Eugênio Cunha
Kim Peek não consegue abotoar os botões de sua camisa. Para tarefas simples do dia-a-dia depende da ajuda dos outros. No entanto, sua habilidade para leitura e memorização é descomunal, ao ponto de guardar os códigos postais das principais cidades dos EUA e memorizar os livros que lê: já são mais de sete mil obras. Tão difícil quanto fazê-lo aprender as tarefas simples da vida diária é incluí-lo nas relações sociais. Foi inspirado nele o personagem que Dustin Hoffman interpretou no filme Rain Man. Assim como Peek, muitos autistas, classificados como de alto funcionamento, demonstram-se embaraçados no convívio social. Possuem dificuldades para interpretar emoções dos outros e para expressar as próprias.
Por outro lado, alguns, sem nunca terem estudado, conseguem aprender em questão de minutos o que uma mente normal levaria dias ou talvez meses. Observam por alguns momentos o objeto de estudo e guardam os mínimos detalhes. Suas regras de raciocínios são impossíveis de serem compreendidas pela mente de pessoas típicas.
Mas nem todos os autistas têm uma mente prodigiosa. A grande maioria não é assim. Entretanto, todos têm acentuada dificuldade de interação social. O autismo possui diferentes níveis de gravidade e está relacionado com outros sintomas que começam na infância. Há casos severos de alteração comportamental e de auto-agressão, mas é absolutamente certo que o diagnóstico precoce, o tratamento especializado e a educação adequada propiciam maior independência e melhoram a qualidade de vida em qualquer nível de autismo, tornando a interação entre escola e família altamente relevante.
CONHECENDO O AUTISMO
O autismo tem demandado estudos e indagações, permanecendo ainda desconhecido de grande parte dos educadores. O termo autismo é proveniente da observação de um conjunto de comportamentos agrupados numa tríade principal: comprometimentos qualitativos na comunicação, dificuldades na interação social e atividades restrito-repetitivas.
Leo Kanner publicou as primeiras pesquisas relacionadas ao autismo em 1943. Hans Asperger, em 1944, desenvolveu uma tese expondo um conjunto de sinais semelhantes aos descritos por Kanner em crianças na idade de três anos. Identificou semelhanças em vários pontos entre os dois quadros, mas ressaltou que as crianças descritas em seu estudo apresentavam uma inteligência superior e aptidão para a lógica e abstração, apesar de interesses excêntricos. O Transtorno de Asperger, considerado por muitos como autismo de alto funcionamento, é freqüentemente retratado em filme, como o caso de Kim Peek.
O autismo pode aparecer nos primeiros anos de vida ou durante o período do desenvolvimento da criança. Normalmente, as anormalidades se tornam aparentes por volta da idade de três anos. Alguns números relatam que a taxa média de prevalência do Transtorno Autista é de cerca 15 casos por 10.000 indivíduos, sendo mais comum entre os meninos.
Durante muitos anos, a leitura psicanalítica enfatizou o papel da função materna e paterna no aparecimento do autismo. Hoje, sabe-se que o autismo é um transtorno Invasivo, e as pesquisas científicas creditam o comprometimento a alterações biológicas, hereditárias ou não. É um conjunto de sintomas, onde a capacidade para pensamentos abstratos, jogos imaginativos e simbolização fica severamente prejudicada. A criança cria formas próprias de relacionamento com mundo exterior. Não interage normalmente com as pessoas, inclusive com os pais, e nem manuseia objetos adequadamente, gerando problemas na cognição, com reflexos na fala, na escrita e em outras áreas.
A observação é extremamente relevante na avaliação do grau de autismo. Na escola, deve-se utilizar o afeto e atentar para os estímulos peculiares do autista para conduzi-lo ao aprendizado, porque na educação quem mostra o caminho é quem aprende e não quem ensina.
Ainda que o espectro demande cuidados por toda a vida, o derrotismo é o maior inimigo da criança. É fundamental que a concepção na educação não seja centrada apenas na patologia, mas principalmente no indivíduo. O processo educacional limitado à concepção do déficit pode tornar a prática pedagógica restritiva, mas apoiada nas necessidades do aprendente e no amor do educador gera autonomia.
UM CURRÍCULO COM ATIVIDADES FUNCIONAIS
Uma criança típica aprende por meio de brincadeiras, com os pais, com os colegas e professores na escola. Faz amizades e adquire habilidades motoras e cognitivas. Simplesmente vivendo ela aprende. As impressões na criança penetram em sua mente pelos seus sentidos e a formam. Para uma criança autista as coisas não são bem assim. Há uma relação diferente entre o cérebro e os sentidos e as informações nem sempre geram conhecimento.
Os objetos não exercem atração em razão da sua função, mas em razão do estímulo que promovem. Assim, uma tesoura passa a ser apenas um objeto de contato sensorial, perdendo qualquer outra função. A criança típica aprende que um lápis chama-se lápis, podendo ela desenhar com ele ou também simbolizar um aviãozinho, mas a criança autista tem dificuldade para reconhecer sua utilidade, simbolizar, nomear e, por isso, passa a ter prejuízos na linguagem.
O autista precisa aprender a função de cada objeto e o seu manuseio adequado. Quando ele vê uma bola, por exemplo, não deseja chutá-la ou jogá-la com a mão, como todos normalmente aprendem, mas cria formas insólitas de manuseio. As estereotipias causam atraso no desenvolvimento psicomotor. Diante disso, tudo passa a ter valor pedagógico: os usos, as habilidades e as atividades mais elementares da vida.
