A emergência do nome de Lima Barreto no ano do centenário do seu nascimento, leva que se reconsidere uma série de conceitos e julgamentos relativos à sua atuação na época em que viveu como agente de crítica social e como escritor. Ao mesmo tempo, cabe uma reanálise da sua obra, seu situacionamento como escritor, a importância dos seus livros e a contribuição que deu numa articulação unitária homem-escritor à nossa cultura.
Lima Barreto é um escritor que foi colocado na penumbra deliberadamente pelos setores dominantes e privilegiados da indústria literária no Brasil. Era pobre, negro, anarquista e, por decorrência de tudo isto, antimilitarista. Sua obra, ao nosso ver, não é porem apenas a de um grande romancista, mas a de um escritor que criou uma nova linguagem para a novelística brasileira. Quero acentuar que, propositadamente, escrevi que ele conseguiu para o nosso romance uma nova linguagem e não um estilo novo. Até Lima Barreto a linguagem do Romance Brasileiro esbarrava em uma série de preconceitos, preconceitos que, até hoje, são perfilhados por muitos dos seus críticos, os quais, escolhendo como referencial básico de perfeição a obra de Machado de Assis, encontram imperfeições em tudo aquilo que, em Lima Barreto, era o transbordar do convencionalismo do linguajar que tinha as suas matrizes em Antônio Feliciano de Castilho, para poder expressara riqueza de pensar e de agir do nosso povo. Esta posição inovadora de Lima Barreto não advinha, porém, como muitos de seus críticos apontam, de um menor adestramento seu como escritor ou insuficiente domínio da língua, mas, pelo contrário, era uma posição consciente, que refletia essencialmente a sua posição como homem e como artista em relação à realidade brasileira.
Nasceu Lima Barreto no Rio de Janeiro em 1881 e morreu em 1922. Nasceu em um subúrbio, quando a cidade crescia, urbanizava-se, adquiria dimensões de grande urbe. O provincianismo da velha capital imperial era substituído pela visão francesa que as elites tinham do mundo. Após a abolição do tráfico de escravos africanos, em 1850, houve uma grande movimentação na aplicação de capitais de ex-traficantes em áreas que se dinamizavam, especialmente na região do café. O segundo Banco do Brasil foi fundado usando-se parte desses capitais imobilizados. Mauá, seu fundador, afirmará em sua autobiografia (que nada mais foi do que um relatório aos credores quando faliu) haver se aproveitado desses capitais, disponíveis e congelados após a extinção desse “ilícito comércio".
Com a extinção do tráfico, há uma dinamização surpreendente na economia brasileira.
Este dinamismo econômico do Rio de Janeiro, onde se centrava o eixo da vida financeira e administrativa do país, poderá ser comprovado com alguns dados suplementares. Por exemplo: segundo Castro Carreiro, de 1850 (ano da abolição do tráfico) a 1860, foram concedidos 71 privilégios industriais para a incorporação de 14 bancos de depósitos e descontos e alguns de emissão; criaram-se 3 caixas econômicas; organizaram-se 20 companhias de navegação a vapor, 23 companhias de seguros, 4 de colonização, 8 de estradas de ferro, 2 de rodagem, 4 de carris urbanos com tração animal, 8 de mineração, 3 de transportes e 2 de gás.
Evidentemente, nem todo este dinamismo era sinônimo de desenvolvimento autônomo da nossa economia. Os capitais estrangeiros já entravam agressivamente, apossando-se daquelas áreas de atividades mais lucrativas e estrategicamente interessantes. Lima Barreto, em várias partes do seu “Diário Íntimo" demonstra a sua inquietação e indignação quanto a essa penetração, fato que também é confirmado nos seus artigos de jornal. A velha Rio de Janeiro sonolenta e bocejante acorda para ganhar o tempo que a economia escravista a fez perder.
É neste período de transformação urbana que Lima Barreto toma consciência do mundo. E. com a sua sensibilidade, procura encontrar a maneira de articular em forma de linguagem literária, todos aqueles elementos novos de falar e de agir, pensar e atuar que surgiam. A genialidade de Lima Barreto está justamente em ser o escritor que, situando-se como artista no centro deste universo dinâmico e contraditório, conseguiu a síntese magnífica de representá-lo usando uma linguagem literária organicamente adequada a esse dinamismo.
