Segundo muitas pessoas, o apocalipse no ano que entra é uma hipótese plausível que estaria, digamos, em 30%
Pronto. Chegou o temido dia trinta e um de dezembro de dois mil e dezesseis, último do ano que, diziam alguns, nunca acabaria e — afirmavam outros—, acabaria antes de se encerrar o calendário. Conheço gente que acredita, com sinceridade e candura, que 2017, este sim, não chegará ao fim, e que o ano que hoje se encerra só alcançou o seu termo (pelo menos, até agora) porque Donald Trump ainda não assumiu. Segundo muitas pessoas, todas donas de suas faculdades mentais, o apocalipse, no ano que entra, é uma hipótese plausível, que, num termômetro de risco de hecatombe, estaria, digamos, em 30%, e subindo. Dias atrás, na praia, um amigo culto perguntou, com total seriedade de propósito:
— E aí? Você acha que vai dar merda?
Mesmo sabendo que ele se referia à extinção física da humanidade (já que, do ponto de vista ético-civilizatório, a humanidade já está pré-extinta), respondi que não entendia o uso do tempo futuro e do condicional na sua pergunta: “Ora, merda, já deu”, respondi. Resta saber o que vai sobrar ou se vai sobrar alguém para contar a estória ou reconstruir a História.
É difícil, ao se olhar para os doze meses que passaram, pronunciar a palavra “retrospecto” sem que se a confunda com “retrocesso”. Se, em vez de “Retrospectiva 2016”, jornais, revistas e TVs preferissem “Retrocessiva 2016”, é possível que, aqueles que notassem, interpretassem o emprego da palavra, que existe, não como ironia, mas como um tipo radical de objetividade jornalística.
No Rio, no Brasil, no continente, no mundo inteiro, tudo retrocedeu. Aqui, retrocederam as contas, retrocedeu a política, retrocedemos eleitoralmente e vivemos uma baita ressaca pós-olímpica. Retrocederam a segurança, as UPPs. O poder do tráfico e das milícias recrudesceu, e, vá lá, do ponto de vista da malha urbana e dos transportes, a fila deu sinal de andar — mas nada que não esteja banhado em corrupção, se retrocedermos a atenção à memória dos contratos das empreitadas.
No Brasil grande, retrocedeu a economia, retrocedeu a segurança jurídica, retrocedeu a harmonia entre os poderes (e daí para pior), retrocedeu a já combalida confiança do povo em nossos representantes legislativos, retrocedeu a credibilidade do processo sucessório e retrocedeu o pouco que havia de esperança de que o gestor da virada do jogo, Michel Temer, pudesse se imbuir de um senso de dever histórico ou estar em condições de se espelhar no “exemplo Itamar” de superação.
Retrocedeu a esquerda, retrocedeu a direita, retrocedeu o centro, retrocedeu o tucanato e retrocedeu o STF ao soar do gongo, quando parecia que iria fechar o ano fazendo, ao menos, um bom cartaz. Retrocedeu o emprego, retrocedeu a motivação, retrocedeu a esperança. Avançou a Lava-Jato? A ver. Só no frigir de todos os ovos saber-se-á a que veio, de fato e se, de fato, veio.
No nosso continente cansado de guerra, até o que avançou, retrocedeu: o acordo de paz do governo da Colômbia com as Farc não foi referendado pela população. O esforço continua. Retrocedeu a Venezuela, que já vinha ladeira abaixo. Retrocedeu até o Macri, grande herói de uma retomada argentina, em plena e celebrada consonância com a virada tupiniquim (e olha que ele ascendeu pelo voto). Ampliando para o espectro latino-americano, até o campo simbólico retrocedeu: para o bem ou para o mal, Fidel, o último titã, deu o seu “tchau”.
Passemos ao mundo desenvolvido. O ex-império americano retrocedeu em todos os sentidos: no processo eleitoral, o campo republicano retrocedeu um século e meio. Retrocederam os democratas no atoleiro da falta de renovação. Retrocedeu o eleitorado, que alçou ao posto máximo um inimigo superlativo de todos os valores que a História americana luta arduamente para preservar: um homem sem escrúpulos, sem apreço à comunidade das nações, isolacionista, sexista, supremacista, belicista, racista, xenófobo, antiecologista, anarcocapitalista, limitado intelectualmente, diplomaticamente irresponsável, impulsivo e obtuso.
Na Europa, retrocedeu... a Europa, como ideia de unidade, com a aventura superficial do Brexit, da qual os próprios patrocinadores se arrependeram. Retrocedeu Angela Merkel, que, após o atentado em Berlim, vê enfraquecida sua política de imigração e suas chances de se reeleger e, assim, converter-se na dama antitrump. Na França, a fascista Marine Le Pen está exultante: vai ao segundo turno e pode vencer. Com o poder crescente de Vladimir Putin no jogo geopolítico, retrocede a ideia de soberania à sombra do sucesso dos métodos cibernéticos para influenciar a alternância de poder em países vizinhos.
Retrocede a chance de um combate ao terrorismo que não envolva o uso de seus efeitos para estimular o ódio aos imigrantes e acirrar a islamofobia (principal meta do Estado Islâmico) num ambiente de retorno aos ultranacionalismos, em que prever o comportamento dos blocos de poder se torna cada vez mais difícil, numa configuração de alta volatilidade, típica de guerra mundial.
Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/retrocessiva-2016-20713180#ixzz4UY1Q5fuC
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