quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

O humor machadiano em O Alienista


Encontrar e entender as tiradas bem (ou mal)- humoradas de Machado de Assis é um trabalho ardiloso, mas ao menos é recompensa do com boas risadas.


por José Maria Boutckosky da Silva


Machado de Assis é considerado o maior escritor do Brasil e, consequentemente, muito se fala sobre ele: de sua capacidade de criar em diferentes gêneros, de seu estilo inconfundível, de seu domínio da linguagem, de sua complexidade de pensamento, de sua maestria na observação psicológica e de mais uma infinidade de temas cabíveis dentro do universo fecundo de um escritor tão profícuo. No entanto, diante da quantidade de estudos feitos sobre a obra do ficcionista, pouco foi dito acerca de uma das facetas mais características e complexas de Machado de Assis: o seu humor irônico. O talento humorístico do artista sempre é citado pelos críticos, mas poucos se ocuparam do estudo do humor machadiano.

Em 1882, quando Machado de Assis já era glorificado no panteão dos escritores de língua portuguesa, ele lança a coletânea de contos Papéis Avulsos, que abre com uma história longa, diferente dos demais escritos desse tipo do autor, que costumam ser curtos e econômicos. Este conto, chamado O Alienista , demonstra tal singularidade de raciocínio lógico e retrata fielmente a estreiteza da sociedade politiqueira de forma tão mordaz que se poderia dizer que é um dos pontos altos das incursões humorísticas de Machado de Assis.

O HUMOR MACHADIANO

Em toda a sua obra, Machado de Assis nunca toma para si o papel de juiz de valores: o escritor desconfia sempre da razão e esse ponto de vista do mundo, aliada ao seu humor pessimista, fez com que ele se afastasse da visão simplista de seus contemporâneos e se tornasse o maior escritor brasileiro de que já se teve notícia.

SEGUNDO REINADO

O Segundo Reinado começa em 1840, quando um grupo de políticos liberais executa um golpe para antecipar a maioridade de Dom Pedro II, e dura até 1889, com a proclamação da República. Durante esse período, o Brasil progride cultural, industrial, social e economicamente, graças ao governo inteligente operado pelo então imperador, que procurava agradar tanto os liberais quanto os conservadores, como meio de se manter no poder.

Alguns pontos importantes do Segundo Reinado

A solidificação das Forças Armadas do país, que se mostraram efetivamente na Guerra do Paraguai;

O início da libertação dos escravos que, gradativamente, culminaria na abolição da escravatura;

O desenvolvimento do comércio do Brasil com outras nações através da venda do café e a vinda de imigrantes europeus para o país à procura de uma nova vida.

Lúcia M. Pereira, biógrafa do literato, diz que "sob as aparências do ceticismo risonho, Machado deixou em sua obra um travo amargo de desengano" e nessa perspectiva percebe-se que o escritor pode ter buscado sua técnica de composição humorística nos ingleses. A consequência disso é que uma parte dos leitores brasileiros, acostumados ao humor escrachado e à caricatura grosseira, não encontra a graça dos escritos machadianos, uma vez que ela reside na sutil demonstração do ridículo diário, na tênue caricaturização dos absurdos que a sociedade aceita como cotidianos.

O primeiro crítico a revelar a faceta humorística de Machado de Assis foi Alcides Maya , em seu Machado de Assis (Algumas notas sobre o humour). De acordo com o estudioso, o escritor herdou o humour típico da fisiologia britânica, caracterizado por enfado e uma tristeza de mundo e do homem. Tristeza que mistura pena e impassibilidade ante a percepção das coisas e enfado que o prazer da análise transforma em psicologia experimental. Após identificar a presença do humour nos mais diversos autores e literaturas, Maya conclui que pode sim haver humour fora das fronteiras britânicas e detecta Machado de Assis como legítimo representante dos humouristas não ingleses, por sua "filosofia, pelo estilo, pela técnica dos seus livros, pela visão tragicômica do mundo, pelo agror da crítica humana, pelo incisivo do escárnio indireto, pelo talento no exibir a sandice, pelo poder de irrisão e pela tristeza oculta no ataque".

Não satisfeito com as fronteiras da própria definição de Machado como humourista, Alcides Maya o caracteriza como "profundamente pessimista"; em relação aos humoristas de "além-Mancha", o crítico diz que o que distingue e singulariza o escritor brasileiro "é a mescla de negro ceticismo com as formas risonhas e nítidas; é o humour, na saliência repentina da contradição burlesca assaltando a sisudez das máximas a alternar com a graça leve, preponderante, do espírito latino". Assim, vê-se que Machado reciclou o humour britânico de forma que ele se tornasse palatável e adaptado aos, digamos, casos mais tropicais.