Isto, porém, foi pouco compreendido até hoje.
Mesmo alguns críticos que se dizem compreensivistas em relação à obra de Lima Barreto não escapam a essa incompreensão. Procuram fazer comparação entre um Lima Barreto “desleixado” e um Machado de Assis que seria a maior organização de escritor de todos os tempos no Brasil. Tal equívoco foi rebatido pelo próprio Lima Barreto, quando escreveu:
“sempre achei no Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma porção de sestros pueris. Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem de Maupassant, de Dickens, de Swift. Até em Turgueneff, em Tolstoi, poderiam ir buscar os meus modelos; mas em Machado, não! ‘Le moi...’ Machado escrevia com medo de Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar; eu não tenho medo da palmatória do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se me rebaixo ou se me exalto. Creio que é a grande diferença."
Nunca um escritor confessou que sua linguagem estava a serviço de uma verdade social com mais ênfase em nossa literatura. Vemos a consciência do escritor que colocava seu instrumental de comunicação a serviço de um pensamento e não de um formalismo literário, fruto de moda e ocasião. Não querer compreender isto é fugir de um dos problemas mais importantes para a valorização da sua obra. O escritor que procurava reformular a sua linguagem para poder dizer tudo aquilo que de novo, problemático e conflitante surgia na sociedade carioca da sua época, era considerado por isso mesmo pelos críticos de desmazelado na forma e incapacitado estilisticamente.
A partir desta incompreensão, passam a caracterizar Lima Barreto apenas por alguns aspectos temáticos da sua obra. Chamam-no, por isto, de romancista urbano, aquele que retratou a paisagem e os costumes do Rio de Janeiro. Isto é, caracterizam Lima Barreto por aquilo que é apenas o condicional e acidental, ou seja, o fato de ele escrever tendo como tema a cidade do Rio de Janeiro. No entanto, antes dele, Manoel Antônio de Almeida, com o seu pioneiro Memórias de um Sargento de Milícias, já havia retratado cenas e costumes do Rio e Joaquim Manuel de Macedo havia retratado a sua paisagem de forma romântica, sem falarmos nos romances do próprio Machado de Assis e de Alencar.
O que há de inovador, de acréscimo, nos romances de Lima Barreto em relação àqueles que o precederam? É que enquanto Manoel Antônio de Almeida retratava de forma magistral, diga-se de passagem, o Rio de Janeiro “no tempo do rei", como se fosse um etnógrafo, registrando os fatos, embora algumas vezes mostrasse o seu pensamento no decorrer do livro; Macedo retratasse um Rio de Janeiro romantizado e afrancesado e Machado de Assis jamais tivesse visto e sentido a paisagem carioca. Lima Barreto pegou, dessa cidade que se desenvolvia, o seu drama humano, as suas contradições, seus conflitos, a expansão de uma cidade que, da forma como estava sendo feita, produzia nos seus habitantes do polo oprimido o que poderíamos chamar de mutilações gritantes nas suas personalidades. Daí ter concentrado a sua ótica de romancista nas pessoas dos subúrbios; na mulher mestiça explorada pela sua situação social, sexual e de cor e no jovem que vem do interior e sente o choque com os valores da cidade que procura o progresso a qualquer custo. Há também os visionários, os utopistas e os críticos da situação política. Foram os exploradores e explorados, por isto, a argamassa do seu livro. Retrata os exploradores nos seus diversos aspectos econômicos, sociais, políticos e psicológicos dentro de um enquadramento em que fica implícito o seu pensamento crítico, e retrata os explorados com a ternura que tinha para com aquela população de subúrbios, formada, na sua maioria, de pardos e negros, desajustados e pobres que sofriam ainda o traumatismo da escravidão terminada recentemente. Aí está a grandeza de Lima Barreto como escritor. Viu o dinamismo do crescimento da cidade não como uma adição de mais casas, prédios, bancos, ruas ou veículos de comunicação, mas como um processo tortuoso e doloroso de urbanização, no qual os oprimidos estavam pagando um preço muito alto: construíam a cidade e eram expulsos dos espaços construídos.
