quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Fernando Pessoas


Celebrado em nossa atualidade como um dos grandes poetas do século XX. Vale, por isto, sempre recuperá-lo e convidar à sua leitura
por Juarez Donizete Ambires*


A lembrança dos oitenta anos de sua morte é um incentivo para tanto. Leiamos, então, sua poesia, mas também outros textos deixados pelo próprio Pessoa. Buscando uma compreensão do seu universo, é preciso assim proceder. O poeta se explica e explica sua criação. Os textos de O eu profundo e outros eus foram produzidos com este intuito. Vão falar, por isto, de despersonalização e simulação, palavras-chave para o entendimento de um universo literário que se forjou na expressão heteronímica1. Forjou-se, ainda, no diálogo com os anseios da cultura portuguesa antecedente.

Heterônimos, na sua vez, são personalidades poéticas que Pessoa criou2. Não se trata, por isto, de um contexto ou de uma produção de poesia assinado por pseudônimos. O procedimento ou construção é algo mais complexo que isto. Fernando é um poeta dramático e os principais heterônimos criados têm sua personificação. Eles apresentam, devido ao fato, um histórico existencial, biográfico.

Assim, possuem uma data de nascimento, um tipo físico, um estilo de poesia, um talhe de letra. Em carta a Adolfo Casais Monteiro, o poeta dá ao crítico explicações sobre o seu universo poético. Com humor, afirma no mesmo texto que a esquizofrenia certamente explicasse os desdobramentos de personalidade. Mesmo a poesia assinada com o nome Fernando Pessoa é heteronímica. Na carta a Casais Monteiro o poeta nos alerta para o fato. Em sequência, informa que os seus principais heterônimos são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Noutros escritos (anteriores à carta), vai além e, construindo suas personas, afirma: Caeiro é o mestre dos outros dois heterônimos. É ainda o moço da província; vem do meio rural3 e sua formação escolar é a menor entre os três. Ele, contudo, é visto como mestre por Reis e Campos. Entre os três grandes heterônimos, é provavelmente aquele que evoca a infância e a ela nos remete. É amigo do menino Jesus, mas o quer livre do controle da igreja e sem o peso dos séculos de história que o cercam.



CONCEITO
HETERÔNIMOS
Heteronímia é o estudo dos heterônimos, estudo de autores fictícios ou pseudo autores que criam personalidades. Diferente dos pseudônimos, os heterônimos possuem uma personalidade. O criador do heterônimo é denominado "ortônimo", ele assume outras personalidades como se fossem pessoas reais. Fernando Pessoa foi um dos maiores ortônimos da Literatura, o poeta português criou os heterônimos Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Bernardo Soares.

REFERÊNCIA
CESÁRIO VERDE
Pode ser considerado representante da estética de sua época, ainda que não pudesse ser enquadrado em nenhuma das escolas poéticas dos países de língua portuguesa, é possível dizer que seu estilo influenciou pela relevância estética. Aproximar o poeta de reminiscências parnasianas, nuances do romantismo e notada afinidade com o realismo não é observação frívola. Cesário apresenta ligação com o Naturalismo pelo surgimento do meio como determinante comportamental em sua poética.

O poeta das sensações 
É ainda o poeta das sensações, e o mundo pelas sensações pode ser visto como prova do seu apego à infância e ainda à natureza. Caeiro sempre aconselha, por isto, a que sintamos (verbo intransitivo) e, na extensão, nos livremos do pensamento4. Lembremo-nos de que, para ele, pensar é estar doente dos olhos. E por ser o poeta dos sentidos, Pessoa o filia em sua gênese a Cesário Verde. Em verdade, associa-o ao estimulo sensitivo que encontrou em alguns poemas de Cesário5. Na extensão dos fatos, chama a atenção do leitor para os quarenta poemas realistas que o poeta nos legou. Neste conjunto, encontra-se, para exemplo, "Num bairro moderno", poema que é ode camuflada às sensações e a um mundo visto e captado por elas6.

Reis é o médico e o poeta que amam a cultura clássica. Os valores do universo greco-romano estruturam-lhe a vida e a captação das coisas. Devido ao fato, há em sua poesia certo tom melancólico. Sua escrita dialoga com o mitológico e convive com Virgílio, Horácio, Lucrécio. A busca do equilíbrio entre os sentidos e a razão preocupa-o, e ele expressa o fato. A filosofia estoica é também sua conhecida. Consigo e em sua poesia, o poeta guarda as lições de Sêneca, interage com o seu conteúdo. Enxergando o mundo como homem da cultura clássica, dirige-se aos deuses no panteão. Encaminha Cristo para este espaço e o vê como mais uma de suas divindades. Nas falas de Pessoa acerca deste heterônimo, é de todos o que possui o melhor português.