A criança com autismo é especialmente atraída por objetos que giram e balançam. O professor ou professora deve aproveitar o próprio fascínio que os objetos exercem e ensiná-la o uso correto. Não deve permitir que permaneça obsorta em seus movimentos repetitivos. Para isso, vai necessitar de muita paciência e não esperar resultados imediatos. O grande foco na educação deve estar no processo de aprendizagem e não nos resultados, porque nem sempre eles virão de maneira rápida e como esperamos.
A educação na escola deve ser vivenciada na sala de recursos e na sala comum com os demais alunos. Normalmente, a concentração para atividades pedagógicas é muito pequena. Mas ainda que seja exíguo o momento que a criança permanece concentrada, ele deve ser repetido dia após dia, de maneira lúdica e agradável, para não haver enfado e irritabilidade. Ela precisa receber uma educação individualizada, com ênfase na mudança de alguns comportamentos e aprendizado de outros.
É normal a criança sentir-se desconfortável e intimidada em um ambiente novo. É normal buscar apoio nas coisas ou movimentos que lhe atraem. É normal a birra quando alguém a contraria. É normal o medo e a raiva ganharem proporções traumáticas. O professor tem que aprender a lidar com a realidade do mundo autista. Nessa relação, quem aprende primeiro é o professor e quem vai ensinar-lhe é a criança.
Muito raramente o autista irá interagir pelo olhar. Para receber o seu olhar, o professor precisa fisicamente abaixar-se até ele e olhá-lo nos olhos, ficando na sua estatura. Isto é muito significativo, porque é preciso atrair para educar. A figura masculina no ensino do menino autista é muito importante, porque a imitação e o condicionamento são mais enfatizados, o que torna a educação realizada por um homem extremamente relevante. Isto não obscurece, todavia, a importância da mulher, ao contrário, ratifica que as diferenças devem ser somadas. A mulher sempre nos faz lembrar o amor.
Para o aluno com autismo, o que mais importa é a aquisição de habilidades sociais e a autonomia. Para que a criança não se torne um adulto incapaz de realizar tarefas simples do dia-a-dia, ela precisa aprender atividades que a tornará mais independente durante seu crescimento. Essas atividades são escolhidas em razão da sua utilidade. Escovar os dentes ou vestir-se é necessário aprender. Entretanto, podem existir atividades ou habilidades específicas que poderiam ser treinadas, fazendo parte de um currículo funcional e prático.
Um currículo funcional para a vida prática compreende tarefas que podem ser administradas, em perfeita sintonia, em casa e na escola, mediante as etapas que devem ser alcançadas. Cada etapa superada demanda um novo desafio. Lista-se uma série de afazeres cotidianos que precisam ser realizados. O que é mais importante aprender naquele momento deverá ser priorizado. Inicialmente, alguns de maior facilidade até o pleno domínio. Posteriormente, acrescenta-se uma nova tarefa. Ainda que a criança não aprenda perfeitamente o que se busca ensinar, ela estará trabalhando sempre a interação, a comunicação, a cognição e os movimentos. Poderá haver mais erros do que conquistas, mas o trabalho jamais será em vão.
A fala do professor precisa ser serena, explicita e sem pressa. Ele deve sempre utilizar comandos de voz, nomeando os objetos e as atividades. É relevante que os comandos tenham alguma função. Por exemplo: se o aluno subir na cadeira, poderá não ter sentido para ele o professor dizer “não faça isso!”, porque nem sempre saberá o que fazer ao ouvir o “não”. O certo é dar-lhe um objetivo, dizendo: “coloque os pés no chão!”.
Para a construção de um currículo na escola é necessário verificar quais habilidades necessitam ser conquistadas. O primeiro passo do professor deverá ser o de desenvolver a capacidade de concentração na criança, pois o que mais impede o seu aprendizado é ausência de atenção ao comando. É claro que os estágios de aprendizagem de qualquer aluno não obedecem a regras fixas, principalmente na realidade do autismo, o professor deverá contar com sua sensibilidade para conduzir todo o processo.
Brinquedos pedagógicos ou materiais sensoriais adquirem grande importância em todo o processo de aquisição de saber. Um exemplo são os materiais montessorianos de encaixes geométricos, que são articulados em ordem de tamanho, espessura e peso, utilizados em escolas do ensino comum, mas que podem ser manipulados por qualquer aluno. Geralmente a criança autista obedece aos seus próprios esquemas mentais ao realizar os encaixes, porém, devido ao manuseio das peças que estimulam também a função cognitiva, aos poucos ela aprende a encaixá-los obedecendo à espessura, tamanho e peso. O bom material leva o aprendiz a exibir comportamentos e habilidades que vão variando até atingir formas mais refinadas.
Estudos que buscam tratamentos biológicos para o autismo ressaltam a importância de uma dieta alimentar para evitar a incidência de convulsões e melhorar o desempenho nas atividades. Revelam danos potenciais causados por metais pesados, como o mercúrio, e alimentos que contêm caseína, glúten e açúcar. A alergia alimentar e outros alergênicos podem alterar acentuadamente o comportamento, prejudicando o aprendizado.
Determinantes externos não formam um fator de origem do autismo, mas eles podem reforçar os sintomas. O ambiente modela a vida do indivíduo, é uma fonte de estímulos e de aprendizagens. Por isso, a reeducação comportamental do autista tem um papel primordial, mas todo sucesso depende da preparação do professor e da articulação entre escola e família, além do afeto e do amor, imprescindíveis na educação.
Transcrito da revista Direcional Educador
http://www.direcionalescolas.com.br/indexped.htm
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