Por exemplo, no Recordações do Escrivão Isaías Caminhai (seu livro de estreia), escrito na primeira pessoa, diz o personagem central:
“foram de imensa angústia esses meus primeiros dias no Rio de Janeiro. Eu era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que se apoie e donde tire vida; era como um molusco que perdeu a concha protetora e que se vê a toda hora esmagado pela menor pressão.
“Oprimido com uma antevisão de misérias a passar, de humilhações a tragar, o meu espírito deformava tudo o que via. Os menores fatos que lhe caíam ao alcance, eram aumentados de um lado, diminuídos de outro; fazia-se outra coisa muito diversa para minha sensibilidade enfermiça que a imaginação guiava para sentir todos os terrores e ameaças.”
Onde está o deslumbramento do recém-chegado à “Cidade Maravilhosa"? Pelo contrário. Isaías Caminha, que era além de tudo mestiço, antevia, já, as situações que teria que enfrentar naquele mundo rigidamente estratificado, cheio de conivências e interesses.
Este choque causado no personagem é de uma precisão notável. Mostra como a nova realidade urbana, ao invés de criar um entusiasmo pueril em quem chegava, pelo contrário, criava um clima de insegurança e medo de enfrentá-la. Este estado de espírito é que o levou a dizer logo depois:
“Oh, quantas vezes não apelei para o Acaso, para o Milagre! Quantas! Os deuses vinham-me ao pensamento com o seu indispensável cortejo de fadas e de anjos..."
A trajetória do personagem, cheia de vicissitudes, não cabe ser resumida aqui, mas, no final da ação, ele aparece vitorioso, jornalista e economicamente próspero. Mas a que preço?,.. Lima Barreto consegue conduzir magistralmente a transformação interior do personagem à medida que as situações sociais se modificam. Agora, Isaías Caminha era um jornalista a serviço de patrões poderosos. Mas ele, depois de recusar subir no apartamento de uma mulher que lhe fora praticamente oferecida pelo patrão, sai pensando:
“Vim vagamente a pé até ao Largo da Carioca, sem seguir meu pensamento. Vinha triste e com a inteligência funcionando para todos os lados. Sentia-me sempre desgostoso por não ter tirado de mim nada de grande, de forte e ter consentido em ser um vulgar assecla e apaniguado de um outro qualquer, tinha outros desgostos, mas esse era o principal. Por que o tinha sido? Um pouco devido aos outros e um pouco devido a mim”.
E o romance termina praticamente.
Em outro dos seus romances, Lima Barreto procura retratar os problemas da cidade através de um personagem misto de filósofo e crítico social: M. J. Gonzaga de Sá. Tudo se passa como se o personagem falasse pelo registro que o seu biógrafo, Augusto Machado, conseguiu reproduzir na sua biografia. Nos passeios que tinha com o seu biógrafo, Gonzaga de Sá fazia deslizar a problemática do Rio de Janeiro. Ela desliza num misto de ironia e critica. Nada de caricatural, como pretendem alguns dos seus críticos. Lima Barreto não caricaturou, mas, pelo contrário, soube, para situar simbolicamente o momento carioca, escolher como personagens pessoas existentes. Mas, no romance, todas elas foram recriadas de tal forma que ficaram com símbolos das mazelas de uma época: das suas discriminações e dos seus privilégios. Gonzaga de Sá está com o amigo quando passa por eles o Barão do Rio Branco, ao que ele exclama:
“Este Juca Paninhos (era outro modo dele tratar o Barão do Rio Branco) faz do Rio de Janeiro a sua chácara... Não dá satisfação a ninguém... Julga-se acima da Constituição e das leis... Distribui o dinheiro do Tesouro como bem entende... É uma espécie de Roberto Walpole ... O seu sistema de governo é a corrupção... Mora em um palácio do Estado sem autorização legal; salta por cima de todas as leis e regulamentos para prover nos cargos do seu Ministério os bonifantes que lhe caem na graça. Em falta de complicações diplomáticas, ele as cria, para mostrar o seu atilamento de Tayllerand ou a sua astúcia bismarqueana. É um autocrata, um quediva, porque isto é bem um futuro Egito...”
