ao mundo pela cinematographia”.
Mário e Saia se correspondiam com frequência. O arquiteto se dividia entre relatos empolgados das gravações e lamentos sobre as dificuldades logísticas. Já Mário dava instruções precisas sobre o que registrar e pedia materiais que justificassem a Missão para seus superiores. Em carta de 9 de março, prometia “pular pro Nordeste” para encontrar o grupo. Mas isso nunca aconteceu.
LEGADO DURADOURO DE UM PROJETO INTERROMPIDO
Desde o início, a Missão trabalhou sob a sombra do Estado Novo, instituído em 1937. Contrário ao regime de Getúlio Vargas, Mário de Andrade enfrentava dificuldades no Departamento de Cultura. Em maio de 1938, o interventor federal em São Paulo, Adhemar de Barros, nomeou Prestes Maia para o lugar do prefeito Fábio da Silva Prado, que havia convidado Mário para o cargo. No mesmo mês, o escritor foi demitido.
Em 23 de maio, Mário assinou um relatório, ainda como funcionário do Departamento, expondo aos superiores os resultados da pesquisa até ali e defendendo a continuidade da viagem (“O rendimento científico tem sido simplesmente admirável”, escreveu). A resposta foi que o orçamento não deveria ultrapassar o valor já empenhado, 60 contos de réis.

Quando Luís Saia recebeu o relatório, em junho, Mário não estava mais no Departamento. A Missão seguiu por terra para o Maranhão, atravessando Piauí e Ceará quase sem fazer registros. Em São Luís, passaram apenas uma semana, de 15 a 21 de junho, e gravaram amostras de carimbó, tambor de mina e tambor de crioula. Em Belém, ficaram até 7 de julho, gravando bois-bumbás e babaçuês. Depois de um longo retorno de navio, desembarcaram em Santos em 19 de julho. Mário já estava instalado no Rio de Janeiro.
Nos anos seguintes, o material recolhido pela Missão foi transcrito e catalogado por Oneyda Alvarenga, que continuava à frente da Discoteca Pública. Antes de morrer, em 1945, aos 51 anos, Mário pediu a ela que levasse adiante seu trabalho sobre a cultura popular. Nos anos 1950, ela idealizou a coleção “Registro sonoro do folclore musical brasileiro”, com sete livros e discos organizados a partir do acervo da Missão. Também reuniu textos de Mário sobre cultura popular em livros como “Danças dramáticas do Brasil” (1959), em três volumes, e “Os cocos” (1984).
A maior parte do material, porém, só chegou a um público mais amplo em 2006, quando a Secretaria de Cultura de São Paulo, em parceria com o Sesc-SP, lançou uma caixa de seis CDs com sete horas de gravações originais da Missão e ensaios de pesquisadores como Flávia Camargo Toni. Em 2010, o Centro Cultural São Paulo lançou um DVD com fac-símiles e transcrições de cadernetas de campo, vídeos, fotos, fonogramas e cartas do acervo da Missão de 1938. Parte desse material está disponível em dois sites: um do Centro Cultural São Paulo e outro do Sesc-SP. Mais de sete décadas depois, os registros idealizados por Mário continuam a surpreender e inspirar os ouvintes.





