terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Crônicas do Dia - São Paulo, meu amor - Artur Xexéo

Como todo mundo, eu também estou apaixonado pela autobiografia de Rita Lee

Como todo mundo, eu também me apaixonei pela Rita Lee quando ela e mais dois rapazes — quem eram eles mesmo? — ajudaram Gilberto Gil a defender “Domingo no parque” num festival da Record. Que festival era esse? O de 1967? Não me lembro mais. Só me lembro de Rita Lee. Como era bonita! Como era moderna! Como era jovem! A paixão durou para sempre. Aqueles dois rapazes que formavam um grupo com ela desapareceram, ela liderou uma banda de rock, fez carreira sozinha, formou uma dupla irresistível com o marido Roberto de Carvalho.


Agora, como todo mundo, eu também estou apaixonado pela autobiografia de Rita Lee. Como é esclarecedora! Como é divertida! Como é bem escrita! Para mim, o livro tem um interesse especial. Rita Lee é um pouco mais velha do que eu, muito pouco, mas nasceu numa época na qual essa diferença de idade, mesmo sendo pequena, podia marcar gerações diferentes. O livro mostra que não somos de gerações tão diferentes assim. Rita Lee e eu temos o mesmo passado, e esse passado se refere a uma infância vivida em São Paulo.

Em seu livro, Rita fala, por exemplo, de uma televisão que também era a que eu assistia. Bem, admito que não vi a primeira novela, aquela protagonizada por Vida Alves e Walter Foster, casal que entrou para a História como o primeiro a trocar um beijo na TV. Isso não é do meu tempo. Mas é muito do meu tempo o “Sítio do pica-pau amarelo”, com Lucia Lambertini, definida por Rita como “a melhor Emília de todos os tempos”. Também acho. A TV da infância de Rita, assim como a minha, é a do jingle dos biscoitos Aymoré (“Eu sou um índio camarada/ Amigo da garotada”), a do “TV de Vanguarda” — que ela se engana ao chamar de “Teatro de Vanguarda” —, a do “Clube dos artistas”, que Ayrton Rodrigues apresentava ao lado da mulher, Lolita Rodrigues, mas que ele chamava de Sílvia. E eu ficava intrigado. Afinal, ela se chama Sílvia ou Lolita? Ainda de televisão, Rita se lembra do Doutor Valcourt, um aleijão, interpretado por Sérgio Cardoso na novela que teve a difícil incumbência de substituir “O direito de nascer”. Era “O preço de uma vida” e, até hoje, eu ouço a voz de Cardoso dizendo “eu sou um médico, não um charlatão”.

Como os pais de Rita Lee faziam com ela, meus pais me levavam domingo de noite ao Aeroporto de Congonhas para ver os aviões pousando e decolando. O programa era “tomar um cafezinho no aeroporto”. Eu gostava mais de ver os artistas que embarcavam para o Rio do que ver os aviões subindo e descendo. Foi assim que obtive um caderno de autógrafos que mantive comigo até pouco tempo. Estavam ali as assinaturas de Germano, Luely Figueiró, Anilza Leoni, Jacqueline Myrna... vocês não sabem de quem estou falando? Pra ver como a fama é passageira. Mas tinha também os autógrafos de Maysa e Alberto Sordi. Agora vocês estão ligando os nomes às pessoas, não?

Rita e eu fomos praticamente vizinhos. Descobri isso quando ela descreve os cinemas que ficavam perto de sua casa. Não conheci os cines Leblon, Phoenix e Liberdade. Mas passei muitos domingos da minha infância assistindo às sessões duplas do Cine Cruzeiro. Rita também vivia lá. “Ficava a três quarteirões de casa, era esquina da Praça Ana Rosa”, ela conta, acrescentando que o Cruzeiro tinha uma programação de faroestes e chanchadas da Atlântida. Eu me lembro mais de filmes italianos sobre Macistes e Hércules, mas o único filme a que eu tenho certeza de ter assistido no Cruzeiro foi “Jumbo”, com Doris Day, um musical bem chato passado no ambiente do circo. Filmes ambientados em circo eram praticamente um gênero naqueles tempos. Minha casa também ficava perto do Cine Cruzeiro, na Rua Topázio, no bairro da Aclimação. Devo ter cruzado com Rita muitas vezes no ponto de ônibus da Rua Domingos de Moraes que me levava para a civilização mais sofisticada da Avenida Paulista e para os filmes mais comentados que eram exibidos no Astor.

Apesar de todas as recordações em comum, o que mais me levou a acreditar que Rita e eu somos almas gêmeas foi quando, numa crise de pré-adolescência, ela passou a fazer parte da turma de bad boys do bairro. Não, eu não tive crise nessa época, nem nunca fui bad boy. Mas ela aprendeu com os meninos o que chama de “musiquinha baixo calão tolinha” que a fez se sentir “a delinquente”. Era uma paródia pornô do hino constitucionalista da Revolução de 1932. Eu também sabia cantar a musiquinha. E — sem querer destruir a ilusão de Rita de ter sido delinquente tão menina — devo confessar que quem me ensinou foi meu pai, um militar à moda antiga. Isto é, todo mundo sabia cantar a versão escatológica do hino, até nas melhores famílias.

Rita reproduz no livro a letra maldita. Nunca mais a tinha escutado. Cantei a musiquinha, pela primeira vez, nos últimos 50 anos. Fiquei até emocionado. Nunca imaginei que, um dia, uma série de palavrões me emocionaria. Rita e eu poderíamos ter sido amigos de infância. E a versão pornô do hino não sai mais da minha cabeça. “Sonhei com a imagem tua...” Tenho certeza de que alguém aí do outro lado vai se lembrar do resto. Eu não tenho coragem de repetir em público.



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