Onde a caricatura, no caso? Pelo contrário, usando a pessoa do Barão do Rio Branco, ele criou um tipo encontrável até hoje na nossa sociedade. Partindo do particular para o geral, Lima Barreto sintetizou aquilo que é fundamental na pessoa e transformou-a em um tipo literário que expressa toda uma categoria social e política. Não fez caricatura, fez síntese.
Em outros romances usa o mesmo processo de recriação e de síntese usando um personagem real, fato que determinou a que muitos críticos, por simpatia àqueles que serviram de matrizes à criação desses tipos literários, atacassem Lima Barreto, tachando-o de caricatural e dogmático. Quando, em Triste Fim de Policarpo Quaresma usa o mesmo processo com a pessoa de Floriano Peixoto, foi igualmente combatido.
Quaresma havia mandado a Floriano um memorial com os pontos de vista que, segundo ele, poderiam salvar o Brasil. Finalmente um dia encontra-se com o Marechal:
— V. Ex. já leu o meu memorial. Marechal?
Floriano respondeu lentamente, quase sem levantar o lábio pendente:
— Li.
Quaresma entusiasmou-se:
— Vê V. Ex como é fácil erguer este pais. Desde que se cortem todos aqueles empecilhos que eu apontei, no memorial que V. Ex. teve a bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação defeituosa e inadaptável às condições do país, V. Ex. verá que tudo isto muda, que em vez de tributários, ficaremos com a nossa independência feita... Se V. Ex. quisesse...
— Mas pensa você. Quaresma, que eu hei de pôr enxada na mão de cada um desses vadios?! Não havia exército que chegasse...
Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:
— Mas não é isso. Marechal. V. Ex. com o seu prestígio e poder, está capaz de favorecer, com medidas enérgicas e adequadas, o aparecimento de iniciativas, encaminhar o trabalho, de favorecê-lo e torná-lo remunerador... Bastaria, por exemplo...
Atravessaram um portão da velha quinta de D. Pedro I. O luar continuava lindo, plástico e opalescente. Um grande edifício inacabado que havia na rua, parecia terminado com vidraças e portas feitas com a luz da lua. Era um palácio de sonho.
Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou: ele se despedia do Major, dizendo com aquela sua placidez de voz:
— Quaresma, você é um visionário...”
E de fato o era: Policarpo Quaresma termina sendo fuzilado, por ordem de Floriano Peixoto, no Boqueirão, para onde foram enviados os derrotados da revolta de Saldanha da Gama.
A visão utópica do personagem era colocada, pelo autor, entre uma sincronia com o seu pensamento e uma distância para que o criador não mutilasse a desenvoltura autônoma da criação. Com Floriano, novamente Lima Barreto transforma-o em uma síntese, um tipo literário até hoje válido. Não houve caricatura, também, mas um poder de síntese, a partir de uma pessoa para a criação de um personagem.
Por outro lado, a sua ficção, como já disse antes, através de uma linguagem reelaborada, mas seguindo o ritmo e certos componentes sintáxicos do falar carioca da época, não apenas retratava, como o fazia Manuel Antonio de Almeida, mas projetava o personagem que era representativo daquele modo de viver, do meio, das situações particulares e dos dramas da época. Daí nós vermos Policarpo Quaresma ir ficando cada vez mais ilhado, abandonado e hostilizado na defesa da sua utopia urbana e agrária, até morrer tragicamente. O romance tinha de terminar como tragédia onde o componente político se dilui ou se incorpora à tragédia do herói solitário e que, por isto mesmo, não tinha condições de elaborar uma proposta de nova ordenação social que não fosse utópica. Mas, dentro desta utopia estavam embutidos elementos de realidade e de crítica. Lima Barreto, ainda no Policarpo Quaresma pinta o despertar da consciência crítica de uma das suas personagens sobre o problema agrário.
Olga, uma personagem do romance, encontra-se em um lugarejo e trava diálogo com um trabalhador rural.
“Olga encontrou o camarada cá em baixo, cortando a machado as madeiras mais grossas; Anastácio estava no alto, na orla do mato, juntando a ancinho as folhas caídas. Ela lhe falou.
— Bons dias, sá dona.
— Então trabalha-se muito, Felizardo?
— O que se pode.
— Estive ontem no Carico, bonito lugar...
— Onde é que você mora, Felizardo?
— É doutra banda, na estrada da vila.
— É grande o sítio de você?