A IRONIA NA OBRA MACHADIANA

O Alienista, obra da fase realista de Machado de Assis, pode ser considerado um conto de ideia, na medida em que esse se define por uma narrativa em que as observações do autor acerca do homem e do mundo acabem por subjugar a história, que serve apenas como pano de fundo para o registro do atrito entre o ser humano e os problemas sociais. No conto de ideia, os personagens costumam converter- se em símbolos, e enredo e cenário caem para um segundo plano, em decorrência de as ideias se materializarem nas figuras dos protagonistas. Massaud Moisés nos diz que "confinando (.) com a história de personagem, o conto de ideia dá margem a situações em que o realismo, usando as armas da ironia, se tinge de absurdo ou fantástico".

No seu Como e por que ler, o crítico literário Harold Bloom diz que a perda da ironia é a morte da literatura e daquilo que há de civilizado na natureza humana. Para o estudioso irlandês, que caracteriza Machado de Assis como um escritor hilário, esse foi reduzido quando o classificaram com um restrito rótulo de irônico. O professor da Yale diz que a ironia de Machado está incrustada na atmosfera na qual seus personagens e o próprio autor se movem.

O ALIENISTA: COMÉDIA OU FARSA?

É inegável que O Alienista é uma obra que utiliza o humor para satirizar a sociedade da época do Segundo Reinado. Mas o humor do qual Machado de Assis se vale em seu conto se encaixaria melhor na categoria do cômico ou do farsesco?

Tenha-se por comédia o desenvolvimento de uma situação dramática que seja unitária, que contenha o tempero do humor e que chegue a um reequilíbrio conciliado, um final feliz. A comédia diferencia- se da tragédia porque não bate de frente com a situação, não a soluciona completamente; os personagens cômicos tentam driblar as contradições, estabelecendo pactos que permitem que a vida prossiga. Northrop Frye diz que na comédia costuma haver um ponto (em geral o desenlace) no qual tudo está por um fio, mas o fim trágico sempre é afastado por uma reviravolta da história.

A farsa, por sua vez, não se interessa pela unidade dramática, não se desenvolve como um desdobramento contínuo de fatos, mas como uma constante (e surpreendente) sucessão de novas situações e arranjos. Assim, a farsa é episódica, porque não se leva a sério o bastante para manter um arco dramático suspenso. Na farsa, as aparências são tudo, todo tipo de desgraça pode se abater sobre o personagem e mesmo assim o leitor só achará graça dele. Este é o objetivo: afastar-nos de tal modo dos personagens que toda dor que lhes seja infligida nos faça rir. O dramaturgo e roteirista Luis Alberto de Abreu nos diz que Como regra geral, rimos do que consideramos defeito, do que consideramos menor que nós. Às vezes, rimos de nós mesmos porque percebemos que somos menores do que imaginávamos. É como se o ser humano devesse ter um padrão: jovem, forte, bonito, inteligente, potente. Tudo o que estiver abaixo desse padrão, fora dessa proporção, é objeto do riso humano: a impotência, a burrice, a feiúra, a fraqueza ou covardia, a meninice ou a velhice. Mas só vamos rir se o defeito não tiver conseqüência dolorosa que possa nos emocionar. E mais vamos rir quanto mais exagerado for o defeito.

Rimos dos defeitos do caráter - covardia, avareza, falsidade e outros -, dos defeitos do pensamento - tolice, falha, ausência ou exagero da lógica -, dos defeitos físicos - mancos, tortos, pensos, impotentes -, dos defeitos de comportamento - caipiras, tímidos, doidos, gente que fala sozinha, pessoas que não sabem se portar, se vestir, etc. Rimos também daquilo que nos mete medo: rimos da morte, da autoridade, dos tiranos. É claro que rimos de forma que a autoridade não perceba nossas intenções, o que a transforma num tolo, ou quando estamos distantes para que o nosso riso não tenha conseqüências.

Na farsa, há uma caricaturização do mundo governada pelo princípio da irrealidade, há a inconsequência e a abolição das regras desse mundo. Dadas as características do gênero farsesco, percebe-se que O Alienista se encaixa perfeitamente na chave da farsa, já que sua narrativa é episódica e os acontecimentos que Simão Bacamarte desencadeia na pequena Itaguaí não podem ser levados a sério de maneira alguma.