AS LIÇÕES DO TURISTA APRENDIZ

No fim dos anos 1990, o músico e pesquisador Carlos Sandroni levou para Tacaratu gravações feitas ali pela Missão de Pesquisas Folclóricas, em 1938. A passagem da caravana pelo sertão de Pernambuco não era conhecida pelos moradores. Hoje, é motivo de orgulho: a Casa da Cultura de Tacaratu tem uma parede cheia de fotos da equipe enviada por Mário de Andrade.
Também no fim dos anos 1990, a cantora Juçara Marçal e os colegas do grupo A Barca estavam inquietos com a mesmice da música brasileira. Estudando os relatos de viagem de Mário no livro “O turista aprendiz” e as gravações de 1938 nos arquivos do Centro Cultural São Paulo, tiveram uma sensação de descoberta semelhante à que o escritor e os integrantes da Missão experimentaram em seu tempo. Decidiram cair na estrada também.
Nos últimos anos, muitos outros pesquisadores e artistas refizeram os passos de Mário e da Missão por cidades de Norte e Nordeste. Nesse processo, ajudam a manter viva a memória cultural desses lugares e, ao mesmo tempo, encontram inspiração para novas obras.
A visita de Sandroni a Tacaratu foi o ponto de partida do projeto Responde a Roda Outra Vez, que em 2003 e 2004 visitou 14 cidades de Pernambuco e Paraíba no trajeto da Missão. O resultado foi um mapeamento cultural dessas regiões e um CD duplo com novos registros de manifestações documentadas em 1938, como cocos, reisados, barcas e toadas.
Foi nessa pesquisa que Sandroni encontrou Senhorinha Freire. Ela tinha 82 anos e morava em Jaboatão, na área metropolitana do Recife. Quando ouviu os registros de 1938, reconheceu a própria voz e mostrou como se dançava e tocava o coco na época, usando duas colheres como instrumento. Em 1997, ele já havia encontrado, em Tacaratu, o filho de Raimundo Cunha, cantador de coco também gravado pela Missão e morto dez anos antes.
— Como as gravações da Missão foram as primeiras feitas em muitas partes do sertão, elas são a única forma que as novas gerações têm de ouvir os antepassados daquela época. Isso reforça a identidade cultural dos lugares e das pessoas que mantêm a música e as festas locais vivas até hoje — diz Sandroni, professor de Música na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no Recife, autor dos livros “Mário contra Macunaíma” (Vértice, 1988) e “Feitiço decente” (Zahar, 2001) e de um CD recém-lançado, “Sem regresso”.
Colaboradores de Sandroni no projeto Responde a Roda Outra Vez, os pesquisadores Maria Ignez Ayala e Marcos Ayala trabalham desde os anos 1970 com a cultura popular da Paraíba. Em 1998, eles identificaram um colaborador da Missão, Severino Buril, cohecido como Biu Saloia, em um filme de 1938 sobre festas populares em João Pessoa. Quando mostraram as imagens a Biu, que estava com 92 anos, ele se reconheceu seis décadas mais novo, vestido de mulher, e acompanhou as músicas sorrindo e batucando.
Professores da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, e autores de livros como “Cultura popular no Brasil” (Ática, 2006), Maria Ignez e Marcos construíram um grande acervo nas últimas décadas e trabalham na organização e digitalização desse material, que ficará disponível no site www.acervoayala.com. As pesquisas de Mário são uma referência central para eles.
— Mário tinha um respeito enorme pelas pessoas que são a alma das manifestações culturais. Fazia questão de anotar nome, dados e origem de cada uma, e instruiu a Missão a fazer o mesmo. Ele quebrou a ideia do anonimato na cultura popular, mostrou que ela é feita por indivíduos. Por isso o trabalho dele dura tanto. Nossos alunos usam esses registros até hoje — diz Marcos.
Foram esses registros que levaram a cantora Juçara Marçal e o grupo A Barca a se lançarem no projeto Turista Aprendiz, inspirado no livro de viagens de Mário e no trabalho da Missão. Em 2004 e 2005, os músicos visitaram 40 cidades em nove estados de Norte, Nordeste e Sudeste, fazendo oficinas, shows e gravações de músicas locais. O material foi reunido no CD triplo “Trilha, toada e trupé” e no site www.acervobarca.com.br.
Juçara hoje é cantora do grupo Metá Metá e acaba de lançar um disco solo, “Encarnado”. Mas continua a ser influenciada por aquelas viagens. Quando fala de suas referências, cita dois cantores que conheceu em terreiros do Maranhão: Pai Euclides Menezes, de São Luís, e Mãe Gildete, de Pirapemas.
— O trabalho do Mário revelou um universo da música brasileira que não estava tão próximo da gente. Descobrimos a riqueza de repertório e o refinamento de possibilidades vocais que existem pelo país. É um universo interminável e muito presente. Às vezes, na cidade grande, a gente tem a impressão de que isso é coisa de museu, mas não. É muito vivo.


Read more: http://oglobo.globo.com/cultura/livros/missao-mario-de-andrade-uma-viagem-pela-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442#ixzz423ULyFMq




Nenhum comentário:

Postar um comentário