— Tem alguma terra sim senhora, sá dona.
— Você por que não planta para você?
— Qua sá dona! O que é que a gente come?
— O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.
— Sá dona tá pensando uma coisa e a coisa é outra. Enquanto planta cresce, e então? Quá sá dona, não é assim.
Deu uma machadada; o tronco escapou; colocou-o melhor no pocador e, antes de desferir o machado, ainda disse:
— Terra não é nossa... E fromiga? Nós não tem ferramenta ... isto é bom para italiano e alamão, que governo dá tudo... Governo não gosta de nós...
E a terra não era dele? Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas, com as casas em ruínas... Por que esse acaparamento, esses latifúndios inúteis e improdutivos?"
Como podemos ver, Lima Barreto estabelece um diálogo entre dois personagens um camponês e uma senhora pequeno-burguesa e desse diálogo surge o pensamento reflexivo de Olga sobre o problema que a exposição da realidade da agricultura descrita pelo personagem camponês lhe provocou. E a personagem Olga sai pensando, pela primeira vez, na existência do problema da terra no Brasil. Esta reflexão de Olga, adquirindo já consciência crítica, surge do conhecimento da realidade de forma direta e a consequente reflexão feita sobre a exposição do camponês. Antes, ela já havia tomado o primeiro contato com a realidade rural.
“O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, porque as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele sapé sinistro e aquele “sopapo" que deixava vera trama das varas, como o esqueleto de um doente. Por que ao redor dessas casas não havia culturas. uma horta, um pomar?"
A resposta a essas indagações ela encontra na exposição que o camponês faz diretamente da sua situação. Embora ao deixá-lo continue interrogando, estabeleceu a dúvida sobre a justiça daquela realidade.
Já dissemos que Lima Barreto nasceu em 1881 e faleceu em 1922. Durante esse período, dois acontecimentos fundamentais para o mundo foram por ele observados: a primeira Grande Guerra e a Revolução Bolchevique. Esses dois acontecimentos, é interessante notar, não aparecem em primeiro plano nos seus romances. No entanto, é no seu Diário Íntimo e nos seus artigos de jornal que ele manifesta o seu pensamento sobre esses fatos. Embora não se possa admitir que ele fizesse isto deliberadamente, o certo é que prefere refletir na sua obra de ficção dois outros acontecimentos, esses de âmbito nacional: a Abolição e a República. Talvez por esta razão tenha projetado, em 1903 escrever a História da Escravidão Negra no Brasil e a Sua Influência na Nossa Nacionalidade, obra que ficou apenas no projeto. No ano seguinte, elabora outro projeto, registrado no seu Diário Íntimo. O seu esboço era o seguinte: Tibau, seu personagem central, é filho de mãe solteira, abandonado pelo pai. Ela educa o filho com grande dificuldade. Ele chega a estudar medicina, mas é obrigado a abandonar o curso no terceiro ano. Vai lecionar História do Brasil, mas como não tinha nenhum título de doutor, o diretor consegue-lhe um de Major da Guarda Nacional. Recebendo inesperadamente a herança de um avô, Tibau funda uma sociedade de folclore que se destinava a recolher contos, tradições e a nossa poesia popular. Por não ter título de doutor é debicado por jornalistas, poetas e estudantes. Morre numa estalagem às 7 horas da noite, estalagem a que se recolhera com um preto velho, o Nicola, que fazendo ganhos, ia-o fazendo viver.
Nesta época, Lima Barreto estava muito preocupado com o problema do negro no Brasil, preocupação, aliás, que nunca o abandonou.
Escrevia, por isto, no seu Diário Íntimo: “É triste não ser branco", com isto revelando (e denunciando) todas as barreiras sociais e raciais que uma falsa democracia racial estabeleceu contra a comunidade negra no Brasil. Ainda no Diário Íntimo assim se refere a José do Patrocínio, por muitos considerado o Tigre da Abolição:
“Quem conheceu o Patrocínio como eu o conheci, lacaio de todos os patoteiros alugado a todas as patifarias, sem uma forte linha de conduta nos seus atos e nos seus pensamentos, não acredita que pudesse ter sido, como dizem, o Apóstolo da Abolição. Necessariamente, ele se serviu da coisa como um meio de arranjar facilmente dinheiro, explorou-a em seu proveito, na parte pecuniária e na parte gloriosa. Isso ele o fez com o máximo interesse e a máxima baixeza. Eu sei bem que baixos móveis levam a altas coisas, mas isso não se deu com o Patrocínio”.