POSITIVISMO

O positivismo é uma doutrina, criada pelo francês Auguste Comte, que propõe que todas as questões filosóficas, sociológicas e políticas fossem analisadas por meio de uma ótica humana, colocando-se de lado tudo o que fosse metafísico ou teológico. A doutrina positivista vai de encontro à idealista, pois prioriza a experiência sensível (ou dados positivos) à experiência extra-sensorial (dados subjetivos). Em outras palavras, o positivismo tem por base tudo aquilo que pode ser observado e deixa de lado o que só pode ser intuído.

O "Ordem e Progresso" estampado em nossa bandeira vem da frase positivista "O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim" e é apenas uma das demonstrações da larga influência positivista na história do Brasil.

Manuel Bandeira disse que a vida dos semelhantes de Machado fornecia ao escritor "maior variedade de gestos com que exprimir as dolorosas conclusões de sua análise implacável". Os personagens de Machado de Assis merecem estar na galeria dos mais bem construídos da história da literatura, pois são, antes de tudo, humanos.

A SIMBOLOGIA DOS PERSONAGENS

Manuel Bandeira disse que a vida dos semelhantes de Machado fornecia ao escritor "maior variedade de gestos com que exprimir as dolorosas conclusões de sua análise implacável". Os personagens de Machado de Assis merecem estar na galeria dos mais bem construídos da história da literatura, pois são, antes de tudo, humanos.

Em O Alienista, Simão Bacamarte, protagonista do conto, representa uma clara sátira ao homem de ciência do positivismo. Já no primeiro parágrafo da história, o médico é descrito de forma hiperbólica, como autoridade das autoridades científicas. Lá pelo meio do conto, as entranhas do Alienista são descritas como egrégias. Pois onde já se viu entranhas que sejam admiráveis? Bacamarte é o retrato satírico do cientista que, dentro do mundo racional, está fora do mundo real; do homem que chega a escolher a esposa não pelo caráter, mas por "prendas" estritamente biológicas. Um dos pontos que confere humor ao texto é o fato de que, mesmo o médico sendo extremamente sagaz e genuinamente inteligente, isso não o impede de recair em erro.

Dona Evarista e Crispim Soares, nessa perspectiva, poderiam ser vistos como os seguidores cegos do Alienista, que em momento algum colocam em xeque suas ideias insanas, já que a autoridade atribuída ao médico não deve ser posta em dúvida. Eles representam aqueles que se dobram diante de uma doutrina sem antes analisá-la friamente, alvos perfeitos da ideologia: os que a aceitam sem refletir acerca dela. O boticário, inclusive, é a clássica figura do puxa-saco, sempre presente na obra de Machado, e um farmacêutico que poderia ser visto como um "médico menor". Daí que ele siga o Alienista e lhe repita todas as sentenças, hiperbolizando-as.

Do lado dos antagonistas de Bacamarte, temos o padre Lopes. Sempre querendo deixar as coisas exatamente como estão, à moda da Igreja, e sempre alerta para o exagero do estudo. Como símbolo da Igreja no conto, ele deve afastar tudo o que constituir perigo para a fé. O conflito de Simão com o padre Lopes pode ser visto como uma representação das dissidências havidas entre Igreja e Império durante o Segundo Reinado. Há um delicado equilíbrio: o intelectual tem do seu lado a razão, mas teme o poder da Igreja que, por sua vez, é poderosa, mas, cega de fé, se torna tola. Entretanto, é o padre quem dá a sentença final do encarceramento do Alienista em seu próprio manicômio. Temos, assim, a vitória da teologia sobre a ciência.

Por fim, há Porfírio, o barbeiro, que lidera os cidadãos na revolução contra a opressão da Casa Verde. Assim que um pouco de poder lhe cai nas mãos, ele passa a ansiar por mais e acaba conseguindo dissolver a Câmara. Só que quando ele consegue chegar ao Alienista, prefere entrar num acordo do que assassiná-lo, como a multidão ordena a altos brados. O barbeiro é a representação do velho ditado que diz que o poder corrompe.

Todos os movimentos dos personagens do conto dão origem a ações e acontecimentos completamente sem sentido. E é este tópico que analisaremos a seguir.

Gustavo Corção nos diz que a escrita de Machado de Assis

Vai de uma coisa aqui para outra acolá, passa para o clássico, galga do pequeno para o grandioso e volta do vultuoso para o microscópico, passa do real para o imaginário, e do imaginário para o onírico, às vezes numa progressão geométrica vertiginosa, outras vezes com um cômico aparato lógico, para rir-se da lógica ou para mostrar que existe efetivamente uma esquisita lógica entre as coisas que o vulgar julga distantes e desconexas. E é nesse processo de ilações conectadas pelo riso, que é uma forma de contemplação, ou na espécie de metafísica prática, que consiste principalmente a técnica da composição machadiana.

