sábado, 5 de março de 2016

Qual é o papel do escritor em um país onde 92% das pessoas não leem bem ?

Rodrigo Casarin 

O dado é estarrecedor: somente 8% dos brasileiros adultos são considerados completamente capazes de entender e se expressar utilizando números e letras. Outros 65% conseguem, de alguma forma, se virar – 23% deles, os “intermediários”, até que relativamente bem. Por fim, 27% são considerados analfabetos funcionais. É o que aponta um recente estudo realizado pelo Instituto Paulo Montenegro em parceria com a ONG Ação Educativa – mais sobre isso pode ser lido aqui nesta matéria do UOL Educação. Diante de um quadro tão lamentável, não há como fugir da pergunta: o que é ser escritor em um país com essa situação? Eles podem ou devem, de alguma forma, ajudar para que o quadro mude?


Questionado, Ruy Castro, de biografias como “Estrela Solitária'', de Garrincha, e “O Anjo Pornográfico'', de Nelson Rodrigues, é sucinto e direto na resposta: “Se não há quem leia, temos de continuar escrevendo. Um dia, eles se tocam''. Autora de livros como “O Tempo É um Rio que Corre'' e “O Rio do Meio'', Lya Luft, por sua vez, lamenta e critica as pessoas que conduzem o país. “Isso significa infelizmente escrever para uma pequena parcela da população, embora eu ache que a porcentagem citada é baixa demais. Mesmo que fossem 20% ou 40% [de plenamente capacitados a ler] por cento seria trágico. O escritor não pode fazer nada: isso cabe aos governos”.
André Vianco, um dos nomes mais conhecidos da fantasia nacional, autor de “Os Sete” e “O Vampiro”, lembra que alguém saber ler, interpretar e contextualizar um texto deveria ser uma das bases de uma sociedade supostamente educada. “Entender o mundo em que você vive é a chave da alma. Vejo um futuro muito sombrio, já que não acredito mais que a classe política fará hoje ou amanhã algo para mudar isso. Nossos homens e mulheres eleitos para organizar a educação da nação estão pouco preocupados com isso. A cognição que eles têm infelizmente está apontada para outras necessidades, como apagar rastros de falcatruas e entender como podem legislar melhor para proteger a classe”, diz.