“A Lei de 13 de Maio vinha de longe; era a convicção da nação a injustiça da escravidão, não precisava de jornalistas nem evangelizadores para mostrar-lhes a injustiça".
Mas, exatamente para ter um órgão no qual pudesse veicular as suas ideias e daqueles que não frequentavam as rodas literárias dominantes, funda, em fins de 1907, a revista Floreal.
Surge a publicação com as primeiras agitações grevistas no Rio de Janeiro. A exemplo do que acontecia em São Paulo, quando operários anarquistas e intelectuais se uniam para a edição de jornais políticos, no Rio de Janeiro a mesma coisa aconteceu. Como diz Francisco de Assis Barbosa
“no Rio de Janeiro os agitadores também se unem aos literatos. Há uma pequena imprensa libertária, impulsionada por um operário. Mota Assunção, e por um alferes do Exercito, Joel de Oliveira, que conta com o apoio entusiástico dos intelectuais. Fábio Luz e Elísio de Carvalho, entre outros. Foi este contato que possibilitou, sem dúvida, a criação da Universidade Popular, de vida efêmera, e mais tarde o I Congresso Operário".
Na apresentação da nova revista, escrita por Lima Barreto, os seus fundadores colocavam-se contra as
"injunções dos mandarinatos literários aos esconjuros dos preconceitos, aos formulários das regras de toda a sorte, que nos comprimem de modo tão insólito no momento atual."
No entanto, como era de prever-se, a empresa fracassou e a revista tirou apenas quatro números.
Com a guerra 1914-1918, Lima Barreto, já mais amadurecido, escreve contra a hecatombe. Inicialmente, adere à Liga dos Aliados, mas, logo depois, refaz a sua posição apoiando a posição dos anarquistas. E começa um período de denúncias. No Correio da Noite escreve um artigo intitulado O Patriotismo, e, em carta a um amigo:
“As nossas atuais pátrias não têm outra base senão na política que, desde a Renascença, tem determinado e regulado toda a nossa atividade. Desde que percamos essa ilusão de governo, elas não terão mais razão de ser. Nós, às vezes, nos fazemos fortes, porque temos um mais forte que nos desafia, que nos insulta. É o que está acontecendo comigo, nesta questão de pátria. Enquanto estiver de pé a estúpida agressão alemã, para as ideias (ilegível) do domínio universal e a falsidade americana, com os seus desejos de açambarcamento brutal da América, eu não entrarei na liça para combater os patriotas. A pátria me repugna, Avelino, porque a pátria é um sindicato de políticos e argentários universais, com os escutas em todo o mundo, para saquear, oprimir, tirar o couro e o cabelo dos que acreditam na honra, no trabalho, na religião e na honestidade".
O documento é de 1916.
Este desabafo violento de Lima Barreto mostra como intuitivamente ele compreendia a Guerra de 1914-1918 como uma guerra entre imperialismos e, por isto, preferia ficar neutro. No entanto, não demonstra, como poderá parecer, nenhum niilismo político porque, em 1919, escrevia:
"Eu que me julgo muito pouco patriota, não desejo absolutamente ver o Brasil humilhado e estrangulado por outra pátria. Quero que não seja nenhuma, mas, desde que se trate de humilhação, rebaixamento do Brasil, por qualquer país, eu sou brasileiro".
Complementando esta sua posição, combatera o serviço militar obrigatório desde a mocidade, ao tempo em que Olavo Bilac saía em pregação recomendando-o aos jovens brasileiros. Lima Barreto, ao contrário da maioria dos intelectuais da sua época, era antimilitarista. O seu antimilitarismo está sintetizado em relação ao Brasil neste registro de seu Diário Íntimo:
“Os oficiais do Exercito no Brasil dividem com Deus a onisciência e com o Papa a infalibilidade”.
Lima Barreto, a partir de 1915 detém-se em analisar os problemas internos do Brasil em diversos jornais. No Correio da Noite daquele ano escreve que
“O nosso regime atual é da mais brutal plutocracia, é da mais intensa adulação aos elementos estranhos, aos capitalistas internacionais, aos agentes de negócios, aos charlatães tintos com uma sabedoria de pacotilha”.