Machado de Assis nunca pretende a história como dele, mas a atribui aos cronistas de Itaguaí. Dado o absurdo das situações que ocorrerão no conto, o escritor se isenta da autoria do conto, por vezes fantasioso, e age como um simples contador das histórias de terceiros.

Uma das coisas que se nota no conto é que se Itaguaí não fosse uma cidade tão pequena, ele não funcionaria. No clímax da história, quatro quintos da cidade estão recolhidos à Casa Verde; fosse uma cidade maior, o conto não teria o mesmo efeito e a causa disso não é apenas o fato de que contos tendem a possuir unidade espacial.

O autor procura concentrar em Itaguaí personagens arquetípicos, a fim de satirizar um sistema social regido pela falta de valores. Nota-se que a população da cidadezinha se mostra facilmente manipulável, sempre a favor de quem possui mais poder de liderança. E não se trata só da população! O governo, representado pela Câmara, também se mostra totalmente corruptível, levado pelas ondas de quem estiver com a autoridade em mãos.

Uma vida nada fácil

Descendente de escravos alforriados, Joaquim Maria Machado de Assis era filho de um pintor de paredes. Tendo perdido a esposa cedo, o pai do futuro escritor casou-se novamente com uma mulher vendia doces em uma escola. Acredita-se que Machado tenha assistido algumas aulas nesta institução quando não estava auxiliando a madrasta no trabalho. Não lhe bastando ser mulato naquela época, o intelectual ainda precisou conviver com a epilepsia e com a gagueira durante toda a vida. Aprendeu francês com o funcionário de uma padaria e traduziu uma Victor Hugo ainda na juventude. A partir daí, Machado passou a colaborar em jornais e revistas de sua época; ao se iniciar na literatura, Machado já era conhecido como grande intelectual. A primeira fase de sua obra se identifica com o espírito do Romantismo, mas suas investidas literárias logo amadurecem e ele acaba por ser o autor a escrever o livro que é o marco do início do realismo brasileiro, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

" Pouco importa que os fatos sejam físicos ou morais; eles sempre têm suas causas. Tanto causas para a ambição, a coragem, a veracidade, como para a digestão, o movimento muscular e o calor animal. O vício e a virtude são produtos químicos, assim como o açúcar e o vitríolo."

Hyppolite Taine

Na época em que o conto se passa também estava havendo a consolidação da psiquiatria no Brasil. Na história, a presença de um ambiente como a Casa Verde, lotado de personagens loucos, não é, de modo algum, levado a sério, o que constitui uma expressa crítica à corrente literária naturalista. Se em tal escola literária encontramos personagens cheios de patologias, vítimas do meio social em que vivem, n'O Alienista a loucura está abraçada ao humor amargo de Machado de Assis. O ápice da hilaridade nonsense da obra se dá na descrição dos primeiros loucos internados na Casa Verde.

A própria figura do Simão Bacamarte representa, de certa forma, grande parte dos teóricos, influenciados por correntes filosóficas europeias, que caminhavam em círculos, não chegando a lugar algum. No naturalismo, o espírito científico era considerado critério supremo para a compreensão e a análise da realidade. Hyppolite Taine afirma: "Pouco importa que os fatos sejam físicos ou morais; eles sempre têm suas causas. Tanto causas para a ambição, a coragem, a veracidade como para a digestão, o movimento muscular e o calor animal.

O vício e a virtude são produtos químicos, assim como o açúcar e o vitríolo." O Alienista Bacamarte utiliza exatamente este pensamento como base de suas análises científicas, recolhendo à Casa Verde aqueles que estejam demonstrando sinais de loucura. Porém, no conto, não era preciso muito para que alguém fosse considerado louco pelo médico.

Na concepção naturalista, a verdade só é obtida através do conhecimento científico. O desfecho do conto focaliza exatamente nesse ponto, quando Simão Bacamarte se isola na Casa Verde, à procura de uma teoria científica consolidada, tomando a si mesmo como objeto tanto da teoria quanto da prática.

DE MÉDICO E LOUCO...

O humor não só é peça importante da literatura machadiana, como também serve de cerne para algumas de suas mais importantes obras, por exemplo, O Alienista. O conto é denso, multiestratificado, permitindo diversas interpretações, e Machado de Assis nos mostra, através de seu humor ácido, que o homem nada sabe sobre sua própria espécie: seremos nós todos meio loucos?

Revista Conhecimento Prático Literatura

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