Cadão Volpato, de “Pessoas que Passam Pelos Sonhos”, também critica não só este, mas todos o governos que já encabeçaram o Brasil. “Qualquer escritor que tenha viajado por algum rincão desse país sabe que as pessoas não compreendem, não sabem se expressar e não leem. Elas se mantêm e são mantidas nessa ignorância total, e a vida delas fica muito mais difícil. Por outro lado, é muito mais fácil dominá-las. Nunca houve nenhum governante comprometido de verdade com a educação. Nem o pessoal da Sorbonne, que nunca teve vergonha na cara, nem o Lula, que se orgulhava de não ler nada. Ser escritor num lugar assim, portanto, é o mesmo que nada. Nesse contexto, um clube de velhinhos como a Academia Brasileira de Letras é uma verdadeira aberração, um insulto”. Sobre o papel do escritor, Volpato diz que “só resta escrever, bater perna e fazer o melhor possível. Não baixar o nível. Seguir em frente”.
O problema, evidentemente, não é de hoje. Na reportagem “Analfabetismo Funcional: Questão de Competitividade”, publicada em 1999 na Gazeta Mercantil, o jornalista Sergio Vilas-Boas também elencava números lamentáveis. Só a cidade de São Paulo tinha uma população com 33% de analfabetos funcionais dentre as pessoas entre 15 e 54 anos, enquanto em Alagoas e no Maranhão, 35% das pessoas sequer sabiam ler e escrever.
Voltando ao quadro atual, Leonardo Villa-Forte, do recém-lançado “O Princípio de Ver Histórias em Todo Lugar”, diz que o cenário para os escritores têm paisagem árida porque, provavelmente, uma parcela extremamente baixa da população poderá ter contato com as obras literárias. “Isso significa ouvir perguntas do tipo 'mas o que você faz de verdade?', ou 'isso dá dinheiro?', que não são nada bobas, dado o exotismo da atividade dentro do contexto nacional. É preciso ser um pouco camicaze, você pode passar anos trabalhando em algo sem ter ideia do retorno, e mesmo se haverá esse retorno. Tem até seu lado bom: você só se mantém escrevendo se houver paixão contínua; a pena é que a falta de uma estrutura e acolhimento que impulsione a escrita pode danificar a paixão ou inviabilizá-la. O escritor no Brasil é um malabarista, ele precisa fazer mil coisas para conseguir comer, morar, escrever, ler e viver”.
“Suplemento para marombar o cérebro”
No entanto, há quem relativize os números e até mesmo o enfoque da pesquisa. Rodrigo Rosp (“A Virgem que Não Conhecia Picasso”, “Fingidores”) alerta que se a pessoa não precisa dominar completamente o texto para ler uma peça literária (“talvez não seja leitor de Jorge Luis Borges ou Umberto Eco, mas não faltará boa ficção acessível a ele”, pondera), o que aumenta consideravelmente o número de potenciais leitores: de 8% para 31% da população, contando com os “intermediários”. “No entanto, um lançamento de literatura brasileira contemporânea que chegue a uma venda de 10 mil exemplares é tido como um supremo vencedor. Isso me leva a crer que a falta de capacidade da população não chega a ser o problema, pois mesmo havendo dezenas de milhões de potenciais leitores, a literatura não consegue chegar nem perto deles”, contrapõe.
Uma das vencedoras do último Prêmio Sesc de Literatura com “Desesterro”, Sheyla Smanioto lembra que a apuração se preocupa em detectar se as pessoas contam com ferramentas que possam ser úteis ao mercado de trabalho, algo bem diferente das habilidades necessárias para que alguém leia um romance, por exemplo. “Essa pesquisa tem uma ideia bem particular do que é compreensão e expressão, uma ideia gramática, no sentido da normatividade. Não sei se interessa à literatura, porque a norma exclui todas as línguas dentro da língua, e pode muito bem estar chamando de 'rudimentar' alguém que é perfeitamente fluente na sua própria modalidade da língua. Por exemplo: para a norma, a fala periférica é estrangeira, enquanto para a literatura é onde podemos encontrar uma linguagem viva, pulsante, em constante transformação. O que será mais complexo, ler um gráfico ou escrever um cordel? Literatura não é linguagem de trabalho, é, permita-me, trabalho com a linguagem”.
Contudo, Sheyla concorda que hoje a literatura se encontra em um gueto no país. “Por outro lado, a leitura literária ainda é privilégio de uma elite intelectual, somos praticamente uma seita. Para mim, cabe aos escritores brasileiros de hoje devolver à tona a relação entre a literatura e a vida, em tudo que ela tem de pior e de melhor, para que a literatura deixe de ser questão e território para poucos, muitas vezes vista como uma espécie de suplemento para marombar o intelecto”.
E, afinal, o escritor pode ou deve mudar esse panorama? De alguma forma, todos que responderam a essa pergunta seguem um discurso semelhante ao de Villa-Forte: “Não sou adepto dos 'deves', ninguém tem que fazer nada conforme os outros dizem que se deve fazer. Poder, pode. Fica ao cargo de cada escritor sentir se isso cabe dentro de seu trabalho ou não, e se ele ou ela tem inclinação para atividades que caminhem nessa direção. Como? Sinto que muitos já fazem algo, por exemplo, sendo professores, ministrando oficinas, escrevendo em plataformas públicas, visitando lugares e conversando com as pessoas dos locais. São todas atividades que refinam a leitura e compreensão das pessoas. Parece-me, no entanto, que o problema é mais em baixo, algo de base, que vem da família e da escola”.


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