CITAÇÃO
LIVRO DO DESASSOSSEGO
É uma das grandes obras do escritor português Fernando Pessoa. Embora seja da autoria de Pessoa, vem assinado por um de seus heterônimos, Bernardo Soares. "É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?" (trecho de Livro do Desassossego)


CURIOSIDADE
LIVRO DO DESASSOSSEGO
É uma das grandes obras do escritor português Fernando Pessoa. Embora seja da autoria de Pessoa, vem assinado por um de seus heterônimos, Bernardo Soares. "É uma vontade de não querer ter pensamento, um desejo de nunca ter sido nada, um desespero consciente de todas as células do corpo e da alma. É o sentimento súbito de se estar enclausurado na cela infinita. Para onde pensar em fugir, se só a cela é tudo?" (trecho de Livro do Desassossego)



Álvaro de Campos, na vez dele, representa a modernidade. É o engenheiro de profissão, como também o heterônimo das viagens. Almada Negreiros7 o retratou de monóculo e maleta na mão. Porta maior elegância que a de Caeiro e a de Reis. Sua geografia é a urbana, a das grandes cidades. Dialoga com a solidão destes espaços e deambula. Sua segunda língua é o inglês. Dos três poetas é o de comportamento mais irascível. Não suporta se sentir conduzido. Fala da nulidade do ser, mas, à parte isto, traz em si todos os sonhos do mundo. Se uníssemos as três personas principais para a composição de um único homem, Álvaro certamente seria a adolescência e a instabilidade. Em sua forma de ser, expressa ainda o amor heterodoxo.

O ortônimo8 (mais um heterônimo, em nossa opinião) é a persona de o Cancioneiro e Mensagem. Em seu fazer poético, ele efetua a recolha das quadras populares para o primeiro livro. Depois, dialoga com Camões9, construindo um poema épico às avessas. Mensagem, em sua gênese, assume esta representação. Liga-se ainda ao diálogo que Pessoa trava com a história de Portugal. Em sua cultura, ele sabe que grita o anseio de se encontrar outro Luís Vaz10. Os conteúdos do presente negam as glórias do passado e O Ultimato inglês, de 1890, proíbe na África a afirmação do terceiro império. A alternativa ao impasse se faz, na perspectiva de Pessoa, pela literatura. Mensagem, anos depois, é sua resposta. Nos seus poemas, porém, há espectros.

Por isto, em todo o livro, o passado vem à tona e, nele, um poema épico invertido se processa. Nomes são evocados. O procedimento fora usado antes por Guerra Junqueiro11. Pátria12 - peça para teatro - constrói-se com este intuito. Unindose a Os Lusíadas13, torna-se o alicerce de Mensagem14, em cujas páginas muitos desfilam, mas presos às suas sinas. Isto ocorre com o Infante15, com Diogo Cão16. Também com Filipa de Lencastre17, aquela que só gênios concebia, mas trazendo em si um enigma. Ocorre ainda com D. Sebastião18, personagem que é o desejado, mas sempre engolido pela névoa. Em sua essência, o rei é de todos o mais malsinado. De algum modo, ele é Portugal também se fazendo em símbolos de tragédia e desesperança.

 AUTOPSICOGRAFIA
O poeta é um fingidor. 
Finge tão completamente 
Que chega a fingir que é dor 
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve, 
Na dor lida sentem bem, 
Não as duas que ele teve, 
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda 
Gira, a entreter a razão, 
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

(Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro')

Após a alçada dos heterônimos, viria, em escala de importância, um semi-heterônimo chamado Bernardo Soares. A ele Pessoa atribui O livro do desassossego, e se afasta do mundo da poesia. O livro é composto de centenas de fragmentos, dos quais Fernando publicou apenas doze. Seu narrador principal é o próprio Bernardo. Nos textos em prosa, os temas oscilam, para exemplo, entre as variações do estado psíquico do narrador e a paixão; entre a moral e o conhecimento. Devido a este fato, a produção se envolve com teores filosóficos e não apresenta uma narrativa linear. A circunstância dificulta sua leitura e a isto se alia a angústia que envolve os conteúdos. Trata-se, entretanto, de um grande livro a pedir os leitores dos heterônimos.

Com esta panorâmica, apresenta-se o centro da escrita de Fernando Pessoa. Em sua produção, todavia, a quantidade de poetas é imensa. Seus estudiosos já falam em 72 heterônimos19, proporção admirável. Ante o fato, porém, muitos, querendo explicar esta diversidade e riqueza, cogitam, em nossa leitura, hipóteses pouco acadêmicas. O que tem sido mais frequente é atribuir a origem de todo este processo a supostas vinculações do poeta ao Espiritismo, fato que descarta, a nosso ver, o homem criador. Com a aceitação da hipótese, a criação seria um ato religioso. Os heterônimos, assim, seriam momentos de psicografia20. Seriam, ainda, episódios de incorporação, o que poria fim à genialidade eclética do poeta.

Para nós, entretanto, interagir com Pessoa é não perder de vista o componente racional que dirige sua criação. Diz-nos o ortônimo que "o poeta é um fingidor"21, lembrando- nos sempre da dissimulação presente na escrita. Já em segunda instância, o aviso é o de que, com o fato, o mesmo fingimento é construção. Em nossa leitura, é esta a hipótese que o poeta concretiza. Agindo assim, de algum modo ele reafirma que fingidor e fingimento são palavras derivadas de fingir. A seguir, mostra que o mesmo verbo vem do latim fingere (Reis estaria por trás disto?), cujos sentidos são alguns. Primeiramente, ele abriga os significados de fingir, pintar, desenhar; já em segundo momento, os de desenvolver, construir e mesmo erigir.