Dois anos depois, investe contra o ministro da Agricultura José Bezerra e escreve contra ele no jornal ABC
“O açúcar (o ministro havia sido acusado de haver provocado a alta do produto), produção nacional, a mais nacional que há, que é vendida aos estrangeiros por 6$000 a arroba, é vendida aos retalhistas brasileiros por 10$000. Sabem quem é o chefe de semelhante bandalheira? É o Zé Rufino Bezerra Cavalcanti”.
Em 1917, escrevia um artigo intitulado Sobre a Carestia, pouco tempo depois do governador paulista Altino Arantes haver tomado medidas terroristas contra os grevistas. Dizia entre outras coisas:
“A nossa República, com o exemplo de São Paulo, se transformou no domínio de um feroz sindicato de argentários cúpidos, com os quais só se pode lutar com armas na mão. Deles saem todas as autoridades; deles são os grandes jornais; deles saem as graças e os privilégios; e sobre a Nação eles teceram uma rede de malhas estreitas, por onde não passa senão aquilo que lhes convém. Só há um remédio: é rasgar a rede à faca, sem atender a considerações morais, religiosas, filosóficas, doutrinárias, e de qualquer natureza que seja”.
Mas, Lima Barreto volta ao assunto comentando a expulsão do país dos grevistas de São Paulo, na sua maioria estrangeiros, depois do Supremo Tribunal Federal haver-lhes denegado habeas corpus. Diz ele:
“Tais fatos que são de ontem, não têm sido concatenados por todos, nem tampouco combalidos a devido tempo; e, se o fossem, não teriam certamente os doges de São Paulo conseguido o que desejavam, isto é, obter um total domínio sobre os poderes políticos do país, de modo a coroar a sua nefasta e atroz ditadura com a decisão de 6 do corrente, do Supremo Tribunal, negando habeas corpus aos infelizes do Curvelo, rasgando a Constituição, obscurecendo um dos seus artigos mais simples e mais claros, com farisaicas sutilezas de doutores de escolásticas e o tácito e suspeito apoio de quase toda a imprensa carioca, sem um protesto corajoso no Congresso, realizando-se toda essa vergonha, todo esse rebaixamento da independência dos magistrados perante o povo “bestializado”, calado de medo ou por estupidez, esquecido de que a violência pode, amanhã, voltar-se contra um qualquer de nós, desde que tal sirva à plutocracia paulista e ela o exija.”
Mas, sobre política internacional, a radicalização de Lima Barreto é progressiva. Após a revolução bolchevique, passa a intitular-se maximalista. Em maio de 1918 publica um artigo onde expõe as suas ideias terminando com um Ave Rússia! .
Propõe, então, quatro pontos para a revolução social no Brasil:
revisão dos fundamentos da propriedade;
confisco dos bens de certas sociedades religiosas;
riscar do Código Civil o direito de testar;
e a implantação do divórcio.
Nesse mesmo artigo escreve que
“a propriedade é social e o indivíduo só pode e deve conservar, para ele, de terras e outros bens, tão-somente aquilo que precisar para manter a sua vida e de sua família, devendo todos trabalhar da forma que lhes for mais agradável e o menos possível, em benefício comum.”
Lima Barreto, conforme tentamos mostrar no início deste artigo, procurava uma linguagem dinâmica e inusitada para projetar o seu pensamento e isto levou a que muitos críticos desavisados vissem nisto um desleixo de forma ou incapacidade estilística. Mas, ele, ao incorporar a rítmica do falar de nosso povo à sua linguagem, não desarticulou o seu estilo, mas articulou uma linguagem literária nova para expressar um pensamento também novo. Tudo isto ele o fazia inconscientemente, pois, como disse no artigo que escreveu apresentando a revista Floreal de forma enfática:
“Burros ou inteligentes, geniais ou medíocres, só nos convenceremos de que somos uma ou outra coisa, indo ao fim de nós mesmos, dizendo o que temos a dizer, com a mais ampla liberdade de fazê-lo”.
https://www.marxists.org/portugues/moura/1981/06/lima.htm
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