O que era um movimento interessante, de respeito a minorias, tornou-se ridículo. Falo do politicamente correto, uma forma de opressão descoberta por gente que pretende parecer legal. Mas que quer mesmo mandar nos outros. O cúmulo do ridículo foi neste Carnaval, com a polêmica em torno das marchinhas, principalmente “Cabeleira do Zezé” e “Maria Sapatão”. São cantadas há décadas e, em minha opinião, nunca causaram mal a ninguém. De repente, a crítica. A primeira seria preconceituosa em relação aos homens homossexuais. A segunda, às mulheres homossexuais.
Um argumento contra essas marchinhas se baseia na diferença entre orientação sexual e identidade de gênero. Ou seja, uma pessoa pode fisicamente assumir um sexo diferente daquele com que nasceu. Mas isso não vai, necessariamente, determinar por quem sente atração. Simplificando: alguém nascido num corpo de homem pode se sentir fora do corpo certo. Se mudar de gênero, pode continuar tendo atração por mulheres, por que não? Há casos assim, em todo o mundo. A marchinha “Maria Sapatão” seria, de acordo com alguns, preconceituosa por mexer com o gênero. Ora, façam-me o favor! Tudo acaba proibido. A dupla intenção é um dos esteios da arte, seja marchinha considerada arte ou não. Antes foi a vez de “O teu cabelo não nega”, acusada de propagar o racismo.
Já li uma versão de contos de fadas politicamente corretos. Reescritos, óbvio. Não há nada mais incorreto que esses contos deliciosos em que João e Maria atiram a Bruxa dentro do forno e Chapeuzinho Vermelho é devorada pelo Lobo. Na versão higienicamente recontada, até o Lobo ficou bacana. Odiei. Quem conhece a psicologia dos contos de fadas sabe que auxiliam a criança a lidar com seus sentimentos, inclusive de agressividade. Sou apaixonado por eles. Será que algum dia vão proibir edições antigas? De Monteiro Lobato, nem se fala. É o maior escritor infantil brasileiro. Devagarzinho, está sumindo das escolas. É acusado de racismo. A boneca Emília, de fato, trata Tia Anastácia, a empregada, de “negra beiçuda”. Lobato escreveu em um contexto histórico.
Não seria mais rico auxiliar as professoras a explicar esse contexto aos alunos, demonstrar como o respeito ao negro cresceu ao longo dos anos, explicar as leis antirracismo? Mais fácil esconder Lobato, que me formou com seus livros. Nem por isso sou racista, posso dizer de boca cheia. Fui o primeiro autor no mundo a colocar uma protagonista negra em novela de televisão: Xica da Silva, que lançou a maravilhosa Taís Araújo na extinta TV Manchete, há 20 anos. Nem por isso consegui respeito. Quando escrevi A Padroeira, na Globo, falando sobre Nossa Senhora Aparecida, mostrei negros escravizados. Um expoente do movimento negro quis me processar. Lembrei:
– É um fato histórico. Vocês deviam denunciar a escravidão todo o tempo, foi o grande holocausto negro.
– Seria mais bonito você escrever sobre negros que superaram suas condições e ficaram famosos – foi a resposta.
A réplica dele não foi ruim. Mas o holocausto existiu. Pode ser escondido? Julgam politicamente correto. Assim como a palavra “mulata”, superincorporada ao vocabulário, que agora está no índex das proibidas.
Escrever para o grande público é correr o risco de ser linchado sempre pelo politicamente irado. Outro dia estava no aeroporto. Fui ao banheiro. Lá estava, numa portinha: “Para pessoas de baixa estatura”. Correto. A palavra anão é proibida pelo politicamente chato. Por que, não sei. Trocar o modo de falar aumenta a estatura? Não aumenta. Falar em afrodescendente muda o tom da pele? Não muda. O que muda é a maneira como se fala. O contexto em que a frase é usada, seu significado maior. A patrulha do politicamente chato só atrapalha, porque as coisas continuam como são.
A portinha do toalete me fez pensar. Entre as protagonistas de minha próxima novela há uma anã. Desculpem-me, uma jovem de baixa estatura. Mas, na história, a própria mãe não gosta dela. Para denunciar o que essas pessoas passam – inclusive a falta de banheiros adaptados em restaurantes – tenho de mostrar a parte ruim. Senão, escreverei um conto de fadas falso, como aquele em que Chapeuzinho fica amiga do Lobo.
Muito bem, podem me apedrejar. Vou falar de tudo isso sim, incluindo preconceito racial. Não vou maquiar a realidade como o politicamente burro faz. É levantando os problemas que se constrói uma nova visão. Não pulo Carnaval. Mas adoraria ter entrado num bloco só para cantar “Olha a cabeleira do Zezé”.
Revista Época
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