Fernando Antônio Nogueira Pessoa (1888-1935) é o mais universal poeta português. Por ter sido educado na África do Sul, numa escola católica irlandesa, chegou a ter maior familiaridade com o idioma inglês do que com o português ao escrever os seus primeiros poemas nesse idioma. O crítico literário Harold Bloom considerou Pessoa como "Whitman renascido" e o incluiu no seu cânone entre os 26 melhores escritores da civilização ocidental, não apenas da literatura portuguesa, mas também da inglesa.

1 Antes de Fernando Pessoa, houve prévias heteronímicas. A Literatura Portuguesa se mostra propensa ao fato. A mais relevante tentativa antes do definitivo trabalho de Pessoa é o Fradique Mendes, de Eça de Queiroz. A mesma propensão, porém, viria de momentos anteriores. O seu princípio, para exemplo, já estaria em Sá de Miranda. Ao fim, apresentamos poema do poeta renascentista que, acreditamos, expõe o princípio. *"Cantiga sua" éo título da belíssima poesia em redondilha maior.

2 Este trabalho é também chamado de outramento ou a experiência de outrar-se.

3 Não por acaso, o livro que contém sua poesia se chama O guardador de rebanhos.

4 Por isto, para alguns, sua filosofia tem algo em comum com os conteúdos do Zen-budismo.

5 José Joaquim Cesário Verde - 1855 a 1886. Além das sensações, é o poeta da cidade. A urbe está em sua cena poética, tal como o andarilho que observa os seus fatos, deambulando por ela. Nestes procedimentos, irmana-se a Baudelaire em Flores do mal, de 1857.

6 No poema, há uma vendedora de verduras e legumes que é expressão física oposta à beleza e exuberância das mercadorias que oferece. Cria-se, para isto, uma relação de contraste que nos entra pelas mãos, olhos e boca. Acima de tudo, paira o sol - "o eterno colorista" - em referência ao Impressionismo, cuja pintura também lida com a luz, o mundo cotidiano e as sensações.

7 José Sobral de Almada Negreiros - 1893 a 1970. Com Pessoa e Sá-Carneiro abre o Modernismo em Portugal. Produz o Manifesto Anti- Dantas que é uma das essências inaugurais do movimento. Além de escritor, foi pintor, desenhista e caricaturista. Dá forma aos heterônimos por meio de desenhos, baseando-se nos dados biográficos ofertados por Pessoa.

8 Almada não nos deixa um desenho do ortônimo. Mário Brotas é quem o faz, associando-o ao mesmo tempo às imagens de Camões e do próprio Pessoa, no jogo do espelho.

9 Luís Vaz de Camões - 1524 ou 1525 a 1580.

10 O grito mais forte é provavelmente o da Geração de 70 nas três últimas décadas do século XIX. Os intelectuais que às suas ideias se filiam são os que organizam os grandes festejos do Tricentenário da morte do poeta em 1880.

11 Abílio Manuel Guerra Junqueiro - 1850 a 1923.
12 1896.
13 1572.
14 1934.
15 Infante é tratamento que faz referência ao Infante D. Henrique - 1394 a 1460 - terceiro filho de D. João I com Da. Filipa de Lencastre.

16 Navegador português do século XV - 1440 a 1486.

17 Princesa inglesa da Casa de Lencastre - 1359 a 1415. Com o marido - D. João I - funda a Dinastia de Avis em Portugal. A mesma dinastia é a que empreende os descobrimentos, fase da glória lusitana.

18 1554 a 1578. Ele morre em Alcácer Quibir, no Marrocos, e sua morte vai significar o fim da Dinastia de Avis e a perda da independência entre 1580 e 1640.

19 A cota nos é fornecida por Amélia Pinto Pais, autora de Fernando Pessoa, o menino da sua mãe, texto publicado no Brasil pela Companhia das Letras. Há mesmo heterônimos com nomes estrangeiros. É o caso, para exemplo, de Alexander Search.

20 Lembre-se de que, em Pessoa, psicografar é autopsicografar. "Autopsicografia" (nome de poema pertencente ao Cancioneiro) dános conta do fato. Na situação, o poeta se incorpora, o que não é, parece-nos, a tradição espírita. E mais: na psicografia, a mensagem que chega é sempre a de terceiros. Em Pessoa, não. As mensagens vêm dele mesmo ou dos muitos que há dentro dele.

21 A frase entre aspas é o primeiro verso do poema "Autopsicografia", anteriormente citado.

*Juarez Donizete Ambires é professor de Língua e Literatura Portuguesas no Centro Universitário Fundação Santo André. (http://lattes.cnpq.br/5231846291164013). contato: juarez.ambires@bolcom.br.

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